Como as relações de poder controlam os currículos e implicam na ação pedagógica?

Introdução

O currículo tem uma história e uma origem. O termo deriva da palavra latina curriculum. Sua origem relaciona-se com o plano de estudo proposto aos docentes contendo o que os discentes deveriam aprender. Historicamente, segundo Goodson (1999), é com a ascendência política do Calvinismo, no século XVII, que provém o conceito de currículo como sequência estruturada ou disciplina e, a partir desse momento currículo e controle se tornam termos inseparáveis e o currículo passa a ser utilizado como instrumento de diferenciação social.

Contudo, é somente no século XX que surgirá o currículo como campo específico de estudos. De acordo com Silva (2005), isso provavelmente ocorre nos EUA dos anos 1920 e encontra sua máxima expressão na obra de Bobbitt. O século em questão presencia o surgimento de diversas abordagens que procuraram responder a seguinte questão: qual conhecimento deve ser ensinado? Na busca de resposta, as diversas teorias curriculares recorreram a discussões sobre a natureza humana, a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade (SILVA, 2010). É a ênfase atribuída a um desses elementos que irá diferenciar as várias teorias curriculares.

Segundo Sacristán (2013, p.17), desde seu uso inicial, o conceito de currículo “representa a expressão e a proposta da organização dos segmentos e fragmentos dos conteúdos que o compõem”. Isso significa que desde os primórdios a ideia de seleção e de ordem do que deveria ser ensinado esteve presente na definição do currículo. A ele foram se juntando outros conceitos, tais como o de classe, graus, idades, o que leva ao agrupamento e classificação dos alunos, tais como nos mostram Hamilton (1992), Sacristán (2006), Dussel e Caruso (2003).

Aos poucos, o currículo vai sendo empregado como instrumento regulador das pessoas, transformando-se, nos séculos XVI e XVII, “em uma invenção decisiva para a estruturação do que hoje é a escolaridade e de como a entendemos” (SACRISTÁN, 2013, p. 18).

Assim, é importante compreendermos o currículo como uma das expressões do projeto cultural e educacional que determinada sociedade pretende desenvolver nos sujeitos, com tudo que isso implica: relações de poder, jogos de interesses, ideologias, identidades do outro, etc. Conforme nos ensinou Forquin (1993), a educação envolve sempre a formação de alguém por alguém e, necessariamente, pressupõe a comunicação, a transmissão e a aquisição de conhecimentos que são sempre culturais.

Como artefato que organiza a vida dos sujeitos, o currículo constitui-se um documento de identidade (SILVA, 2010). Compreendo que é por meio do currículo que se realizam as funções da escola. No cotidiano dessa instituição, professores e alunos dão sentido, significado, através de suas interações, ao currículo escolar. Assim, o currículo deve ser compreendido como um artefato cultural que contribui para a construção de identidades sociais.

De acordo com Lopes e Macedo (2011, p. 19), “há certamente um aspecto comum a tudo isso que tem sido chamado de currículo: a ideia de organização, prévia ou não, de experiências/situações de aprendizagem realizadas por docentes/redes de ensino de forma a levar a cabo um processo educativo”.

No caso deste artigo e coerente com o referencial teórico adotado, opto pela perspectiva crítica de currículo, partindo do pressuposto de que “o currículo está implicado em relações de poder, o currículo transmite visões sociais particulares e interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares” (MOREIRA; SILVA, 1999, p. 8), e aqui representada pela teoria bernsteiniana, para analisar o currículo praticado em uma escola de ensino médio do Estado da Bahia.

A compreensão do desenvolvimento de um determinado currículo requer que se analise o que se ensina, como se ensina e as realidades de quem ensina e de quem se deseja ensinar. Segundo Apple (1989, p. 20), “ao invés dessa perspectiva mais psicológica e individualística, necessitamos interpretar as escolas mais socialmente, culturalmente e relacionalmente”. Visando mostrar a necessidade de problematizar as formas de currículo encontradas na escola, Apple propõe que três questões sejam investigadas: A quem pertence esse conhecimento? Quem o seleciona? Por que é organizado e transmitido dessa forma?

A importância dessas questões reside no fato de que as atividades desenvolvidas nas escolas não são neutras, o conhecimento trabalhado nelas é uma escolha de um universo muito mais amplo de conhecimentos e princípios sociais e reflete, logicamente, as relações sociais de poder na sociedade. As instituições escolares estão envoltas em contradições e suas práticas, repletas de significações, relações e contestações, o que faz do campo educacional e do currículo um território contestado.

Para a produção deste texto, valho-me da contribuição do sociólogo inglês Basil Bernstein. Emprego alguns dos conceitos teóricos por ele formulados para analisar o currículo praticado no interior da sala de aula de uma escola pública. Assim, inicialmente apresento a metodologia empregada para a construção dos dados. Na sequência, discuto algumas das contribuições de Bernstein para a compreensão do currículo e, finalmente, apresento e discuto os dados construídos na pesquisa.

Abordagem metodológica: a etnografia

A pesquisa social é uma aventura e exercício de imaginação. Segundo Teixeira (2003):

A pesquisa social é como uma arquitetura. Precisa ser edificada por entre planos, vigas e eixos devidamente escolhidos e combinados que assegurem sua criação- a construção do conhecimento que lhes é peculiar. É como uma arquitetura trançada no objeto de estudo, um objeto científico erigido mediante a combinação de fatos, questões, observações, teorizações, análises, raciocínios. (TEIXEIRA, 2003, p. 82).

Os dados aqui apresentados foram construídos por meio de uma pesquisa etnográfica realizada em uma escola pública estadual de Vitória da Conquista-BA, aqui denominada de Guimarães Rosa. Em uma perspectiva etnográfica, as categorias de análise não se impõem ao objeto, pelo contrário, vão surgindo à medida que o trabalho de campo acontece.

De acordo com Geertz (1989):

Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado. (GEERTZ, 1989, p. 20).

Nos estudos etnográficos, o pesquisador deve preocupar-se em compreender/apreender a realidade na perspectiva dos sujeitos estudados. Para efetivar tal intento, Sarmento (2003) nos apresenta os elementos decorrentes de tal orientação: permanência prolongada do investigador no contexto estudado; interesse por todos os traços e pormenores que fazem o cotidiano; interesse dirigido para os comportamentos e atitudes dos sujeitos sociais e as interpretações que fazem desse comportamento; esforço em produzir um relato que recrie de forma viva os fenômenos estudados; esforço em estruturar progressivamente o conhecimento obtido, de modo que o processo hermenêutico resulte da construção dialógica e continuamente compreensiva das interpretações e ações dos indivíduos no contexto estudado.

Oliveira (2013, p. 71) aponta que a etnografia não é uma forma de coletar dados: “a etnografia pressupõe não uma coleta, mas uma construção dos dados, que se dá em meio ao processo intersubjetivo que se estabelece entre pesquisador e pesquisado. A etnografia demanda saber o que os outros pensam sobre o mundo, sobre si mesmos e, por que não?, sobre o pesquisador e o que ele está fazendo em campo”.

Para Geertz (1989, p. 19), a etnografia não é apenas uma questão de métodos ou um conjunto de técnicas e procedimentos. A prática etnográfica é um “esforço intelectual, um risco elaborado para uma descrição densa”. A descrição deve ser semanticamente densa, isto é, a densidade de uma descrição está na capacidade do investigador conseguir “ler” o conteúdo simbólico de uma ação, interpretando-a em busca dos significados.

Para a construção dos dados, realizei observações de aulas de diferentes disciplinas na Escola Guimarães Rosa, instituição pública de ensino médio localizada em Vitória da Conquista-BA. Essa escola é de pequeno porte e funciona em três turnos. O ensino médio regular funciona nos turnos matutino e vespertino. No noturno, o ensino médio é na modalidade EJA. As observações foram realizadas no turno vespertino, em quatro turmas (02 turmas de 1º ano, 01 turma de 2º ano e 01 turma de 3º ano), nas disciplinas de Química, Biologia e Educação Física.

A contribuição de Bernstein para a compreensão do currículo

Bernstein foi um sociólogo britânico cujas ideias “constituíram a gramática mais avançada para compreender os presentes sistemas educativos e as mudanças que neles tem tido lugar” (MORAIS, 2004, p. 1).Sua teoria, construída ao longo do período 1958-2000, pode ser verificada nos cinco volumes de Class, codes and control1 e aborda, de forma interligada, as dimensões conceitual e metodológica em que a teoria orienta a empiria e esta modifica e amplia a teoria em uma constante relação dialética. Segundo Morais (2004), a teoria bernsteiniana apresenta elementos fundamentais para a compreensão dos processos educacionais, abrindo importantes perspectivas de pesquisa. No entanto, há muitas críticas à sua abordagem devido, principalmente, “[a]o poder de explicação, descrição, diagnóstico, previsão e transferência, que é parte da grandeza da teoria de Bernstein, constitui uma razão para sua rejeição por muitos sociólogos, que não partilham de tais preocupações” (MORAIS, 2004, p. 29).

A preocupação desse sociólogo não é com os conteúdos explicitados no currículo, mas com o processo de transformação que o conhecimento passa ao ser retirado do seu contexto original e ser deslocado e relocado na situação pedagógica. Assim, a perspectiva bernsteiniana é tentar entender as regras implícitas nesse processo, ou seja, a voz do próprio discurso pedagógico ou a sua gramática.

Para Morais (2004, p. 9), “o modelo do discurso pedagógico de Bernstein permite uma análise sociológica abrangente dos processos e relações que caracterizam o desenvolvimento curricular aos níveis macro e micro”. Por isso, considero que seu conceito de recontextualização apresenta um potencial analítico para o estudo das políticas curriculares, pois parte do princípio de que os diferentes textos, na sua circulação pelo meio educacional, passam por processos de reinterpretações. Segundo Bernstein (1996):

O discurso pedagógico é, pois, um princípio que tira (desloca) um discurso de sua prática e contexto substantivos e recoloca aquele discurso de acordo com seu próprio principio de focalização e reordenamento seletivos. Nesse processo de deslocação e recolocação do discurso original, a base social de sua prática é eliminada. Nesse processo de deslocação e recolocação, o discurso original passa por uma transformação: de uma prática real para uma prática virtual ou imaginária. (...) Trata-se de um principio recontextualizador que, seletivamente, apropria, reloca, refocaliza e relaciona outros discursos, para constituir sua própria ordem e seus próprios ordenamentos. (BERNSTEIN, 1996, p. 256).

Em sua teoria, Bernstein considera as condições sociais que controlam a produção e a reprodução do discurso. Isto significa que o discurso não se reduz a uma simples realização da linguagem, mas sim ao produto de uma complexa rede de relações sociais e, consequentemente, de poder.

As mudanças discursivas em qualquer política educacional são produzidas no contexto mais amplo de crise social que acabam por demandar mudanças no papel do Estado. Isto é importante porque nos auxilia na compreensão de que o discurso da política deve ser analisado em relação a mudanças no contexto econômico, político, social e cultural.

Devido ao fato do discurso pedagógico ser construído, segundo Bernstein (1996), por meio de um processo de seleção e recontextualização de um discurso primário, que no seu processo de reprodução é reorganizado, transformado e redistribuído no campo da reprodução discursiva, é que seu conceito de recontextualização nos auxilia a compreender a política curricular para o ensino médio proposta pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia.

As análises efetuadas por Bernstein (1996, 1998) sobre a atividade pedagógica produziram conceitos que possibilitam uma melhor compreensão dos processos e conteúdos que ocorrem no interior da sala de aula. Para esse autor, a forma como um currículo é organizado e transmitido pedagogicamente acaba por estabelecer uma relação direta com a identidade social e cognitiva dos indivíduos destinatários do mesmo.

A aquisição seletiva do conhecimento, o currículo e a pedagogia são estudados por Bernstein a partir da ação pedagógica, visto que esta envolve três práticas: as de organização curricular, as discursivas e as de transmissão. Prática pedagógica não é compreendida por nosso teórico apenas referindo-se à escola; diz respeito a um contexto social que abrange processos de produção e reprodução culturais. São as regras subjacentes à realização dessa prática que configuram um determinado discurso pedagógico.

O que Bernstein procura evidenciar em seu trabalho é a lógica interna presente no discurso pedagógico e suas regras de construção, aquisição, circulação, contextualização e transformação. Seu trabalho oferece elementos que possibilitam compreender como os diferentes discursos2 produzidos pelas reformas curriculares são reinterpretados no interior das instituições educacionais.

Também seus conceitos de pedagogia visível e invisível, classificação e enquadramento e as regras da prática pedagógica (hierárquicas, de sequenciamento e criteriais) são extremamente úteis para a presente pesquisa e são detalhados a seguir. Com base neles, é possível verificar que as orientações das agências multilaterais não são postas em prática tais como são produzidas, mas são modificadas pela mediação de esferas governamentais intermediárias e pelas escolas (LOPES, 2005).

Bernstein (1998, p. 35), em seu trabalho, examinou uma série de regras que estão presentes na prática pedagógica. É importante salientar que por prática pedagógica o autor compreende “um contexto social fundamental através do qual se realiza a reprodução e a produção culturais”. A preocupação de nosso teórico é, conforme ele mesmo afirma, com “as regras subjacentes que configuram a construção social do discurso pedagógico e suas diversas práticas”.

A prática pedagógica consiste, para Bernstein, na relação entre três regras: hierárquicas, de sequenciamento e criteriais, pois elas constituem “o como” de qualquer prática e “afetam o conteúdo a ser transmitido e, mais que isso, elas atuam seletivamente para determinar aqueles adquirentes que serão bem sucedidos” (MAINARDES, 2007, p. 47).

A regra hierárquica é a dominante e estabelece as condições para a ordem, o caráter e os modos de comportamento. Os papéis de transmissor e adquirente são muito bem definidos, criando as condições para as condutas desejadas para cada um na relação pedagógica.

As regras de sequenciamento definem a progressão da transmissão, ou seja, o que vem antes e o que vem depois, regulando o ordenamento temporal do conteúdo. Para Bernstein, “se existe uma progressão, deve haver regras de sequenciamento” (BERNSTEIN, 1996, p. 97). Essas regras implicam regras de compossamento, ou seja, o tempo permitido para se cumprir as regras de sequenciamento.

As regras de compassamento definem a velocidade esperada para que a aprendizagem ocorra e podem ser explícitas ou implícitas. No primeiro caso, elas regulam o desenvolvimento da criança em termos de idade, construindo o projeto temporal da criança e, no segundo, as crianças pode não ter jamais conhecimento de seu projeto temporal, pois ele é de conhecimento apenas do transmissor. As regras de sequenciamento podem estar inscritas em listagens de conteúdos, em currículos, regras de comportamento, regras de prêmios e castigo.

As regras criteriais consistem em avaliar a competência do adquirente, isto é, “se os critérios que se tornaram disponíveis para o adquirente foram alcançados” (BERNSTEIN, 1996, p. 98). Essa avaliação baseia-se nas condutas, caráter, modos de comportamento (critérios regulativos) ou a resolução de um problema ou produção de um segmento de escrita/fala (critério instrucional/discursivo).

Os jovens estudantes, a escola e o conhecimento escolar

Toda análise sociológica da escola deve interrogar sobre a questão do saber e de sua transmissão. Apoiado na teoria de Bernstein, a preocupação não foi com o conteúdo ensinado, mas com o processo de transmissão, com as regras do discurso pedagógico presentes na prática pedagógica em sala de aula.

Aqui a noção de relação com o saber, ao buscar articular histórias singulares e de relações sociais, situações escolares e de mobilizações familiares e sociais, é considerada importante para a compreensão do currículo da escola; seu potencial analítico para o estudo aqui proposto reside no fato de que toda discussão curricular deve considerar o sentido das aprendizagens escolares para os alunos.

A mobilização em relação à escola é verificada por meio do sentido e do valor atribuído ao saber/conhecimento transmitido por ela. É necessário um motivo para que haja mobilização em relação à escola; alunos e seus familiares precisam perceber que o conhecimento escolar é importante por algum motivo e que este lhes trará algum benefício. Este benefício nem sempre é o capital econômico; pode ser simplesmente um capital social que no futuro propiciará a aquisição de um capital econômico.

Para verificar como se dá essa mobilização em relação à escola/conhecimento e o significado que esta adquire, é necessário construir elementos teórico-metodológicos que nos possibilitem descortinar a prática pedagógica, tal como propoem Morais et al (1993) e Morais e Neves (2003).

Para Morais e Neves (2003), um desses elementos é a linguagem específica da descrição. As situações observadas em sala de aula são detalhadas e, em seguida, analisadas sociologicamente, focando-se nas relações sociais que constituem a prática pedagógica. No caso da Escola Guimarães Rosa, por diversas vezes observei uma relação de exterioridade com o conhecimento/saber transmitido na escola, conforme cenas extraídas das observações e apresentadas a seguir.

Aula de Biologia 1º Ano D

P- Do que vocês leram sobre a membrana plasmática, o que ficou?

A1- Nada.

P- Gente, vamos participar.

Uma aluna lê um parágrafo do livro.

P- Ninguém quer falar mais nada?

T (todos) - Em coro: Não!

P- Como eu falei na aula anterior, a membrana plasmática é uma das partes básica da célula. Como vocês acham que é uma membrana celular, o que ela lembra?

A1- Um membro.

A2- Um ovo frito.

A professora passa a explicar o assunto. Após a explicação, pergunta:

P- Vocês estão entendendo o que é membrana? Alguma pergunta?

Os alunos não respondem.

P- Então vamos continuar.

A professora continua a explicar o conteúdo.

Aula de Biologia - 1º ano (Correção de atividade)

P- O que são enzimas? Quem respondeu?

A professora solicita a uma aluna que leia a sua resposta. A discente lê e não consegue pronunciar a palavra polipeptídica.

P- Solicita a outra aluna que leia a sua resposta. Novamente pede a participação dos estudantes.

A1- Professora, tá muito calor. A gente desanima de falar.

P- Mas tá todo mundo sentindo calor.

Em seguida, a professora fala a resposta à questão sobre o que são enzimas. Lança outra questão e pergunta quem respondeu. A maioria dos alunos não participa. Os que responderam ao exercício são os que estão sentados nas primeiras fileiras. Outros parecem distantes ou demonstram não entender o assunto.

A professora vai ao quadro e explica o modelo chave-fechadura. Após, parece sentir-se incomodada com a não participação dos alunos e solicita novamente que eles falem sobre o conteúdo da aula.

No fundo da sala, três alunos chupam bala e mexem no celular.

A professora pede a um aluno que leia a resposta da questão seguinte.

P- Por que você está com o caderno fechado? Gente, levem a coisa mais a sério.

Volta novamente à explicação do conteúdo.

P- Alguma dúvida?

T- Não (em coro).

P- Então vamos passar para o próximo conteúdo. Passa a escrever no quadro sobre citologia.

Essas cenas da sala de aula nos mostram a dificuldade em estabelecer uma comunicação pedagógica que favorecesse a participação. O discurso da professora, pela própria dinâmica da turma, predominava. As regras de sequenciamento, devido à organização curricular na prática pedagógica, caracterizavam-se como uma pedagogia visível; essas regras estavam colocadas publicamente no currículo. O processo de seleção de conteúdos, seguindo a ordem do livro didático, é um demonstrativo disso. Com o decorrer das aulas, as regras criteriais, no caso de Biologia, eram conhecidas por todos os discentes.

A cena da aula de Biologia nos permite inferir que, como é característico de uma pedagogia visível, essa aula produz estratificação entre os alunos. Quando nem todos participam ou não interessam-se pela aula, esses estudantes já vão construindo uma trajetória escolar diferenciada em relação àqueles que participam, respondem as atividades, procuram tirar dúvidas. Diante disso, geralmente o professor acaba por individualizar a aprendizagem, ou seja, dá maior atenção na turma aos estudantes que participam da aula. No momento em que individualiza a aprendizagem, as regras criteriais estão em jogo. Aos alunos, basta satisfazer os critérios previamente estabelecidos para obter sucesso.

Já em outros momentos, verifiquei uma relação de apropriação do conhecimento transmitido na escola, com os discentes participando, conforme relato a cena a seguir, numa turma de 3º ano.

Aula de Química

A professora passa inicialmente o conteúdo da aula no quadro. Após os alunos copiarem, ela começa a explicar.

P- Alguma dúvida?

T- Não.

P- Vamos prosseguir. Nesta fórmula C2H5O4, há quantos átomos de carbono?

Os alunos respondem. Há uma intensa participação na aula.

P- Alguma dúvida?

T- Não.

P- Como está classificado este primeiro álcool CH3-OH?

T- Álcool primário.

P- Por quê?

A1- Porque a hidroxila OH está ligada ao primeiro carbono.

A professora prossegue explicando e contando com a participação de boa parte dos estudantes.

Nesta cena, perguntas e respostas ditam o ritmo da aula e dão um indicativo da relação que os estudantes estabelecem com o conhecimento/saber transmitido. No entanto, acredito que esse ritmo, além de um procedimento pedagógico, é também um mecanismo de controle do processo de transmissão pedagógica e da aquisição do conhecimento. Refiro-me ao fato de a participação dos estudantes demarcar o compassamento das regras de sequenciamento, pois se todos participam e demonstram ter entendido o conteúdo, a velocidade de sua transmissão será acelerada para que um novo conteúdo seja trabalhado.

Seleção, recontextualização e fragmentação do conhecimento corporificado no currículo

A análise sociológica do currículo torna possível que elementos como o processo de criação, seleção, organização e distribuição do conhecimento escolar sejam analisados como os processos sociais mais amplos interferem na constituição do trabalho docente, a reação dos professores às políticas do campo recontextualizador oficial, a recontextualização dessas políticas.

Tentar compreender o currículo posto em prática cotidianamente no fazer docente requer um olhar atento a detalhes que por vezes podemos considerar como insignificantes. Diante do número crescente de situações vivenciadas na escola, apresento a seguir algumas cenas que consegui apreender.

Aula de Educação Física.

Estou no pátio observando a aula. Alguns alunos aproximam-se. Nem todos praticam a atividade proposta pela professora. Na verdade, boa parte fica conversando. Aproxima-se uma aluna do 2º ano e diz: - “Professora, semana que vem tem prova de Física. Ninguém sabe nada. Não tivemos professor até agora. Eu quero aprender, não quero chegar ao 3º ano e passar sem saber nada”.

Comparando a organização espacial desta aula com as das demais aulas, entendo que na aula de Educação Física há o enfraquecimento da classificação interna. A organização espacial das salas, nas demais aulas, variava muito de uma turma para outra. Geralmente os grupos ficavam muito bem demarcados nesse espaço. A classificação interna era forte, enfraquecida nos momentos de interação e trabalhos em grupo. O 1º C foi a turma que mais chamou minha atenção: dois grupos constituíam essa turma, marcada principalmente pelo elevado índice de evasão e falta. Dificilmente os estudantes participavam das aulas, mesmo quando os docentes insistiam.

No interior da escola não presenciei nenhuma discussão a respeito de currículo ou das orientações curriculares dos governos federal e estadual, o que me leva a pressupor que os docentes, apesar de cotidianamente produzirem políticas curriculares, não se davam conta disso.

Com relação à comunicação pedagógica em sala de aula, a maior parte do tempo era o professor o detentor do discurso da sala de aula. Mas os estudantes construíam formas de romper com essa rigidez, seja conversando com colegas ou tentando participar da aula.

A interação entre professores e alunos no espaço da sala de aula dependia muito da maneira como cada docente conduzia o processo pedagógico. Nas aulas a que assisti, observei que a professora de Química/Biologia considerava este um aspecto importante em seu trabalho, conforme cena a seguir, de um turma de 2º ano.

P- Todos responderam a atividade?

A1- Não.

P- Por quê?

A1- Porque é muito difícil. A senhora disse que ia explicar.

A2- Tô respondendo agora.

P- E as tarefas da gincana? Estão todas prontas?

A1- Ainda não, professora.

A2- Não vai dá visto não, professora?

P- Quem respondeu a atividade toda? Em que sentiram dificuldade?

A- Senti dificuldade em todas, menos na última.

P- Então vamos responder e eu vou explicando. Quem tiver dúvidas, pergunte. Quem lembra o que é número atômico?

[A professora explica o assunto].

P- Entenderam agora?

A2- Eu sei responder, mas não entendi.

P- Vamos fazer as próximas, então.

[A professora explica e sempre pergunta se os alunos entenderam, as dúvidas que ficaram].3

Dependendo da turma, a comunicação alterava-se. A lógica da transmissão modificava-se no momento em que os discentes participavam da aula. Geralmente as aulas dessa professora caracterizavam-se pelo binômio pergunta-resposta de ambas as partes. Isso, no entanto, não diminuía o isolamento dos conteúdos dentro da própria disciplina ou o compassamento entre eles.

Em todos os docentes a preocupação em cumprir o conteúdo daquela série era o elemento demarcador das regras de sequenciamento. No caso das aulas de Português4, elas eram explícitas. Desde o início do bimestre, os alunos já eram informados sobre os conteúdos a serem trabalhados em Gramática, Literatura e Redação, inclusive as produções textuais que deveriam redigir.

O livro didático era o definidor das regras acima descritas. Para Bernstein, quando as atividades propostas tornam os conteúdos compartimentos isolados de conhecimentos especializados há aí o indicador de uma forte classificação externa. Isso significa um espaço perceptível entre os conteúdos trabalhados. Na escola Guimarães Rosa, mesmo com a proposta do trabalho em áreas, não havia relação entre os conteúdos abordados em sala de aula, pois cada área trabalhava independente das demais.

A classificação entre as disciplinas era forte porque, mesmo com momentos de interação afetiva, os textos curriculares empregados pelos/as docentes também eram fortemente classificados. A condução da aula por meio de perguntas e respostas não acontecia em todas as disciplinas, como era o caso da aula de Geografia. Nessa disciplina, o elemento diferenciador das demais, algo que faz parte da cultura da escola, era o “visto” no caderno, isto é, uma rubrica do docente nas atividades.

Considerações finais

A teoria bernsteiniana mostrou-se fundamental para desvelar como o currículo é materializado nas práticas pedagógicas de docentes do Ensino Médio. As cenas extraídas das observações evidenciam como as regras da prática pedagógica se efetivam no interior da sala de aula. Diante das considerações aqui elencadas, ressalto a necessidade de outras investigações no campo da política curricular que se debrucem sobre propostas de reformas dos sistemas públicos estaduais de educação, particularmente para o nível médio, tendo em vista que propostas curriculares específicas para esse nível de ensino podem ser identificadas em diferentes Estados da Federação, a exemplo de BA, SP, SC. Temáticas como a identidade docente e discente construída pela política curricular, a escola como espaço de entrecruzamento de culturas, as recontextualizações do texto curricular, o gerencialismo presente na gestão das escolas estaduais, no caso baiano, demandam maiores aprofundamentos e podem demonstrar os sentidos produzidos para as políticas a partir das práticas pedagógicas cotidianas.

De acordo com Mainardes e Stremel (2010, p. 15), “a teoria do dispositivo pedagógico constitui-se um modelo teórico que permite a análise das políticas tanto no nível macro de sua formulação e influencias, até os micro-processos de sua realização”.

Estudos como os realizados principalmente pelo grupo coordenado por Ana M. Morais, na Universidade de Lisboa, a exemplo de Neves e Morais (2006), Neves et al (2000) e Morais, Neves e Pires (2004), demonstram toda a potencialidade presente na teoria de Bernstein, que nos auxilia a compreender as políticas curriculares e as práticas pedagógicas.

Também no Brasil, estudos como os de Cardoso (2005), Nogueira (2004), Piccoli (2009), Araujo (1995), Buffe (2005), Cardoso (2005), Castro (2002), Barbosa (2015), dentre outros, têm demonstrado a potencialidade da teoria bernsteiniana para o estudo de questões relacionadas à alfabetização e ao currículo/prática pedagógica na educação básica, o que contribui para justificar o seu emprego no presente texto.

Referências

APPLE, M. Educação e poder. Porto Alegre: Artmed, 1989.

ARAUJO, E. L. Poder e controle no início da escolarização no Planalto Gaúcho: o discruso pedagógico segundo Basil Bernstein. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre, 1995.

BARBOSA, J. Entre o discurso oficial e o discurso pedagógico: desafios e caminhos construidos, no contexto da Rede Municipal de Ensino de Jequié, no processo de implantação da Lei 10639/03. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da conquista, 2015.

BERNSTEIN, B. A estruturação do discurso pedagógico. Trad. Tomaz T. Silva. Petrópolis: Vozes, 1996.

______. Classes e pedagogia: visível e invisível. Cadernos de Pesquisa, n.49, p.26-42,1984.

______. Pedagogía, control simbólico y identidad. Madri: Morata, 1998.

BUFFE, A. L. Compreensão sociológica da prática pedagógica de Matemática: um olhar a partir de Basil Bernstein. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, UFRGS, Porto Alegre, 2005.

CARDOSO, H. R. Uma compreensão sociológica do processo de alfabetização: comparando diferentes práticas. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, UFRGS, Porto Alegre, 2005.

CASTRO, C. M. G. Perspectivas de alunos e professores de séries iniciais da educação de jovens e adultos: uma interpretação a partir da conceituação de Basil Bernstein. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, UFRGS, Porto Alegre, 2002.

DUSSEL, I.; CARUSO, M. A invenção da sala de aula: uma genealogia das formas de ensinar. São Paulo: Moderna, 2003.

FORQUIN, J.C. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artmed, 1993.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.

GOODSON, I. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 1999.

HAMILTON, D. Sobre as origens dos termos classe e curriculum. Teoria e Educação, n. 6, p. 33-52, 1992.

LOPES, A. C. Política de currículo: recontextualização e hibridismo. Currículo sem fronteiras, v. 5.n. 2. p. 50-64, 2005.

______; MACEDO, E. Teorias de currículo. São Paulo: Cortez, 2011.

MAINARDES, J. Reinterpretando os ciclos de aprendizagem. São Paulo: Cortez, 2007.

______; STREMEL, S. A teoria de Basil Bernstein e algumas de suas contribuições para as pesquisas sobre políticas educacionais e curriculares. Revista Teias, v. 11, n. 22, p. 31-54, 2010.

MORAIS, A. M. Basil Bernstein: Sociologia para a educação. Lisboa, 2004. Disponível em: .

MORAIS, A. M. et al. Socialização primária e prática pedagógica. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.

______; NEVES, I. P. Processos de intervenção e análise em contextos pedagógicos. Educação, Sociedade e Culturas. Porto, Universidade do Porto, n. 19, p. 49-87, 2003.

______; NEVES, I. P.; PIRES, D. Desenvolvimento científico nos primeiros anos de escolaridade: estudo de características específicas da prática pedagógica. Revista de Educação, Lisboa, v. 12, n. 2, p. 119-132, 2004.

MOREIRA, A. F.; SILVA, T. T. (Org.). Currículo, cultura e sociedade. 3 ed. São Paulo: Cortez, 1999.

NEVES, I. P.; MORAIS, A. M. Processos de recontextualização num contexto de flexibilidade curricular: análise da actual reforma das ciências para o ensino básico. Revista de Educação, Lisboa, v. 15, n. 2, p. 75-96, 2006.

______. et al. Os discursos instrucional e regulador em programas de ciências: estudo comparativo de duas reformas. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 13, n. 1, p. 209-245, 2000.

NOGUEIRA, M. de O. A apropriação do conhecimento em sala de aula: relações com o currículo numa escola pública do ensino fundamental. Dissertação (Mestrado em Educação). Instituto de Ciências Humanas, PUCMinas, Belo Horizonte, 2004.

OLIVEIRA, A. Por que etnografia no sentido estrito e não estudos do tipo etnográfico em educação? Revista da FAEEBA- Educação e Contemporaneidade, Salvador, vol.22, n.40, p. 69-81, 2013.

PICCOLI, L. Prática pedagógica nos processos de alfabetização e letramento: análise a partir dos campos da sociologia e da linguagem. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação UFRGS, Porto Alegre, 2009.

SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

______. O aluno como invenção. Porto Alegre: Artmed, 2006.

______. O que significa o currículo? In:______. (Org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. Porto Alegre: Penso, 2013.

SARMENTO, M. J. O estudo de caso etnográfico em educação. In: ZAGO, Nadir; CARVALHO, M. Pinto de. E VILELA, R. A. T. (Orgs). Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

SOUZA, J. B. Entre o discurso oficial e o discurso pedagógico: desafios e caminhos construidos, no contexto da rede municipal de Jequié, no processo de implementação da Lei 10639/03. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, 2015.

TEIXEIRA, I. A. C. Por entre planos, fios e tempos: a pesquisa em Sociologia da Educação. In: ZAGO, N.; CARVALHO, M. P.; VILELA, R. A. T. (Org.). Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

Notas

1 O último volume foi publicado com o título Pedagogía, control simbólico y identidade, pela Editora Moratta.

2 Aqui estou trabalhando com o conceito de discurso pedagógico proposto por Bernstein, ou seja, um princípio para apropriar outros discursos e coloca-los numa relação mútua especial, com vistas à sua transmissão e aquisição seletivas.

3 P (professora), A1 (aluno 1), A2 (aluno 2), T (todos).

4 As aulas assistidas nessa disciplina foram no 2º e 3º ano, ambos com a mesma professora.

Qual a relação entre poder e currículo?

O currículo transmite a ideologia dominante”. De acordo com Foucault as relações de poder se alastram por toda a estrutura social, nada está isento de poder dessa forma não é possível escapar dessas relações, mas é possível resistir ao seu exercício.

Que implicações uma teoria de currículo tem sobre o processo ensino

Os fundamentos das teorias curriculares críticas e pós-críticas podem ser vistos como influências significativas e que precisam ser trabalhadas de forma efetiva, pois contribuem com uma formação crítica e reflexiva, da importância de se valorizar o conhecimento prévio dos alunos, da diversidade cultural, enfim da ...

Quais relações existem entre o projeto político pedagógico de uma escola e o currículo que nela se desenvolve?

O Projeto Político Pedagógico (PPP) é uma maneira oficial de materialização do currículo escolar. É através dele que é possível estabelecer uma forma de organização do trabalho pedagógico que parte, essencialmente, da definição a respeito de que aluno a escola quer formar.

Qual é a implicação disso para as práticas pedagógicas e ou de gestão?

Qual é a implicação disso para as práticas pedagógicas e/ou de gestão? Aqui, vemos que o currículo se desenvolve desde a educação de base, ou seja, da educação infantil e se articula de modo acompanhar a formação do aluno.

Toplist

Última postagem

Tag