Qual antropólogo desenvolve o método que será apropriado pelo micro história italiana?

Table of contents :
Capa
Rosto
Créditos
Apresentação: Avanços e novas perspectivas a partir da segunda geração da microstória italiana
1. A pluralidade do passado
2. Microstoria: relações sociais versus modelos culturais? Algumas reflexões sobre estereótipos e práticas históricas
3. “A Contrapelo”: diálogo sobre o método
4. Quem está embaixo? Uma releitura de E. P. Thompson, historiador das sociedades modernas
5. Ofícios aparentados: cirurgiões-barbeiros e artesãos dos corpos em Turim (séculos XVII e XVIII)
6. O saber das relações: vínculos e raízes sociais de uma administração na França do século XIX
7. Percursos individuais e evolução histórica: quatro trajetórias operárias na França do século XIX
8. Microstoria/microhistoire/microhistory
9. Existe futuro para a micro-história italiana na era da história global?
10. Processos criminais e micro-história: direito, grupos populares e a Justiça Criminal em Minas Gerais (1854-1941)
11. Pensando o problema das conexões, do equilíbrio e da complexidade a partir da perspectiva da micro-história
Autores

Deivy Ferreira Carneiro Maíra lnes Vendrame ORGANIZADORES

Espaços, escalas e práticas sociais na micro-história italiana ,..,FGV EDITORA

Copyright © 2021 Deivy Ferreira Carneiro, Maíra Ines Vendrame Direitos desta edição reservados a FGV EDITORA Rua Jornalista Orlando Dantas, 9 22231-010 | Rio de Janeiro, RJ | Brasil Tels.: 0800-021-7777 | 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 [email protected] | [email protected] www.fgv.br/editora Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98). Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores. 1a edição – 2021 Preparação de originais: Sandra Frank Capa: Estúdio 513

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Carneiro, Deivy Ferreira Espaços, escalas e práticas sociais na micro-história italiana [recurso eletrônico] / Deivy Ferreira Carneiro, Maíra Ines Vendrame. - Rio de Janeiro : FGV Editora, 2021.

1 recurso online (284 p. : il.) : PDF Dados eletrônicos. Inclui bibliografia. ISBN: 978-65-5652-086-5

1. Itália - História. 2. Micro-história. I. Vendrame, Maíra Ines. II. Fundação Getulio Vargas. III. Título. CDD – 945

Elaborada por Rafaela Ramos de Moraes – CRB-7/6625

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Sumário Apresentação: Avanços e novas perspectivas a partir da segunda geração da microstória italiana

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Deivy Carneiro Maíra Ines Vendrame 1

A pluralidade do passado

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Sabina Loriga 2

Microstoria: relações sociais versus modelos culturais? Algumas reflexões sobre estereótipos e práticas históricas

39

Simona Cerutti 3

“A Contrapelo”: diálogo sobre o método 59 Simona Cerutti

4

Quem está embaixo? Uma releitura de E. P. Thompson, historiador das sociedades modernas 69 Simona Cerutti

5

Ofícios aparentados: cirurgiões-barbeiros e artesãos dos corpos em Turim (séculos XVII e XVIII)

99

Sandra Cavallo 6

O saber das relações: vínculos e raízes sociais de uma administração na França do século XIX

122

Maurizio Gribaudi 7

Percursos individuais e evolução histórica: quatro trajetórias operárias na França do século XIX

160

Maurizio Gribaudi 8

Microstoria/microhistoire/microhistory

198

Francesca Trivellato 9

Existe futuro para a micro-história italiana na era da história global?

214

Francesca Trivellato

5

10

Processos criminais e micro-história: direito, grupos populares e a Justiça Criminal em Minas Gerais (1854-1941)

245

Deivy Ferreira Carneiro 11

Pensando o problema das conexões, do equilíbrio e da complexidade a partir da perspectiva da micro-história

260

Maíra Ines Vendrame Autores

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Apresentação: Avanços e novas perspectivas a partir da segunda geração da microstoria italiana

Deivy Carneiro Maíra Ines Vendrame

O presente projeto nasceu em 2016, após um dos organizadores deste livro ter realizado estágio de pós-doutorado em Paris e participado de alguns dos cursos ministrados por Sabina Loriga. Conversando com ela, surgiu a ideia do quanto seria importante tornar acessível ao público brasileiro textos produzidos por historiadores que fazem parte da segunda geração da microstoria italiana. Muito discutido, mas pouco praticado, o referido método chegou ao Brasil com a tradução de vários livros de Carlo Ginzburg no final dos anos 1980 e início dos 90, impactando as pesquisas históricas desenvolvidas a partir de então.1 E como toda novidade intelectual, sua “absorção” se deu com alguns equívocos. Se analisarmos alguns dos primeiros debates2 ocorridos no país, a corrente historiográfica italiana aparece como uma variação da história cultural ligada à chamada terceira geração dos Annales. Isso ocorreu por vários motivos, mas o principal foi deixar de lado, por não terem sido traduzido do italiano para o português, uma gama de trabalhos e de autores3 que modificaram os padrões da história social europeia. Além disso, o debate acabou por resumir, por fim, a microstoria aos primeiros livros de Carlo Ginzburg e, posteriormente, ao livro A herança imaterial: a trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII, de Giovanni Levi (2000). Após ouvir sobre o projeto, Sabina Loriga, que de imediato o achou muito interessante, encaminhou alguns de seus artigos para que pudessem ser livremente escolhidos para futura publicação. Também indicou nomes de outros pesquisadores italianos que poderiam ser agregados, uma vez que haviam utilizado o método da microstoria. A partir daí surgiu a grande questão do projeto: o que seria a segunda geração da micro-história e quais historiadores deveriam figurar no livro.

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Os dois primeiros livros de Carlo Ginzburg que utilizam o método da micro-história publicados no Brasil são: Ginzburg (1988; 1989). 2 Ver os textos sobre história social e história das mentalidades de Hebe Mattos (1997) Ronaldo Vainfas (1997) sobre a história social e a história das mentalidades. Ver, também, Vainfas (2002). 3 Conferir, por exemplo: Ramella (1984); Grendi (1987); Gribaldi (1987a);Cerutti (1990); Raggio (1990); Grendi (1993); Torre (1995; 2011); Ago (2006).

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Porém, antes de definir todos os autores que fariam parte do projeto, conseguiu-se autorização para traduzir textos de Simona Cerutti e Maurizio Gribaudi,4 sendo a presença de ambos imprescindível. Esse último também apresentou sugestões fundamentais para a proposta da coletânea, o que ampliou os horizontes da produção historiográfica dos ex-alunos dos três principais expoentes da microstoria italiana: Edoardo Grendi, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg. Entre as observações, Maurizio Gribaudi sugeriu a inclusão de Sandra Cavallo, uma vez que considerava a mesma “uma das melhores” entre as historiadoras italianas ligadas à referida proposta metodológica. Apesar de não ser propriamente da “segunda geração”, mas, sim, de uma “terceira geração”, o nome de Francesca Trivellato5 também foi indicado para figurar entre os autores. Mais recentemente, a autora apresentou uma reflexão interessante sobre a perspectiva da microstoria frente ao debate historiográfico mais atual ligado a global history. Considerando à própria experiência de pesquisa, Trivellato (2011) defende que as análises centradas em grupos e indivíduos que circulam por contextos geográficos mais amplos permitem ampliar a discussão sobre os encontros transculturais, comércio intercultural e outras questões mais gerais. Ao discutir sobre os desafios mais recentemente enfrentados pela microstoria, a autora traz sugestões interessantes em relação aos caminhos que poderão ser seguidos, sem, assim, abandonar preceitos fundamentais do método micro-analítico. Pertencendo à “segunda geração”, Sabina Loriga, Simona Cerutti, Maurizio Gribaudi, Sandra Cavallo e, à terceira, Francesca Trivellato, todos eles construíram suas carreiras profissionais fora da Itália, especificamente na França, na Inglaterra e nos EUA. Apesar de os referidos nomes já figurarem entre os autores que comporiam o livro, a dúvida em relação a outros que deveriam fazer parte foi algo que permaneceu durante um longo período. Por que não incluir Angelo Torre e Osvaldo Raggio? Ou Luciano Allegra, Franco Ramella e os inúmeros ex-alunos de Carlo Ginzburg? Todos eles historiadores que estão ligados ao grupo que procurou levar adiante em suas pesquisas as indicações metodológicas e teóricas dos pais fundadores da microstoria. Quais textos entrariam no projeto? Esse era um problema a ser resolvido. Antes mesmo de resolvermos essa questão, parte do material já definido foi

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Ambos são ex-alunos de Giovanni Levi em Turim, realizaram seus doutorados na EHESS, em Paris, e posteriormente construíram suas carreiras nessa instituição, assim como Sabina Loriga. 5 No livro Il commercio interculturale, Francesca Trivellato (2016) propõe uma história global a partir de uma escala reduzida ao acompanhar mercadores de diversos estratos e pertencentes a grupos religiosos diversos, que encontram maneiras de conduzir seus negócios por grandes distâncias.

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encaminhado para tradução. Porém a avanço do projeto se tornou mais demorado do que havia sido inicialmente imaginado.6 Desde 2014, quando da realização do I Seminário Internacional de Micro-história, Trajetória e Imigração, ocorrido na Universidade Federal de Santa Maria, e os dois seguintes realizados na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em 2016 e 2018, houve interesse por parte da organização dos eventos em publicar artigos de Giovanni Levi e de outros pesquisadores estrangeiros e brasileiros que dialogavam com as experiências historiográficas dos principais expoentes da microstoria italiana. Todas as três edições do seminário contaram com a participação de Levi, sendo que o último também teve a presença de Maurizio Gribaudi. Como produto das discussões realizadas em cada edição, foi possível publicar um e-book e dois livros impressos, que contam com capítulos dos pesquisadores que participaram do encontro e outros que foram convidados a encaminhar seus textos. Nos livros Ensaios de micro-história, trajetória e imigração, de 2016, e Micro-história, um método em transformação, de 2020, Giovanni Levi e Maurizio Gribaudi contribuíram com textos. Nesse último livro, buscamos agregar pesquisadores estrangeiros que possuíam ligação próxima com os principais expoentes da microstoria. Além dos já referidos Levi e Gribaudi, o livro Micro-história, um método em transformação conseguiu agregar um texto de Carlo Ginzburg e de outros pesquisadores vinculados a universidades italianas e europeias, muitos desses pertencentes à “segunda geração” da microstoria italiana. Nesse sentido, o presente livro deve ser também entendido como um desdobramento das atividades que estamos desenvolvendo conjuntamente já há alguns anos através da realização bienal do Seminário Internacional de Micro-história, Trajetória e Imigração e a publicação de livros com textos de autores estrangeiros e brasileiros.7 O diferencial deste livro que ora apresentamos é o de buscar reunir um número significativo de historiadores italianos que pertencem à “segunda geração” de microstoria. Para a concretização do projeto, que busca ampliar a interlocução com os pesquisadores estrangeiros, decidimos unir forças para levar a cabo a publicação da presente coletânea. A seleção dos textos, a estruturação da proposta, a escolha e encaminhamento do projeto para uma editora de visibilidade nacional foram decisões tomadas nos dois últimos anos.

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A tradução dos textos contou com a colaboração voluntária dos seguintes colegas historiadores: Carla Miucci, Alexandre de Sá Avelar, André Rosemberg, Alice Marcalé e Deivy Carneiro. 7 Já foram realizadas três edições do Seminário Internacional de Micro-história, Trajetória e Imigração, que começou em 2014, ocorrendo a cada dois anos. Como resultado das discussões realizadas nos eventos, já publicamos os seguintes trabalhos: Vendrame (2015); Vendrame, Karsburg e Moreira (2016); Vendrame e Karsburg (2020).

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Devido ao tamanho, custos de produção e necessidade da construção de certa unidade entre os capítulos do livro, mesmo que artificial, decidimos selecionar, para esta publicação, somente textos de ex-alunos de Giovanni Levi. Isso porque, entre o material recolhido e traduzido, se tornou mais evidente a ligação da maior parte dos autores com o referido historiador. Assim, de imediato entendemos que seria interessante que os leitores pudessem perceber como se deu o desenvolvimento do método a partir das contribuições apresentadas inicialmente no livro A herança imaterial (Levi, 2000). O objetivo é, portanto, o de mostrar de que maneira as questões teóricas e metodológicas da referida proposta avançaram no decorrer dos anos em relação à micro-história social, econômica e demográfica apresentada por Giovanni Levi. Os trabalhos desses cinco historiadores, construídos em momentos diferentes, refletem as possibilidades de análise micro-histórica, seu método e à maneira como responderam a vários debates e a novas perspectivas historiográficas. Simona Cerutti estabeleceu importantes reflexões sobre a construção de grupos sociais, sobre o legado de E. P. Thompson para a historiografia e inúmeras reflexões sobre o lugar da micro-história no debate internacional. Sabina Loriga, por outro lado, avançou profundamente na discussão da relação entre a biografia e a história. Gribaudi, por outro lado, construiu uma importante discussão acerca da espacialidade como elemento central nas interações dos sujeitos históricos. Aplicando o método microanalítico, Sandra Cavallo aponta novas compreensões sobre a história da saúde e das instituições assistenciais. Por fim, Francesca Trivellato destaca-se como referência da chamada história conectada. Entendemos que para podermos avançar nesse sentido, agregando novas perspectivas teóricas e metodológicas, é preciso ter claro o caminho que foi percorrido até então, as diferentes experiências historiográficas que nos últimos 40 anos foram surgindo a partir das sugestões conferidas pelos pais fundadores da microstoria italiana. No intuito de facilitar a compreensão da nossa decisão e das questões de fundo, precisamos de algumas linhas explicativas. De modo geral, podemos dizer que a microstoria italiana é constituída por fases distintas. A primeira delas abarca de 1966 até 1977, correspondendo ao surgimento do projeto microanalítico a partir dos primeiros experimentos de Edoardo Grendi,8 Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Logo em seguida, juntamente com Carlo

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Edoardo Grendi é considerado o principal defensor da microstoria italiana na década de 1970. Vinculado à revista Quaderni Storici, o mesmo atuou como um grande mediador dos debates do mundo anglo-saxão para a historiografia italiana, abrindo as discussões com E. P. Thompson, Karl Polanyi, Norbert Elias, Frederik Barth e os trabalhos sobre network analysis que levaram à criação da vertente social da microstoria. Em 1977, o referido pesquisador publica um artigo bastante importante sobre a micro-história. Ver Grendi (1977). Ver também Rojas (2012).

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Poni, formaram, entre os anos 1975 e 1977, no seio da revista Quaderni Storici, o núcleo duro da microstoria, agora já com uma proposta madura e bem explícita dos procedimentos microanalíticos. A referida revista se tornou um espaço de discussão, o laboratório no interior do qual se criou uma forte sinergia entre a proposta da microanálise e interesses, heterogêneos, para novos temas ou problemas de pesquisa. Uma segunda etapa, entre os anos 1978 e 1988, consolida a microstoria como uma perspectiva historiográfica de vanguarda e uma das mais inovadoras da segunda metade do século XX. É nesse momento que os trabalhos seminais de Grendi, Levi e Ginzburg9 são escritos e posteriormente se difundem pela Europa e América. Além disso, é também nesse período que Levi e Ginzburg, juntamente com Simona Cerutti, criaram e dirigiram a coleção Microstorie, editada pela Einaudi Editora, onde publicaram trabalhos de caráter microanalítico não apenas de historiadores italianos, mas de colegas como E. P. Thompson, Natalie Zemon Davis, Anton Blok, Paul Boyer, entre outros. Entretanto, é preciso que fique claro que a microstoria não é uma escola, pois o que temos são diferentes experiências historiográficas que utilizam da escala micro como ponto de partida de suas análises. Se avaliarmos os trabalhos dos principais expoentes, perceberemos que as influências teóricas e metodológicas são múltiplas. Carlo Ginzburg, que dialoga em seus trabalhos empíricos com conceitos caros à história cultural de matriz francesa (cultura popular, por exemplo), se transformou em um crítico do pós-modernismo e de algumas reflexões de Hayden White. Já Edoardo Grendi, considerado o “pai” da microstoria, estabelece um diálogo intenso com a historiografia inglesa, com os trabalhos de E. P. Thompson, Karl Polanyi e Norbert Elias, e com a antropologia econômica. Giovanni Levi, por sua vez, em seu livro A herança imaterial, estabelece uma interlocução com a antropologia social e econômica de matriz inglesa realizada por Fredrik Barth, Karl Polanyi e J. Clyde Mitchell. Poderíamos estender esses comentários aos primeiros trabalhos dos alunos de Giovanni Levi que formariam o que chamamos de segunda geração de micro-historiadores: Maurizio Gribaudi (1987b) e Simona Cerutti (1990), que em certos momentos se utilizaram e criticaram os pressupostos de Thompson e Barth, e ainda Sabina Loriga (1991), que em seu doutorado dialogou com Michel Foucault e Erwin Goffman para questionar a tese sobre o processo disciplinar entre os soldados do Piemonte no século XVIII. Nesse sentido, apesar de apresentarem características semelhantes na escrita de seus trabalhos, eles não seguem uma cartilha.

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Ver, por exemplo: Levi (2000); Ginzburg (1988; 1989); Grendi (1986; 1978; 1982).

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Giovanni Levi e Edoardo Grendi questionaram o princípio da coerência presente nos estudos de casos e experiências, apontando para a necessidade de inscrever as trajetórias individuais num conjunto relacional em que a posição do sujeito é tomada no conjunto e definida pelos laços de relação construídos em configurações específicas, pelas suas múltiplas relações de interdependência. Do ponto de vista metodológico, a análise das redes sociais (network analysis) revela a vantagem de que é possível observar os modos de ação, frequentemente disjuntos, pelos quais os agentes devem se orientar. Isso oferece um meio de examinar mais sistematicamente a estrutura e a densidade do espaço social em que as experiências individuais e coletivas se encontram inseridas. Obviamente que não teremos acesso a todo o universo das relações e estratégias adotadas pelos sujeitos analisados devido ao caráter incompleto de qualquer documentação e também pela impossibilidade de apreender toda a complexidade do social. Todavia, num contexto específico, é possível mapear os recursos e mecanismos mobilizados. Mais que isso, os mencionados historiadores apontaram que o fundamental é mostrar a multiplicidade da interação do sujeito numa determinada realidade. Nesse sentido, é preciso entendê-lo na sua totalidade, diversidade e contradições, buscando apreender seus inúmeros “eus”. Entre os anos 1989 e 1991, temos o abandono sucessivo da revista Quaderni Storici pelos pais fundadores e, a partir de 1992, o surgimento da terceira fase, que chega até os dias de hoje. Segundo Aguirre Rojas (2012:52), essa última etapa é marcada pela fragmentação do projeto mais amplo em vários itinerários individuais importantes. Aqui podemos citar como exemplo o trabalho de Maurizio Gribaudi (Mondo operaio e mito operaio: spazi e percorsi sociali a Torino nel primo Novecento, 1987) e de Simona Cerutti (La ville et les métiers. Naissance d'un langage corporatif (Turim, siècles 17e-18e), 1990), respectivamente, sobre a definição da classe trabalhadora em Turim no início do século XX e o nascimento das corporações entre os séculos XVII e XVIII. Nos dois casos, apenas o olhar mais atento e investigação intensiva permitiram reconstruir a configuração e os agrupamentos sociais, fluidos e descontínuos, como um resultado da interação de diferentes caminhos individuais através de uma variedade de contextos. Essa última fase da microstoria, assim como a primeira, opera numa escala reduzida, utilizando fontes primárias de origens diversas, apesar de ganhar destaque a documentação paroquial e judicial. Mas, ao invés de privilegiar materiais extraordinários como ponto de entrada em direção a uma cultura estrangeira, Gribaudi e Cerutti procuram acessá-la por meio do estudo dos elementos ordinários e das relações interpessoais. Enxergam os indivíduos como pertencentes a grupos e redes sobrepostos com fronteiras fluidas, com relações sociais mais ou 12

menos instáveis, fazendo uso de status (obrigações, diretos e limites) em diferentes situações, que lançam mão, a todo momento, de diversos esquemas interpretativos e constroem mundos díspares mesmo vivendo juntos. Longe de ser um todo coerente, essa corrente social vê a vida social feita de diferenciais, cada um dos quais oferece uma possibilidade de mudança. O presente livro irá se centrar nessa última fase da microstoria, na qual é já possível identificar um novo desdobramento de que falaremos na sequência. Apresentaremos reflexões de cinco pesquisadores que possuíam uma ligação direta com Giovanni Levi – já que são exaluno(as) e orientando(as) –, que muito contribuíram para a consolidação e ampliação dos estudos microanalíticos. Com exceção de Trivellato, o grupo compõe parte daquilo que chamamos de “segunda geração” da microstoria, figurando superficialmente no debate brasileiro sobre o referido método. Os principais trabalhos publicados em português que tratam da microstoria italiana fixam seus esforços em analisar as experiências de pesquisa e a produção historiográfica de Ginzburg, Levi e Grendi.10 De certo modo, isso que foi apontado justificaria a importância da presente coletânea, uma vez tem como proposta indicar alguns dos caminhos percorridos pela microstoria nos últimos 30 anos. É importante ressaltar que os capítulos que compõem o presente livro apresentam textos produzidos em diferentes momentos da vida intelectual dos seus autores e tratam de assuntos diversos, apesar de todos manterem uma ligação com a proposta metodológica da microstoria. Esses historiadores pensam as mais diversas questões, mas sempre relacionadas à microhistória: o papel do sujeito, a influência de E. P. Thompson para essa corrente historiográfica, mas também suas limitações analíticas; os pretensos debates entre uma versão social e cultual da microstoria; a questão do espaço e da morfologia social; uma aplicação dessa metodologia ao estudo das amas de leite e a relevância da micro-história em um contexto historiográfico dominado pelos estudos de global history, entre outros. Passemos, agora, à apresentação dos autores e capítulos que compõem o presente livro. No primeiro capítulo da presente coletânea, intitulado “A pluralidade do passado”, Sabina Loriga realiza uma importante análise da questão da temporalidade na história a partir da obra de Fernand Braudel e das contribuições à temática realizadas por Paul Ricoeur. A autora ressalta também as reflexões de pensadores do século XVIII e XIX (Herder, mas sobretudo Dilthey) a respeito da a pluralidade – espacial e temporal – das realidades históricas. Por fim, termina o texto analisando as contribuições conferidas pelos historiadores ligados à microstoria acerca da

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Ver, entre outros: Rojas (2012:75 e segs); Lima (2006); Oliveira (2009).

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questão biográfica, indicando o quanto as trajetórias de vida ajudam apreender os interstícios institucionais. Uma das autoras mais conhecidas entre as que compõem essa coletânea, Sabina Loriga talvez seja aquela que mais tenha se afastado dos pressupostos teóricos da primeira geração da micro-história.11 Professora na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS – Paris) há muitos anos dirige com Jacques Revel seminários de investigação sobre a linguistic turn e seus impactos na historiografia atual. Se, inicialmente, suas primeiras pesquisas mantinham um diálogo grande com os pressupostos da microstoria, o mesmo não ocorre posteriormente. Em sua tese de doutorado, Loriga (1991) analisou o exército piemontês no século XVIII, questionando as hipóteses foucaultianas acerca da criação de uma sociedade disciplinar. No final dos anos 1990, a referida pesquisadora vai lentamente se afastando de análises microhistóricas e passa a se dedicar aos estudos biográficos e às análises de obras de pensadores como Paul Ricoeur e Reinhart Koselleck. Maurizio Gribaudi e Simona Cerutti iniciaram seus estudos acadêmicos na Universidade de Turim, onde se tornaram discípulos de Giovanni Levi, adotando a perspectiva microanalítica em suas pesquisas. Mesmo com trajetórias de pesquisa diversas, ambos percorreram uma careira acadêmica bastante similar. Atualmente, os dois são professores na École de Hautes Études em Sciences Sociales em Paris, sendo ainda coordenadores do Laboratoire de Démographie et d’Histoire Sociale (LaDéHiS). Nos últimos 30 anos, Simone Cerutti tem se dedicado a estudar a história das hierarquias e classificações sociais das cidades europeias do Antigo Regime, com ênfase nas identidades, pertencimentos coorporativos, nas questões ligadas à cidadania e no entendimento da condição de estrangeiro. Também já abordou o tema das classificações jurídicas e processuais no contexto do Antigo Regime. Entre a produção da autora, destacam-se os seguintes livros: Giustizia sommaria: pratiche e ideali di giustizia in una società di Ancien Regime (Torino, XVIII secolo) (Cerruti, 2003); La ville et les métiers: naissance d’un langage corporatif (Turin, 17e-18e siècles) (Cerruti, 1990) e Étrangers: étude d’une condition d’incertitude dans une société d’Ancien Régime (Cerruti, 2012a). Nesses dois últimos trabalhos, Cerutti realiza uma crítica sistemática à percepção dos processos sociais como algo movido por forças coletivas e estruturais. Ao invés de partir da ideia a priori de pertencimento dos sujeitos a determinados grupos, a autora passou a interrogar a maneira por meio da qual as relações entre os sujeitos

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Sabina Loriga começou sua trajetória como pesquisadora analisando a questão da magia e da bruxaria, tema em destaque nos anos 1980, e publicou seu primeiro artigo com perspectiva microanalítica na revista Quaderni Storici, três anos depois (Loriga, 1983).

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criavam solidariedades, vínculos e alianças. Nesse sentido, as redes de interdependência do indivíduo tornar-se-iam um contexto no qual se inscreveriam as biografias. Defende, portanto, que por meio da aplicação de abordagem microanalítica é possível compreender a complexidade das relações que ligam os indivíduos; o tempo de suas experiências, ações limitadas e estratégias de negociação dentro do contraditório e incoerente sistema normativo. Em vários de seus artigos, a autora discute também os elementos da microstoria a partir da obra de E. P. Thompson, assim como de Frederik Barth, um dos seus principais interlocutores. Simona Cerutti é considerada uma das grandes historiadoras italianas da atualidade, possuindo uma obra referencial, sobretudo do ponto de vista teórico-metodológico,12 discutindo o estatuto das fontes judiciais e policiais e sua importância para a história social e cultural. Essa brevíssima contextualização pode nos ajudar na compreensão das discussões realizadas por Simona Cerutti nos dois textos publicados na presente coletânea. No primeiro deles, “A contrapelo: diálogo sobre o método”, Cerutti se aproveita do lançamento de uma nova edição francesa de “Mitos, emblemas e sinais”, de Carlo Ginzburg, para dialogar com o historiador acerca do conceito de sinais e das fontes como condição da possibilidade de todo conhecimento histórico. Utiliza a documentação do campo jurídico para mostrar que mais do que sinais, as fontes devem ser vistas como ações. Já no capítulo seguinte da autora, ela questiona a separação, construída por alguns comentadores, entre um eixo social e eixo cultural no seio da microstoria desde seu início. O objetivo principal é discutir as razões dessa suposta separação, assim como algumas condições para uma “unificação” entre esses modelos de história social e história cultural. Nesse sentido, no texto intitulado “Quem está embaixo? E. P. Thompson, um historiador das sociedades modernas: uma releitura”, Simona Cerutti se aproveita da tradução para o francês de Costumes em comum (Thompson, 1998), realizada apenas em 2015, para analisar o frutífero diálogo realizado entre a micro-história e as obras do historiador inglês. Apresenta, portanto, uma longa discussão acerca da viabilidade da produção da história vista de baixo, bem como reflete a respeito de algumas limitações de certos conceitos – povo, plebeus, agência, ação, entre outros – utilizados por Thompson em alguns de seus mais importantes artigos. Também de origem italiana, Sandra Cavallo e Maurizio Gribaudi são algumas das principais referências quando o tema é a história da Paris popular da primeira metade do século XIX. Após ter se especializado em demografia e morfologia urbana, o referido autor publicou seu trabalho sobre os percursos operários na Turim no século XX. Por meio da reconstrução 12

A título de exemplo das obras de Cerutti, podemos citar, entre outras: Cerutti (1990; 2010a; 2010b; 2012a; 2012b; 2014).

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das experiências individuais e familiares de mobilidade do campo para a cidade e dentro do próprio espaço urbano, o autor buscou analisar de que modo a vida cotidiana se mostrava articulada com comportamentos políticos e a maneira como havia se formado o tecido social da sociedade operária, ganhando destaque o tema dos ciclos de integração urbana realizadas no decorrer de duas ou três gerações (Gribaudi, 1987a). Diferentemente de Simona Cerutti, Sabina Loriga e Maurizio Gribaudi, que fizeram carreira na EHESS, Sandra Cavallo construiu sua carreira na Inglaterra, tendo realizado o doutorado na Universidade de Exeter, tornando-se em seguida professora na Royal Holloway – University of London. Desde então, ela tem trabalhado com a história social e cultural da Itália moderna e, em particular, com os temas do gênero e da família, da medicina e do corpo, bem como da cultura material doméstica. Atualmente, pesquisa a história e o futuro do ar; gênero e espaço nos palácios italianos do período moderno e, em textos médicos, vernáculos para o uso doméstico na Itália do século XVI e XVII. Em seus principais livros, Cavallo (1995; 2007) utiliza os elementos centrais da microstoria italiana: redução de escala como paradigma epistemológico, a análise de indícios como uma janela de acesso a processos históricos e a utilização intensa e exaustiva das fontes. É por meio dos aspectos referidos, avaliando todas as dimensões possíveis e sentidos do processo social vivido que a autora realiza a pesquisa apresentada nesta coletânea. O texto “Ofícios aparentados: cirurgiões-barbeiros e artesãos dos corpos em Turim (séculos XVII e XVIII)” tem como objetivo analisar a aprendizagem e a transmissão do ofício de cirurgiãobarbeiro no período em que essa profissão atingiu o auge de seu sucesso. Foi quando os cirurgiões-barbeiros se tornaram fundamentais na supervisão dos hospitais barrocos, no controle da assistência sanitária dos exércitos, na assistência domiciliar aos pobres, bem como na prestação de serviços cosméticos, sanitários, de higiene, etc. Mais recentemente, Gribaudi (1998) conduziu, juntamente com outros pesquisadores, uma reflexão ambiciosa, empírica e teórica, sobre os vínculos e as redes nas quais os atores sociais se inscrevem, mas igualmente sobre as relações entre estruturas e dinâmicas relacionais. Não podemos esquecer também o livro dedicado à revolução de 1848 (Gribaudi, 2008), qualificada por ele como “esquecida”, na qual analisa os mecanismos de apagamento historiográfico desse evento em setores inteiros da historiografia francesa. Por último, em 2014, Gribaudi lançou outro livro, em que oferece, através de uma abordagem microanalítica, uma nova interpretação sobre as formas de organização dos meios populares parisiense desde a Revolução Francesa até a Revolução de 1848 (Gribaudi, 2014). Nesse trabalho, o autor sintetiza

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todos os métodos de pesquisa utilizados ao longo de sua carreira,13 indicando para a influência das reflexões de autores como Walter Benjamin, Aby Warburg, Giovanni Levi, Norbert Elias, Marc Bloch, Charles Tilly, Edward Shorter, Peter Laslett, J. Clyde Mitchel, A. L. Epstein, Jeremy Boissevain e Fredrik Barth.

Na presente coletânea, são apresentados dois textos de Maurizio Gribaudi. No primeiro deles intitulado “Percursos individuais e evolução histórica: quatro trajetórias operárias na França do século XIX”, o referido autor analisa as experiências de mobilidade de indivíduos que se fixaram em Paris num determinado espaço geográfico e social. Ao fazer isso, pensa a experiência individual em toda a sua particularidade como algo que é inseparável do contexto, em que ambos vão evoluindo e se modificando mutuamente. Nesse sentido, ao analisar o processo de “enraizamento” no ambiente urbano por meio de diferentes trajetórias de operários, é destacado o papel das configurações de relações de cada sujeito, de suas referências emotivas, simbólicas, da memória familiar, dos recursos e percepção em relação ao próprio caminho e sociedade na qual se encontra inserido. A ideia de que cada indivíduo possui uma “agenda oculta”, composta pelos aspectos apontados acima, torna necessário não apenas identificar práticas sociais, mas buscar suas lógicas internas e formas. Considerando a história como um “organismo vivo”, por meio das trajetórias dos operários estudados são acessadas suas configurações individuais, os espaços sociais e profissionais que, em constante movimento, evoluem por meio de continuidade, rupturas e diversificação. Nesse sentido, é necessário apreender os aspectos que caracterizam os processos de evolução histórica e os percursos biográficos, o que permite perceber a impossibilidade de olhar para cada trajetória individual de forma separada da natureza do espaço social onde ela mesma se desenvolve. Em tudo isso, Gribaudi analisou quatro percursos de operários que se encontravam inscritos no interior de configurações sociais específicas, que se caracterizam pelas possiblidades variadas de cada um de acionar e articular uma gama variada de recursos, memórias e símbolos. Desse modo, uma trajetória é percebida, portanto, como o desenvolvimento Com semelhanças entre si, como o fato de terem emigrado para Paris com a mesma idade, cada um dos sujeitos analisados vivenciou de maneira diferente a realidade urbana parisiense. Nesse sentido, a trajetória dos quatro operários é percebida como o desenvolvimento de um ser orgânico totalmente imerso num determinado espaço social e pelas relações ali existentes. Toda essa discussão é percebida como bastante importante para pensar

13

Ver, a este respeito, sua obra na bibliografia deste projeto.

17

o tema da identidade do emigrante, não como algo determinado por conta de uma origem, mas sim como resultado de um processo em que as relações entre indivíduo e contexto, permanência e ruptura não podem serem vistas dissociadas. Uma abordagem microstoria que permita reconstruir as ações, os significados conferidos pelos próprios atores sociais, as escolhas bem-sucedidas ou não e, especialmente, o papel das interdependências diversas no interior de um espaço que evolui e se transforma continuamente é característica bastante presente nos estudos de Gribaudi. No segundo texto do autor, com título “O saber das relações: vínculos e raízes sociais de uma administração na França do século XIX” é analisada, através de anotações e correspondência de funcionários públicos que passam a ocupar cargos administrativos, a importância das práticas relacionais e da linguagem na gestão das carreiras. Mais importante do que os títulos profissionais, o que ganha destaque é o patrimônio relacional da família, seu status e o da parentela, bem como a quantidade e qualidade dos vínculos; a existência de uma “cultura de relações” como um aspecto determinante para pensar as formas de estruturação da administração e como operam as estratégias de mobilidade profissional e social, desde a Revolução até a Primeira República francesa. Considerada como pertencente já à terceira geração da microstoria italiana, temos Francesca Trivellato, que foi professora de história moderna na Yale University e atualmente está ligada ao Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Os temas do trabalho, mercado e comércio intercultural, são discussões presentes em suas pesquisas (Trivelatto, 2000; 2016). Em seu último livro publicado em italiano, Il commercio interculturale: la diáspora sefardita, Livorno e i traffici globali in età moderna, a autora analisa o papel da cultura e das instituições na ascensão do capitalismo comercial através da atuação de grupos de comerciantes judeus e as redes comércio numa perspectiva global, ao estudar a base e extensão das solidariedades entre grupos de indivíduos marcados por afinidades plurais. Desse modo, partindo de uma abordagem micro, atenda aos vínculos entre sujeitos, às dinâmicas de grupos comerciais, aos modos de agir e às lógicas que permitiam que comerciantes de um lugar específico da península itálica, Livorno, estendessem suas redes mercantis mediterrâneas até a Índia no decorrer do Setecentos. Ao fazer isso, Trivellato questiona as ideias que colocavam a solidariedade étnica e religiosa como elemento basilar para a constituição de uma rede de créditos no período pré-industrial, mostrando, por outro lado, a presença de uma pluralidade de agentes envolvidos no comércio intercultural e de conexões entre grupos diversos dentro de uma escala territorial bastante ampla. Para tanto, analisa a relação entre judeus de diferentes lugares com os cristãos e indianos, os casamentos, as alianças, os contratos comerciais e diplomáticos por meio de cartas e fontes existentes em diversas cidades da Europa e Ásia (Trivellato, 2016). Nesse sentido, o livro 18

mencionado é um exemplo de uma proposta historiográfica que pretende pensar questões amplas, ou seja, uma história global, a partir de uma escala reduzida, sem renunciar a alguns pressupostos fundamentais da microstoria italiana. Os dois textos de Francesca Trivellato, que compõem os capítulos 8 e 9 da presente coletânea, apresentam discussões que procuram tocar numa questão que a autora considera ser o verdadeiro “calcanhar de aquiles” da microstoria, que é a relação entre a escala micro e a macro.

No

texto

“Microstoria/microhistoire/microhistory”,

Trivellato

parte

de

questionamentos acerca do que seria a micro-história e o que teria mantido os historiadores italianos reunidos em torno dela. Remonta às preocupações iniciais de seus principais expoentes, bem como às compartilhadas em relação às escalas, ao invés de defender a supremacia da escala micro. Uma discussão profunda e mais completa sobre a inter-relação entre o pequeno e o mais amplo, o local e o global, é algo apontado como uma fragilidade na microstoria. Sem buscar abrir mão dos principais pressupostos da referida prática historiográfica, no segundo texto, intitulado “Existe um futuro para a micro-história italiana na era da história global?”, Trivellato tem como um dos objetivos indicar de que modo a perspectiva micro pode ainda contribuir para o avanço dos estudos nas ciências sociais, especialmente nas últimas décadas, em que palavras como “global” e “globalidade” têm ganhado destaque. Assim, inicia a discussão se questionando se método da microstoria é ainda relevante e que mudanças teve nos últimos trinta anos. O principal, portanto, é refletir sobre a relação entre escalas e propor maneiras de combinar micro-história e história global. Nesse sentido, aponta aspectos que afastam e aproximam as duas perspectivas, indicando estudos que tomaram o estudo da trajetória de indivíduos ou grupos como exemplo de trabalhos que aproximam o diálogo. Itinerários, circulação de pessoas e objetos, conexões propiciadas pelo movimento dos próprios sujeitos, sem deixar de lado a agência desses, têm se apresentado como caminhos para acessar contextos que possuem uma dimensão local e global. Perspectivas que levem em conta vidas globais e que atentam para as conexões e redes translocais estabelecidas pelos próprios sujeitos são propostas da chamada micro-história global, conforme definiu Trivellato. Por fim, temos os artigos dos dois organizadores dessa coletânea, inspirados em algumas contribuições dos historiadores italianos que compõem o livro. Em “Processos criminais e micro-história: direito, grupos populares e a Justiça Criminal em Minas Gerais (1854-1941), Deivy Carneiro analisa, utilizando os processos criminais de calúnia e injúria, elementos da vivência cotidiana de alguns grupos que habitaram Juiz de Fora entre os anos de 1854 e 1941. Primeiramente, o autor estabelece o contexto social em que aconteceram os conflitos verbais e, 19

após, examina os principais temas dos insultos verbais e os usos sociais da linguagem ofensiva. Em seguida, Deivy Carneiro observa aspectos do funcionamento do aparelho jurídico local, analisando principalmente a relação mantida entre a população subalterna e a Justiça local. Fazendo uso de conceitos desenvolvidos por Cerutti acerca do papel do direito nas diversas sociedades, o autor percebe a Justiça Criminal não apenas como um sistema normativo, mas sobretudo como um instrumento de classificação social e que instituiu práticas e visões de mundo muito além de um sistema punitivo. Já Maíra Vendrame, no último capítulo, intitulado “Pensando o problema das conexões, do equilíbrio e da complexidade a partir da perspectiva da micro-história”, discute de que maneira o método da microstoria italiana propiciou o desenvolvimento dos estudos ligados aos movimentos migratórios de curta e longa distância. A redução do foco de análise, com atenção para as especificidades dos lugares de partida e para os percursos de grupos e sujeitos, possibilitou apreender as diferentes motivações dos deslocamentos, suas dinâmicas e o papel da mobilidade no universo camponês. Uma abordagem centrada nas experiências particulares de uma família ou indivíduo, que busca acompanhar as escolhas e o percurso, desde a aldeia de origem até o local de instalação, aparece ainda como uma escolha metodológica interessante para levantar novos questionamentos sobre o tema das migrações transoceânicas, das conexões, racionalidades e agência dos sujeitos na articulação das próprias transferências para a América. Assim, lembrando o que é destacado por Giovanni Levi, a microstoria consiste em um método de investigação, não estando, portanto, ligada a um tema ou ao tamanho do objeto de estudo. Desde a publicação do livro Herança imaterial, em 1985, pela Einaudi, as influências do trabalho em novas pesquisas têm sido diversas e se ampliado cada vez mais. O que trazemos na presente coletânea são experiências historiográficas bastante ecléticas de pesquisadores que haviam sido alunos e orientandos de Levi. Essa diversidade e referências distintas em relação ao trabalho do mestre é um aspecto que permite perceber a microstoria como uma prática historiografia e não uma escola teórica, que a cada década se amplia, se repensa e se transforma, porém não deixa de lado alguns dos princípios fundamentais, como o de submeter nossos objetos de análise à lente do microscópio. Dedicamos esse trabalho ao mestre e amigo Giovanni Levi e a todos os outros pesquisadores que colaboraram com textos. Desejamos a todos uma boa leitura. Referências AGO,

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1

A pluralidade do passado

Sabina Loriga

“Think now History has many cunning passages, contrived corridors And issues, deceives with whispering ambitions, Guides us by vanities. Think now She gives when our attention is distracted And what she gives, gives with such supple confusions That the giving famishes the craving.” (Thomas Stern Eliot. Gerontion. In: Poems, 1920).

I. Durante a primeira metade do século XX, a ideia de erigir uma história impessoal seduziu diversos historiadores. A batalha lançada, no fim do século precedente, por Karl Lamprecht e François Simiand contra a abordagem biográfica e cronológica foi logo retomada por numerosos historiadores sociais, tradicionalmente mais atentos à dimensão coletiva da experiência histórica.1 Sem dúvida, a obra de Fernad Braudel desempenhou um papel central nesse trabalho de despersonalização do passado. Em La Méditerranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II (Braudel, 1990:512-520), ele reivindica a superioridade da história das estruturas e da história dos espaços, ambas fundadas sobre o que há de mais anonimamente humano em relação à história biográfica. Assim, Carlos V não teria sido nada mais do que o produto de uma tendência histórica impessoal (um acaso calculado, preparado e desejado pela Espanha) e não o autor do projeto imperial: “A Europa se encaminhava em direção à construção de um vasto Estado”. Essa abordagem suscitou inúmeras respostas críticas. Por exemplo, Derek Beales, em uma aula inaugural proferida em Cambridge, em 20 de novembro de 1980, observava que Carlos V não podia ser compreendido como um mero produto da Espanha, visto que “no final do século XV, não havia ainda uma vontade coletiva que pudesse ser identificada à Espanha” (Braudel, 1990:21-23). Beales sublinha a impossibilidade de fundar a racionalidade histórica sobre uma entidade coletiva (com efeito, o que se entende por “vontade” da Espanha?) assim como o risco latente de anacronismo ao se

 1

Trad. de Alexandre de Sá Avelar (InHis-UFU). Rev. téc. Deivy Ferreira Carneiro (InHis-UFU). Cf. Loriga (2014).

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reduzir o coletivo ao nacional (poder-se-ia falar de Espanha em uma época na qual não existia ainda uma configuração nacional?). 2 Para Braudel, o sacrifício da dimensão individual estava estritamente ligado a uma nova arquitetura do tempo histórico. La Méditerranée se funda sobre três tempos diferentes de ritmos desiguais: a história quase imóvel da geo-história, praticamente fora do tempo, feita frequentemente de retornos insistentes de ciclos que recomeçam sem parar; aquela, ritmada lentamente pelas conjunturas econômicas da sociedade e marcada por ondas mais cheias; enfim, a história tradicional, événementielle, relacionada às oscilações rápidas e nervosas do indivíduo. As relações existentes entre esses três tempos (longo, médio e curto) permanecem ambíguas. Trata-se de realidades isoladas ou conectadas? São durações ou ritmos diferentes? Há uma hierarquia entre eles? Por vezes, Braudel descreve uma interação cambiante na qual todos os planos têm seu valor e cada duração representa uma camada de explicação. Ademais, ele manifesta sua predileção pelo primeiro tempo e seu desprezo pelo último, qualificado como agitação de superfície (Braudel, 1990:13).3 Ao longo dos anos, Fernand Braudel retornou a essas questões em dois célebres artigos metodológicos, publicados em 1958: “Histoire et sciences sociales: la longue durée” (Braudel, 1958a) e “Histoire et sociologie” (Braudel, 1958b). Longe de serem uma simples sistematização da abordagem proposta em La Méditerranée, esses textos vão marcar uma guinada importante. Logo de início, a história é definida como uma dialética da duração: pela duração, graças à duração, a história é o “estudo do social, de todo o social, e então do passado, e também do presente: um e outro inseparáveis”(Braudel, 1958b:104). Enquanto a sociologia privilegia uma unidade de tempo muito breve (a instantaneidade do presente) e a antropologia uma duração muito longa (a imobilidade dos milênios), a história inscreve os fatos sociais na longa duração. Em uma polêmica com o sociólogo George Gurvitch, que havia distinguido, no interior da mesma sociedade, oito gêneros de temporalidades (Gurvitch, 1957:73-84),4 a noção de tempo social é colocada em perspectiva: “Como o historiador se deixaria convencer [pelas diferenças temporais]? Com esta gama de cores, seria impossível que ele reconstruísse a luz branca unitária que lhe é indispensável” (Braudel, 1958a:78-79). A ênfase se desloca da multiplicidade à unidade temporal:

2

Cf. Blanning e Cannadine (1996). Cf. Hall (1980). 4 Cf. Maillard (2005:197-222). 3

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Este desacordo é mais profundo do que aparenta: o tempo do sociólogo não pode ser o nosso; a estrutura profunda do nosso trabalho, se não me engano, lhe causaria repugnância. Nosso tempo é medido, assim como o dos economistas. Quando um sociólogo nos diz que uma estrutura não cessa de se destruir para se reconstruir, nós aceitamos, com boa vontade, essa explicação que, de resto, é confirmada pela observação histórica. Mas gostaríamos de conhecer, no eixo de nossas exigências habituais, a duração precisa desses movimentos positivos ou negativos. [...] O que interessa apaixonadamente a um historiador é o entrecruzamento desses movimentos, sua interação e seus pontos de ruptura; coisas que só podem ser registradas na relação com tempo uniforme dos historiadores, medida geral de todos esses fenômenos, e não ao tempo social multiforme, medida particular de cada um desses fenômenos [Maillard, 2005:77-78].

Nessa perspectiva, a longa duração, a conjuntura e o evento se encaixam sem dificuldades, pois se medem em uma mesma escala do tempo universal. Os dois artigos de 1958 têm uma conotação política, no sentido amplo do termo. Braudel acredita que sua distinção entre as três durações (longa, média e curta) deveria oferecer uma moldura epistemológica e metodológica comum às ciências sociais. Convencido de que a longa duração é “a linha mais útil para uma observação e uma reflexão comuns às ciências sociais”, Braudel defende que uma renovada arquitetura dessas ciências deve ter a história como pedra angular: “A história me parece como uma dimensão da ciência social, sendo parte integrante dela. O tempo, a duração e a história se impõem, ou deveriam se impor, a todas as ciências do homem. Suas tendências não são de oposição, mas de convergência” (Maillard, 2005:105). Essa é uma passagem fundamental. Como sublinharam Gérard Noiriel e Jacques Revel, em comparação com La Méditerranée, Braudel alterou sensivelmente sua visão. As ambiguidades se dissolveram. Os três tempos são agora apresentados como durações objetivas, matematicamente comensuráveis a fim de estabelecer uma história serial. Apreendido na totalidade da história (e não como objeto de estudo, como era o caso na tese), o tempo aparece, desde então, como uma realidade mensurável. As durações são projetadas sobre uma escala única, o que permite sobrepô-las, como os andares de uma casa, de modo a hierarquizar os domínios do saber [Noiriel, 2003:136].

Por outro lado, a ideia de uma hierarquia da duração se impõe, visto que a longa duração não é mais somente aquela de uma temporalidade diferente, considerada como a base de todas as outras durações: ela repousa sobre o sacrifício do tempo vivido (Revel, 1999:17).

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II. Na verdade, a possibilidade de apagar as individualidades da narrativa histórica não é uma operação simples. Desse ponto de vista, a leitura de La Méditerranée proposta em, de Paul Ricouer, permanece magistral. Podemos distinguir três elementos fundamentais. Antes de tudo, Ricoeur observa que a noção de longa duração corre o risco de extrair o tempo histórico da dialética viva entre o passado, o presente e o futuro, perdendo de vista, assim, o tempo humano: Enquanto que, na narrativa tradicional ou mítica, e ainda na crônica que precede à historiografia, a ação é relacionada a agentes que podemos identificar, [...] a históriaciência se refere a objetos de um tipo novo apropriados ao seu modelo explicativo. [...] A nova história parece não ter personagens [Ricoeur, 1983-85:314, t. I].

Em seguida, ele explica os limites da autorrepresentação da história apresentada em La Méditerranée a qual, apesar das declarações de seu autor, não chega a apagar o individual e o factual da narrativa: O homem está presente em toda parte e com ele um pulular de acontecimentos sintomáticos: a montanha é figurada como refúgio e como abrigo para homens livres. Quanto às planícies costeiras, elas não são evocadas sem a colonização, o trabalho de drenagem, o beneficiamento das terras, a disseminação das populações. [...]. Os grandes conflitos entre os impérios espanhol e turco já lançam sua sombra sobre as paisagens marinhas. E com as relações de força, os acontecimentos já começam a despontar [Ricoeur, 1983-85:365, t. I].

Longe de ser esvaziada, a ação permanece central no conjunto das três partes de La Méditerranée (“a obra está colocada em bloco sob o signo da mímesis da ação”) e a própria noção de história de longa duração deriva do acontecimento dramático, ou seja, do acontecimento enredado em uma intriga (Ricoeur, 1983-85:379, t. I). Por meio dessa posição crítica, Ricoeur esvazia o acontecimento do seu caráter impetuoso (“ele não é necessariamente breve e nervoso como se fosse uma explosão”), para assinalar sua condição de sintoma ou de testemunho (Ricoeur, 1983-85:383, t. I). Por fim, Ricoeur compara a obra de Braudel com três “fábulas sobre o tempo”, escritas nas primeiras décadas do século XX: Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf (1925), La montagne

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magique, de Thomas Mann (1924), e À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust (191327). Uma comparação entre as páginas consagradas ao texto de Virginia Woolf e aquelas dedicadas ao La Méditerranée me parece particularmente significativa. Em sua análise de Mrs. Dalloway, Ricoeur recorda a extraordinária diferença existente entre o tempo cronológico, representado pelas batidas do Big Ben e por outros sinos e relógios que marcavam as horas, e o tempo individual. O tempo oficial com o qual as personagens são confrontadas não é apenas o tempo dos relógios, mas tudo o que é a ele relacionado; é o tempo monumental, a voz da autoridade (a saber, o espírito do Império britânico). Da mesma forma, o tempo individual coincide com a experiência do tempo sob a ameaça e sob o signo da morte. Os diferentes protagonistas instauram uma relação particular com essas marcas do tempo e engendram sua própria duração5. Ricoeur (1983-85:199, t. II) comenta: “Irrevogável, a hora? E nesta manhã de junho, entretanto, o irrevogável não oprime, ele reaviva a alegria de viver [...]. Assim caminha o tempo interior, puxado para trás pela memória e empurrado para a frente pela expectativa”. Para ele, não se trata apenas de opor o tempo dos relógios ao tempo interior, mas de compreender a variedade das experiências temporais concretas dos diversos personagens: “as badaladas do Big Ben não escandem de modo algum um tempo neutro e comum, mas se revestem, a cada vez, de uma significação distinta” (Ricoeur, 1983-85:234, t. II). Dessa forma, Ricoeur introduz a dimensão do conflito. Não apenas o tempo não é o mesmo para todos – externa e não intimamente –, mas o tempo público é esvaziado por visões inconciliáveis. Ele não une, mas divide. A partir destas reflexões, Ricoeur pretende mostrar que a narrativa ficcional é mais rica em informações sobre o tempo, no nível da arte de composição, do que a narrativa histórica. Ele esclarece: Não que a narrativa histórica seja extremamente pobre a esse respeito [...]. Contudo, imposições [...] fazem com que as diversas durações consideradas pelos historiadores obedeçam a leis de sua inserção as quais, apesar das inegáveis diferenças qualitativas quanto ao ritmo e ao andamento dos acontecimentos, tornam essas durações e as velocidades que lhes correspondem fortemente homogêneas [Ricoeur, 1983-85:295, t. II].

Longe de manipular as variações temporais, a história elabora um terceiro tempo, o tempo propriamente histórico, na interseção entre o tempo vivido e o tempo cósmico. Ela é fundada

5

Em Orlando (1928), Virginia Woolf retoma a oposição entre o tempo cronológico (“o tempo do relógio”) e o tempo da consciência individual (“o tempo da mente”).

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em mecanismos de conexão que asseguram a reinserção do tempo vivido no tempo cósmico: o calendário, a passagem das gerações, os arquivos (nesse caso, o documento e o rastro). Desse ponto de vista, Ricoeur descreve o tempo histórico como destituído de laços diretos com aquele da memória e da expectativa. Por um lado, o tempo histórico parece se resumir em uma sucessão de intervalos homogêneos, portadores da explicação causal ou nomológica; por outro, ele se dispersa em uma multiplicidade de tempos, cuja escala se ajusta à das entidades consideradas: tempo curto do acontecimento, tempo semilongo da conjuntura, longa duração das civilizações, duração muito longa dos simbolismos fundadores do estatuto social como tal. Esses “tempos da história” [...] parecem não ter relação discernível com o tempo da ação [Ricoeur, 1983-85:314-315, t. I].

Quero enfatizar algumas das expressões empregadas por Ricoeur: “Os historiadores obedecem a leis de inserção”, “a longa duração é homogênea”, “o tempo da história não tem relação com o tempo da ação”... Elas levantam muitas interrogações sobre o lugar dessas páginas na reflexão do filósofo francês. Desde Histoire et vérité, ele sempre abordou a questão da verdade histórica em sua dupla dimensão: a da verdade no conhecimento histórico e aquela da verdade na ação histórica. Por que ele parece desatar ou desconectar essas duas dimensões? Ele propõe renunciar à verdade da ação? É difícil ter uma resposta para essas questões. De toda maneira, eu gostaria de esclarecer que a ideia segundo a qual a história deve lançar sobre o passado “uma única luz branca” nem sempre foi compartilhada pelos historiadores. III. No longo debate sobre a história, iniciado durante o século XVIII e que atravessou todo o século XIX, alguns autores destacaram a pluralidade – espacial e temporal – do mundo histórico. Em 1773, Johann Gottfriedu Herder exprimiu sua contrariedade em relação a todo o excesso de síntese. Ele observa a fragilidade das caracterizações gerais: não podemos nos contentar em pintar um povo, um período, um país; agrupar esses conjuntos em um termo genérico que nada significa e sob o qual os indivíduos pensam e sentem de maneira diferente (Herder, 2000:69). Vinte anos mais tarde, ele retorna aos limites das generalizações históricas: “O temor me assalta quando eu pretendo caracterizar uma nação inteira ou período em algumas palavras; que enorme soma de diversidade abrange, com efeito, palavras como ‘nação’ ou os ‘séculos da Idade Média’, ou ainda a época antiga ou moderna” (Herder, 1965:441-442).

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Toda a sua reflexão, baseada essencialmente nas diferenças nacionais, ilumina a heterogeneidade dos tempos. Conforme escreve em 1799, não há no mundo duas coisas que tenham a mesma medida de tempo. Cada fenômeno (social, cultural, estético) tem seu próprio centro de gravidade, contendo sua própria medida, e deve ser avaliado em si mesmo e não por meio de uma métrica absoluta: Para dizer a verdade, toda coisa movente leva em si a medida do seu tempo e este persiste mesmo na ausência de qualquer outro. Não há duas coisas no mundo que tenham a mesma medida de tempo [...] Existe então (podemos afirmar corajosamente) no universo, em um único tempo, uma multitude de tempos [Herder, 1981:59, t. XXI].

Um século mais tarde, é a vez de Wilhelm Dilthey sublinhar como o mundo histórico não pode ser compreendido por conceitos totalizantes. Um indivíduo não pode explicar um grupo, uma comunidade ou uma instituição e, inversamente, um grupo, uma comunidade ou uma instituição não permitem explicar um indivíduo. Entre esses dois polos existe sempre um resíduo inesgotável. Cada indivíduo sente, vive e realiza as criações da vida, mas elas escapam a seu controle, abrangendo um espaço humano mais amplo do que o simples espaço biográfico. Elas existem antes de nós e continuarão após: [elas] agem enquanto costumes, tradições e, através de sua aplicação ao indivíduo, também enquanto opinião pública: em virtude da superioridade numérica da comunidade e do fato de ela durar mais tempo do que a vida individual, elas exercem um poder sobre o indivíduo, sobre sua experiência e sua potência vitais [Dilthey, 1988:88, t. III].

Por outro lado, o indivíduo é sempre um ser bastado, no cruzamento (Kreuzungspunkt) de diferentes grupos históricos. Ainda que ele seja moldado, até a medula, por suas experiências históricas, ele não é jamais reduzido a alguma delas: ele não se entrega completamente nem mesmo à sua família, a matriz de toda forma de vida social. Tomemos o caso de um juiz. Ele pode pertencer, simultaneamente, a uma família, a um partido político, a uma Igreja: além do fato de que faz jus à função que ocupa no espaço jurídico, ele pertence a diversos outros conjuntos interativos; ele age no interesse de sua família, ele deve executar uma atividade econômica, ele exerce suas funções políticas, e, talvez, ele também componha versos. Desta forma, os indivíduos não são vinculados inteiramente a tal conjunto interativo (Wirkungszusammenhang), mas

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na diversidade de relações de causa e efeito apenas os processos que pertencem a um sistema determinado são colocados em relação uns com os outros, e o indivíduo se vê imbricado em conjuntos interativos diferentes [Dilthey, 1988:118, t. III].

Por sorte, mesmo quando não é possível, como em situações extremas, habitar simultaneamente vários espaços, ainda nos resta a possibilidade de mobilizar recursos atrás e diante de nós em outros tempos: “numerosas são em nós as possibilidades da vida quanto à memória e ao desejo pelo futuro [...] ainda que nossa imaginação vá além do que podemos viver imediatamente ou realizar no seio de nosso eu”. O que quer dizer que o presente não é jamais apenas presente, um estado temporal fechado sobre si mesmo, mas que ele é de uma natureza mais flexível e que não cessa de requerer o passado e o futuro: “o presente não é jamais; o que vivemos no imediato, enquanto presente, contém sempre em si a lembrança do que era justamente presente” (Dilthey, 1988:194; 259, t. VII). Assim como Friedrich Nietzsche, Dilthey pensa que o homem é uma criatura do tempo, inelutavelmente ligado à cadeia do passado, e é precisamente essa característica que faz nascer nele a necessidade de se exprimir de maneira durável: o animal vive enraizado no presente. [...] Ele não sabe nada do nascimento e nem da morte. Assim, ele sofre bem menos do que o homem. Mesmo que observemos, no reino animal, crueldades, mutilações ferozes, a luta pela vida e a morte, a vida do homem sofre dores muito maiores e mais permanentes [Dilthey, 1988:357, t. XIX].

Nossa vida se estende para trás, em direção ao passado, através da lembrança, e adiante, em uma expectativa repleta de temor ou de esperança, dirigida ao futuro”(Dilthey, 1988:357, t. XIX). Ao contrário do que muitos sociólogos (especialmente alguns defensores do interacionismo simbólico)6 afirmaram nas décadas seguintes, o eu não é um produto hic et nunc, determinado por uma situação contingente: suas ações são fundadas sob a duração e se alimentam de imagens do passado e de antecipações do futuro. Além disso, mesmo a relação que existe entre uma comunidade ou uma instituição e uma época ou uma civilização não é definida em termos de pertencimento. Sem dúvida, toda época exprime uma figura dominante. Ela é unilateral e, em certos momentos, a consonância entre os diferentes domínios da vida é particularmente forte: por exemplo, o espírito racional e mecanista do século XVII influenciou a poesia, a ação política e a estratégia de guerra. Mas se

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Cf. Herbert Blumer (1962:187).

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trata aqui de exceções, pois os diferentes campos gozam de certa autonomia e há sempre fragmentos de história que relutam ou recusam integrar o movimento geral: “cada conjunto particular contido [no mundo histórico] possui, através da posição dos valores e da realização dos fins, seu próprio centro” (Dilthey, 1988:92, t. III). Disso resultam irregularidades, diferenças, discordâncias: Esse conteúdo [histórico] se apresenta como uma unidade. Eis o que pôde fazer nascer a ideia de que era possível expor o conjunto da história sob a forma de relações lógicas entre pontos de vista homogêneos. Assim os hegelianos estragaram a inteligência da filosofia moderna por causa da ficção segundo a qual os pontos de vista se desenrolam logicamente uns dos outros. Na realidade, uma situação histórica contém, desde o início, uma diversidade de fatos particulares. Refratários, esses são simplesmente justapostos e não se deixam restituir uns aos outros [Dilthey 1995:162, t. VII].

Uma civilização não é, portanto, uma entidade compacta e não é feita de uma única substância, redutível a um princípio primordial. Ela deve ser compreendida, sobretudo, como um entrelaçamento ou uma mistura instável de aspirações diferentes e de atividades que se contradizem. Ela abriga diversos conjuntos interativos em movimento perpétuo (a economia, a religião, o direito, a educação, a política, o sindicato, a família etc.): e como a organização política contém, em si, uma diversidade de comunidades que descendem até à família, a vasta esfera da vida nacional compreende, além das comunidades, conjuntos mais restritos que possuem seu próprio movimento. [...] Cada um desses conjuntos interativos é centrado sobre si próprio de uma maneira particular e é nesse aspecto que se funda a regra interna de sua evolução [Dilthey, 1988:122-124, t. III].

Profundamente insensível à magia da cronologia, Dilthey conceitualiza a pluralidade fundamental do mundo histórico em sua dimensão temporal. Na esteira de Herder, que afirmava que todo fenômeno é seu próprio relógio, ele escreve, em 1910, que o tempo histórico não é um movimento retilíneo nem um fluxo homogêneo. Assim, o século XVIII é habitado, simultaneamente, pelas Luzes, por Bach e pelo pietismo: Nesse todo homogêneo em que se exprimem diferentes domínios da vida, a orientação dominante do Iluminismo alemão não determina todos os homens que pertencem a esse século, e mesmo onde sua influência se exerce, outras forças frequentemente agem ao lado dele. As resistências do século anterior se fazem sentir. As forças ligadas às ideias e às

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situações anteriores são particularmente ativas, mesmo que elas tenham uma forma nova [Dilthey, 1988:132, t. III].

Dessa maneira, Dilthey desenha o todo histórico como um conjunto maleável, conflituoso, em cujo seio coexistem forças discordantes que se rebelam contra a unidade forçada do Zeitgeist: “não se trata de uma unidade que seria exprimível por uma ideia fundamental, mas um conjunto que se edifica entre as tendências da própria vida” (Dilthey, 1988:133, t. III). 7 Definitivamente, as considerações de Dilthey sobre a natureza heterogênea e descontínua do tempo histórico propõem uma imagem musical da relação entre as partes e o todo em um jogo infinito de harmonias e de dissonâncias não previsíveis: não há um núcleo único que seria, ao mesmo tempo, a melodia e o acompanhamento (o século das Luzes), mas uma alternância de temas que se encadeiam e se entrecruzam.8 Na segunda metade do século XX, essas intuições foram elaboradas em History: the last things before the last. Para Siegfried Kracauer, como para Dilthey, o mundo histórico não é compreensível em termos de filiação, menos ainda em termos de propriedade ou de assimilação, pois o ambiente não é um conjunto coerente e autossuficiente, mas uma mistura frágil de esforços cambiantes e contrastantes: “na medida em que um indivíduo ‘pertence’, uma grande parte do que ele é permanece de lado” (Kracauer, 2006:77). Kracauer invalida igualmente a noção de pertencimento temporal. Longe de ser um médium homogêneo, caracterizado por uma direção irreversível, o tempo do calendário parece-lhe um receptáculo vazio, indiferente, que carrega consigo uma massa de eventos desconectados. Em outros temos, cada época é um conglomerado precário de tendências, de ambições e de atividades independentes umas das outras, um cortejo de eventos incoerentes e díspares. Algumas ignoram a existência de outras, outras estão em contraste, outras ainda parecem ser relativamente pouco influenciadas pelo Zeitgeist: por exemplo, os interiores carregados das casas da segunda metade do século XIX não estavam de acordo com os pensamentos predominantes da época. Por essa razão, se o período é uma unidade, trata-se de uma unidade articulada, fluida e fundamentalmente indefinida: “de uma unidade significativa de espaço-tempo, tornou-se um tipo de lugar para encontros casuais – um pouco como a sala de espera de uma estação” (Kracauer, 2006:217). Ela é plena de anacronismos, de casos de extraterritorialidade cronológica, de 7

Um ano mais tarde, ele retornará a este ponto em Die Typen der Weltanschauung und ihre Ausbildung in den metaphysischen systemen (Dilthey, 1989:89-90, t. VIII). 8 Jorge Luis Borges perguntará: Como podemos imaginar que Cervantes tenha sido contemporâneo da Inquisição? Cf. Borges (1988). Cf. igualmente os protestos d’Alberto Savinio. Fine dei modelli (1947:479), in Opere, contra a indiferença de Chronos que lançou Gioacchino Rossini em um século que lhe era estranho. Sobre o valor do anacronismo, cf. Enzensberger (1998).

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transbordamentos temporais. E é justamente por isso que o indivíduo pode escapar à tirania da situação: “todo muro comporta passagens por onde escapar e escorregar” (Kracauer, 2006:61). IV. A questão da pluralidade do passado alimentou a redescoberta da biografia pela micro-história ao longo das últimas décadas do século XX. Em 1976, Carlo Ginzburg – que dedicou um artigo ao livro póstumo de Kracauer – utilizou a célebre questão de Bertolt Brecht (“Quem construiu Tebas das sete portas?”) para dar a palavra a um moleiro friulano9 do século XVI. Na introdução, e a partir de diferentes fontes de inspiração (Walter Benjamin, Céline, Antonio Gramsci, Delio Cantimori), Ginzburg criticava a história das mentalidades, excessivamente impessoal e interclassista, e a história serial que dissolvia o singular nas regularidades do coletivo. Ele propunha alargar até abaixo o conceito de indivíduo e romper com a ideia de representatividade estatística: ainda que Menocchio não fosse um caso típico ou médio, seu estudo permite testar “o horizonte das possibilidades latentes” da cultura popular (Ginzburg, 1976). Como ele dirá em seguida, a extrema singularidade de um indivíduo não lança dúvidas sobre sua representatividade? A cosmogonia professada por Menocchio, baseada na comparação entre o mundo e um queijo apodrecido, cheio de vermes “que eram os anjos”, deveria ser liquidada como uma bizarrice insignificante simplesmente porque não representava nada estatisticamente?

De forma alguma, pois a representatividade histórica não coincide com a representatividade estatística: “um caso não generalizável porque anormal e marginal (e talvez justamente porque anormal e marginal) pode ser percebido como revelador” (Ginzburg, 2008). Essa ideia foi defendida posteriormente por Edoardo Grendi (1977), que forjou a noção de excepcional normal, para indicar que a experiência mais singular é o lugar em que a história coletiva se exprime com mais intensidade. Nove anos mais tarde, era a vez de Giovanni Levi. Em L’Eredità immaterale, ele estudou “um fragmento minúsculo do Piemonte do século XVII utilizando uma técnica intensiva de reconstituição dos eventos biográficos de todos os habitantes de Santena que deixaram algum traço documental”. A biografia paralela de Giulio Cesare Chiesa, podestà10 de Chieri, e de seu filho, o pároco Giovan Battista, perseguido por exorcismo pela Arquidiocese de Turim, é o 9

Oriundo da região de Friulli, na Itália. (N. do T.). Principal autoridade administrativa das cidades do centro-norte da Itália durante a Idade Média (N. do T.).

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meio para decifrar a dinâmica de uma vila do Antigo Regime (o mercado de terras, as estratégias familiares, o papel dos notáveis locais etc.), em um período decisivo da construção do Estado moderno e particularmente conturbado em função da guerra entre Piemonte e França. Ela relança o desafio proposto Ginzburg. Se Menocchio ainda continha alguns traços de heroísmo, os Chiesa eram verdadeiramente indivíduos “comuns”, frágeis, hesitantes, profundamente dependentes tanto em relação a outros seres humanos como às instituições. Eles não dominam as situações, menos ainda a significação e a direção da história. Apesar disso, eles não são nulidades: eles falam e agem; aqui e acolá, eles são capazes de ponderar. Em síntese, são figuras que escapam ao falso dilema entre a glorificação e a humilhação da subjetividade: elas coincidem com a definição de individualidade dada por Ricouer em Soi-même comme en autre.11 Nessa perspectiva, a biografia permite ao historiador se infiltrar nos interstícios institucionais: Nos interstícios dos sistemas normativos estáveis ou em formação, grupos e pessoas acionam uma estratégia significativa, capaz de marcar a realidade política com uma impressão duradoura, não para impedir as formas de dominação, mas para condicioná-las e modificá-las [Levi, 1985].

Examinado esses interstícios, Levi demonstra que não há norma única, capaz de cobrir toda a experiência social, mas, sobretudo, regras diferentes e às vezes contraditórias entre elas. Isso significa que o governo central, o mercado, as instituições do Estado, as comunidades aldeãs não são conjuntos fechados e nem instrumentos que tocam em uníssono. Penso que essa ideia revelou como o contexto histórico corresponde mais precisamente a um tecido conjuntivo atravessado por campos elétricos de intensidade variável do que a um conjunto compacto e coerente. E é também graças a esses diferentes campos elétricos que os indivíduos podem se exprimir, agir, ponderar. Desse ponto de vista, a tarefa do historiador não é a de unificar um material heterogêneo; de construir um único discurso sobre o passado, mas de enriquecer a partilha dos discursos. Essa perspectiva foi aprofundada, nos anos seguintes, por outros historiadores, que demonstraram que a biografia, além de fazer parte da história, oferece também um ponto de vista sobre a história, uma discordância, uma descontinuidade.12 Deve-se, por conseguinte, 11

Cf. Ricoeur (1990). Em relação a este ponto, permito-me reportar ao meu livro: Soldats. Un laboratoire disciplinaire: l’armée piémontaise au XVIIIe siècle (Loriga, 2007). Nesse livro, busquei reconstituir uma realidade institucional a partir

12

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descartar toda lógica de submissão ou de dominação (da história sobre a biografia e vice-versa) e conservar a tensão, a ambiguidade, considerar o indivíduo, ao mesmo tempo, como um caso particular e uma totalidade. Em tal perspectiva, não é preciso que o indivíduo represente um caso concreto; ao contrário, vidas que se distanciam da média nos levam, talvez, a melhor refletir sobre o equilíbrio entre a especificidade do destino individual e o conjunto do sistema social. Mais do que o tipo, importa a variedade. Somente uma multiplicidade de experiências permite enfrentar dois pontos fundamentais da história: os conflitos e as potencialidades. Enquanto a biografia heroica postula uma harmonia entre o particular e o geral (e, poderíamos dizer, uma simples extensão, como na sinédoque), a biografia que se concentra nas vozes de um coro inteiro (a biografia coral) concebe o singular como um elemento de tensão: o papel do indivíduo não é revelar a essência da humanidade; ao contrário, ele deve permanecer particular e fragmentado. É apenas por intermédio desses movimentos individuais que os conflitos que presidem a formação e a edificação das práticas culturais podem ser conhecidos: eu penso na inércia e na ineficácia normativa, mas também nas incoerências que existem entre as diferentes normas, e na maneira em que os indivíduos, quer eles “façam” ou não a história, estabelecem e modificam as relações de poder (Loriga, 2010). A metáfora do interstício teve um enorme sucesso e suscitou, talvez, alguns malentendidos. Um equívoco importante se refere às relações de poder. Sob a expectativa de iluminar as capacidades de iniciativa pessoal dos atores históricos, por vezes imaginou-se que tudo é possível, tudo é negociável, tudo é estratégico. Todavia, o interstício é um espaço vazio que separa dois corpos sólidos. É uma espécie de corredor e, como recorda Thomas Stern Eliot, os corredores são estreitos, sinuosos e ambíguos. Eles pressupõem, em geral, a existência de muros e os muros são feitos de pedra, de concreto, materiais duros e pesados, capazes de causar um grande mal. Referências BLANNING,

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Microstoria: relações sociais versus modelos culturais? Algumas reflexões

sobre estereótipos e práticas históricas1 Simona Cerutti

Eu gostaria de refletir neste capítulo a respeito das relações entre a história social e a história cultural; a respeito das razões do antagonismo que há muito tempo as separa, bem como das razões que explicam, atualmente, uma nova convergência entre elas. Conduzirei esta reflexão a partir de um terreno que me é familiar, a saber, o da microstoria: uma das raras correntes historiográficas do século XX que viu coexistirem em seu interior orientações que pretendiam, de um lado, reconstruir uma contextualização social dos objetos históricos, e de outro, inscrever esses mesmos objetos em contextos culturais dos quais eles eram a expressão e que, ao mesmo tempo, contribuíam para esclarecer.2 De acordo com numerosos comentadores, a existência de um “eixo social” e de um “eixo cultural” da microstoria tornou-se evidente desde seu início, mas de maneira insuficientemente explicitada. Para além da opção comum a respeito da redução de escala de análise, as duas correntes teriam perseguido, na verdade, métodos e objetivos diferentes. Os “caçadores de trufas” e os “paraquedistas” – os investigadores de explicações (a versão “social” da microstoria) e os investigadores de interpretações (sua versão “cultural”)3 – teriam convivido sem muito se interrogarem sobre seus respectivos procedimentos. Uma reflexão insuficiente a respeito da relação existente entre as duas orientações teve consequências graves para a microstoria e estaria na origem do seu espaço limitado no campo historiográfico italiano (Banti, 1991). Mas para além dessa situação particular, as relações entre história social e história cultural merecem ser analisadas mais de perto, especialmente porque ao longo dos últimos anos uma nova convergência se delineou e novas reaproximações entre os dois domínios tornaram-se possíveis. Para retomarmos o exemplo da microstoria, o problema da contextualização cultural se manifestou, a partir dos anos 1990, perante os

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Título original: “Histoire pragmatique, ou de la rencontre entre histoire sociale et histoire culturelle” (Cerruti, 2008). Este artigo é um primeiro passo em uma pesquisa em curso desenvolvida nos últimos anos acerca da natureza da documentação histórica. Eu gostaria de aproveitar esta ocasião para exprimir a grande dívida intelectual que tenho em relação a Giovanni Levi e Carlo Ginzburg, e para honrar a memória de Edoardo Grendi. Tradução e revisão técnica: Deivy Ferreira Carneiro (InHis/UFU). 2 De acordo com Alberto Banti (1991), o primeiro autor, até onde sei, a ter assinalado explicitamente este problema, a existência desses dois “eixos” se tornou manifesta de maneira clara por ocasião da publicação do ensaio de Carlo Ginzburg (1979). Ver, igualmente, Grendi (1994a). 3 Banti (1991). A distinção entre “caçadores de trufas” e “paraquedistas” provém do célebre ensaio de Lawrence Stone (1979).

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historiadores sociais (continuarei a empregar esse rótulo por convenção) com uma nova urgência, testemunha também da renovação do interesse pela história intelectual. Essa tendência é visível, por exemplo, na orientação da revista Quaderni Storici, que recentemente consagrou um amplo espaço à cultura jurídica do Antigo Regime, bem como às “culturas” do mercado e da troca etc. Observando o percurso seguido pela microstoria, proponho então interrogar, de forma mais geral, as razões dessa distância, assim como a razão das condições do reencontro entre história social e história cultural. Análises “sociais” e análises “culturais” Gostaria de começar esclarecendo alguns elementos de fundo. De toda evidência, as diferenças entre a contextualização social e a contextualização cultural como práticas de pesquisa da microstoria não refletiu interesses analíticos diferentes. Nenhuma das duas posições que mencionei buscavam trilhar uma direção disciplinar centrada sobre as ideias ou sobre os comportamentos em si mesmas. Ao contrário, as duas perseguiam os mesmos objetivos. A decisão de restringir o campo de observação e pesquisar meticulosamente os protagonistas individuais dos processos históricos era uma reação contra a arrogância do senso comum histórico que ditava, do exterior, as cronologias, os quadros de referência e as categorias analíticas, criando assim, frequentemente, anacronismos significativos. O “nome” e o “como” (“il nome e il come”) foram um ponto de partida essencial para os dois eixos da microstoria (Ginzburg e Poni, 1979). Uma forte convicção regia essas análises: o fato de que as relações e os laços davam acesso não somente ao contexto de trocas mais imediatas (de bens e de informações), mas também aos contextos normativos e culturais. Normas e modelos culturais eram produzidos por meio de redes de obrigações, de expectativas, de reciprocidade e de recursos que se apresentavam ao horizonte dos atores. O percurso biográfico era considerado um contexto “pertinente” (isto é, não anacrônico); social e cultural ao mesmo tempo. Ademais, isso constituía, para o pesquisador, um campo de teste e de controle de sua própria maneira de proceder e deveria protegê-lo de algumas tentações perigosas: sobretudo aquela de separar, em uma análise, as ações das culturas (expressas nas crenças, por exemplo); de mudar a escala de análise ou o método, efetuando essa transferência (tão frequente) do singular das ações – o contrato, o casamento etc. – ao plural indeterminado das “culturas” (a ideia de mercado difundida em meados do século XVIII, retirada de obras contemporâneas etc.). Havia uma desconfiança explícita em relação à reconstituição da “cultura” a partir dos conhecimentos do pesquisador e, por conseguinte, de ideias inscritas de

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maneira abusiva no contexto analisado para evocar uma “moda” historiográfica plausível. Face a esse estado de coisas, a microstoria “social” foi erigida como uma prática empírica e analítica. Gostaria de destacar aqui um ponto (por motivos que ficarão mais claros posteriormente): a ideia de manter um ponto de vista egocentrado significava definir um contexto de análise apropriado, um contexto que não fosse baseado nos conhecimentos do pesquisador sobre aquilo que ele pensava haver sido o mundo da época. Ao contrário, deveria basear-se na experiência dos próprios atores (conforme o pesquisador tivesse conseguido reconstituir). Todavia o que não era considerado como inerente ao método era o ponto de vista dos atores sobre sua própria experiência, sua “versão dos fatos”. Na verdade, a análise dos modelos sociais, econômicos e culturais visam, neste contexto, corrigir as declarações que os próprios atores fornecem acerca de suas próprias experiências. A ação dos atores – sua liberdade – era essencialmente individualizada na manipulação das normas sociais (Cerutti, 1995). E era talvez essa ideia de manipulação que legitimava a desconfiança do pesquisador quanto às declarações dos atores sociais. A reconstrução objetiva dos recursos e as pressões impostas às estratégias dos atores transformavam o trabalho do historiador naquele de um revisor crítico de sua própria versão dos fatos. É com base nesse vínculo entre comportamentos e culturas, entre trajetórias sociais e recursos culturais que foi esculpida uma distância no âmbito do campo da microstoria. As críticas endereçadas pela corrente “social” aos trabalhos de Carlo Ginzburg sobre a cultura popular apoiam-se exatamente sobre estes argumentos. Como ressaltou Edoardo Grendi (1994a; 1994b), a decodificação das crenças de Menocchio (o moleiro de os queijos e os vermes) e as dos Benandanti foram realizadas essencialmente sobre o terreno da elaboração intelectual. As vicissitudes biográficas de Menocchio (aquelas que o historiador estava em condições de reconstituir) não eram nada além de “trampolins” a partir dos quais a análise poderia decolar para reconstituir uma cosmologia complexa. Um trampolim: um ponto de partida que depois é abandonado. Tenho a impressão, portanto, de que não é exato falarmos de um “eixo cultural” e de um “eixo social” da microstoria. Eu acredito que as diferenças não se resumem à questão do terreno disciplinar e nem mesmo à questão do objeto de estudo escolhido. Elas dizem respeito ao estatuto atribuído aos comportamentos e às relações sociais na reconstituição do contexto de análise de modelos culturais.

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Contextualização A abordagem “social” foi bem-sucedida em cumprir sua promessa? Ela chegou a construir contextualizações “pontuais”, isto é, não anacrônicas? Essas contextualizações conseguiram restituir os laços complexos existentes entre relações sociais e modelos culturais? Enfim, nessa concepção do que constitui a cultura, houve um lugar para a produção intelectual ou essa foi considerada como externa à análise dos comportamentos sociais? O debate acerca dessas questões teve lugar junto aos micro-historiadores, mas também ocorreu fora desse círculo restrito, sobretudo entre os historiadores sociais em geral. Tentaremos segui-lo tomando como exemplo o percurso de Edward P. Thompson, um dos historiadores mais importantes do século XX, que exerceu uma grande influência sobre os micro-historiadores (uma coletânea de artigos de Thompson foi editada por Grendi em 1981 e publicada como um dos primeiros volumes da série Microstorie, da Einaudi). A relação entre povo e cultura, entre ação social e modelos culturais e entre história das ideias e história dos comportamentos foi adotada por Thompson de uma maneira que me parece agora sintomática das pressões que a história social se impôs, impedindo-a de cumprir todas as suas promessas. Paradoxalmente, esses limites resultaram em uma concepção redutora do sentido da ação social, o que afetou a qualidade das questões relativas às relações entre ação e modelos intelectuais e culturais. A “cultura” como elemento central das preocupações de Thompson era, acima de tudo, a cultura jurídica que se manifestou numa pluralidade de diferentes campos pela ação da classe popular inglesa e que fora também objeto de graves conflitos na Inglaterra do século XVIII. O projeto de Thompson é bem conhecido e tem uma importância extraordinária. Tratava-se de retirar os diversos costumes “populares” do processo paternalista de folclorização, de conferir às ações (desde os motins por pães às vendas de esposas, desde às cartas anônimas às incursões dos caçadores ilegais etc.) o sentido e as reinvindicações que as motivaram, mas que haviam sido esquecidas e negadas. Thompson perscrutou os sistemas de sentido que serviam de base a diversas formas de ação, com o intuito de interrogar a “estrutura cognitiva dos amotinados” ou então dos autores das cartas anônimas. Tratava-se de descobrir essas “premissas essenciais” que guiavam o povo do século XVIII. Essas premissas essenciais, propunha Thompson, podiam ser expressadas nos simples termos bíblicos do “amor” e da “caridade”, ou ainda nos termos “que poderiam não ter muito o que fazer com uma educação cristã, mas que emergiam de trocas elementares da vida material” (Thompson, 1991:350, grifos no original).

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Esta última frase revela esta concepção particular de cultura à qual me referi: uma cultura enraizada na prática das transações, em que o peso da tradição podia estar presente, mas poderia igualmente ser tão remota a ponto de ser fonte de equívocos para o historiador. Dessas premissas nasceu o projeto de “busca” histórica que gerou a extraordinária originalidade do trabalho de Thompson (1991:VII-XXXVI) e que procedeu da investigação dos testemunhos, tão “diretos” quanto possível, dos intercâmbios sociais. Os plebeus eram portadores de uma cultura jurídica cujas raízes repousavam não sobre os textos da “alta cultura”, mas sobretudo nas transações sociais. A tarefa do historiador seria a de desvendar essa cultura e então pesquisar suas expressões mais puras. As hipóteses implícitas são, portanto, que uma cultura popular existe, que existem também as fontes onde essas culturas populares se expressam, e que o historiador deve então identificá-las para poder, em seguida, interpretá-las. A ideia de fontes “diretas” é certamente interessante e rica e está na origem da grande fascinação que o trabalho de Thompson exerceu sobre Edoardo Grendi. E não foi por acaso que os dois historiadores trabalharam com um tipo de fonte que parece cumprir esses critérios: as cartas anônimas (de um lado aquelas publicadas pela London Gazette no século XVIII e de outro aquelas enviadas aos oficiais genoveses no século XVII), que se apresentam como uma fonte direta, não contaminada. Como destacou o próprio Grendi (1994b) a tradição na qual se inscrevia essa pesquisa das concepções populares da justiça remonta a Vico, a Blake e sobretudo, é claro, a Karl Marx e, por conseguinte – não é inútil lembrarmos –, a Savigny e aos irmãos Grimm. Foi a tradição da escola histórica do direito, que se empenhou em restabelecer as raízes populares do Direito – a primeira fonte de inspiração de Thompson foi o Marx, aluno de Savigny (Assier-Andrieu, 1996). Dessa tradição intelectual, Thompson adotou um pressuposto crucial: a natureza popular das culturas “alternativas”, isto é, a existência de uma conexão entre a plebe (o conjunto de grupos excluídos do poder) e as concepções do direito que são “diferentes” daquelas legitimadas pelos textos. Evidentemente, a adoção desse ponto de vista resultou na diminuição do interesse do historiador pela “alta cultura”. Trabalhando com as concepções populares de economia moral do século XVIII, Thompson buscou responder, de forma evidente, a questões relacionadas à existência de formalizações dessa ideia de mercado e de transações no pensamento econômico contemporâneo. Mas o problema não foi investigado a fundo: o quadro de interpretação era aquele de uma forma de transação social dominada pelos controles paternalistas moderada por uma pressão vinda de baixo. Nessa abordagem, compreendemos por que a referência a uma tradição viva seria “potencialmente enganosa”. Não há nenhuma razão para que os historiadores sociais se sintam interessados pelas teorias “científicas” do mercado. Sendo confrontado pelas 43

revoltas e por outras expressões da cultura popular, estas permanecem nos arquivos a fim de rastrear a rede de relações sociais e dos laços de poder, deixando as bibliotecas para os historiadores das ideias. Há um pressuposto subentendido nessa abordagem: os comportamentos seriam apenas traduções das experiências e dos interesses de grupos específicos; seriam, então, apenas o reflexo da estrutura social (de classe), bem como veículos da cultura do grupo. Essa concepção de experiência e essa leitura dos comportamentos em Thompson suscitou, recentemente, críticas bem embasadas. Não obstante sua intenção declarada de não tomar os grupos como “coisas”, mas sobretudo de considerá-los no seu processo de formação, Thompson fez uso de uma concepção redutora de experiência. Esta é construída essencialmente sobre as relações de produção e sobre a hierarquia social daí resultante. A ação popular, que está no centro de suas análises, é precisamente a expressão de uma estrutura de poder objetiva e, portanto, de uma experiência de dominação partilhada. As ações se referem a essa estrutura social; elas atravessam os atores para depois se materializarem na sociedade. O contexto da interpretação de Thompson é, por conseguinte, estritamente social. E a cultura levada em consideração é a cultura da subordinação (Kaye e Mcclelland, 1990; Sewell, 1990; Cerutti, 1986). Poderíamos, então, considerar que é exatamente sobre esses pontos que ocorre o maior distanciamento entre as análises “micro-históricas” e as pesquisas realizadas por Thompson. Afinal de contas, um dos questionamentos que está na origem de diversos estudos microhistóricos diz respeito à composição dos grupos sociais (a classe operária do início do século XX ou as corporações de ofício dos séculos XVII e XVIII (Cerutti, 1990; Gribaudi, 1987). A análise aprofundada das escolhas e das estratégias individuais colocava em discussão a existência de identidades e de pertencimentos automáticos. A reconstituição do espaço social a partir dos percursos individuais colocava em xeque toda identificação preguiçosa entre indivíduo e grupo social. Tratava-se de produzir categorias verdadeiramente pertinentes e não anacrônicas. Todavia, esse objetivo foi alcançado apenas parcialmente. Não posso dizer simplesmente que, com isso, uma pesquisa específica ou uma reconstrução em particular foi mais bemsucedida que outra. O problema me parece mais profundo. O contexto levado em conta nas análises da microstoria eram inadequados; ele permanecia exterior à experiência dos atores. O fato de reconstruir biografias individuais não assegura, em si mesmo, nenhuma garantia a respeito da capacidade de realizar uma análise “interna”. Essas reconstruções históricas estavam organizadas ao redor do conceito de “estratégia” – um termo fortemente carregado de

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um conteúdo hiper-racionalista, que tende a reduzir os comportamentos à busca por maximização de ganhos. Nesses últimos anos, os micro-historiadores assinalaram, em muitos casos, os efeitos anacrônicos do conceito. Em outras palavras, uma ferramenta metodológica que fora introduzida para reconstituir os contextos pertinentes “a partir do ponto de vista dos atores” estava imerso, de forma paradoxal, em sentidos que eram, provavelmente, completamente estranhos à mentalidade contemporânea. Além disso, o conceito de estratégia incentiva os historiadores a situar suas análises em um plano que está, a um só tempo, exterior e superior à “versão dos fatos” dos próprios atores. A análise das redes e da cartografia dos laços – alguns dos procedimentos emprestados das análises sociológicas – conduzem ao desenvolvimento da pesquisa como uma operação de “revelação” aos atores das obrigações que limitam ou permitem suas ações para além de suas próprias declarações e para além de sua consciência.4 Além disso, a direção dessas mesmas ações já estaria predeterminada pelo “quadro estratégico” que dita as operações de manipulação das normas sociais, cuja característica é serem mutualmente contraditórias. Normas e comportamentos, cultura e ação estão situadas, no fim das contas, em campos diferentes (Cerutti, 1995). Normas e práticas Quanto a mim, é justamente minha insatisfação em relação ao conceito de estratégia – e em relação à ideia de maximização que ele pressupõe, e também em relação ao vínculo que ele cria entre o pesquisador e seu objeto de pesquisa – que me levou a repensar o que seria uma análise realmente “interna” (êmica) baseada na linguagem e na lógica dos próprios atores.5 Esse percurso crítico começou a aparecer assim que se firmou, no curso da pesquisa, uma nova concepção daquilo que constituía minha unidade de análise, ou seja, os comportamentos e as ações dos indivíduos. Meu campo de pesquisa era constituído pelas formas de justiça ditas “menores” do período moderno, um tema caro à história social e, em particular, a E. P. Thompson, ao qual minha pesquisa é profundamente devedora. No entanto, é precisamente sobre esse terreno que as grandes diferenças se acentuaram. Aquilo que me parecia emergir dos casos judiciários que analisei (dos casos civis menores, mais frequentemente resultantes de 4

Sobre este elemento do método ver Cerutti (1990). A distinção êmico/ético foi estabelecida pelo linguista Kenneth Pike a partir dos sufixos das palavras fonética e fonêmico. No seio do debate antropológico, essa distinção designa duas estratégias diferentes de análise: a abordagem êmica está fundamentada sobre as categorias e as linguagens dos atores; a abordagem ética, sobre as categorias do pesquisador (Pike, 1954-1960). Ginzburg foi o primeiro a atrair minha atenção sobre essa distinção. Ver, acerca do debate antropológico, Harris (1976) e também Olivier de Sardan (1998). 5

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relações de créditos ou de transações de bens) era que os comportamentos registrados nas fontes não poderiam ser interpretados como expressões da estrutura social. Essas ações não eram reveladoras de determinações objetivas, mas exprimiam, pelo contrário, reinvindicações, intenções e proposições. As revoltas e os motins, mas também os contratos, as vendas e os conflitos que enchiam as fontes judiciais não podiam serem lidas na qualidade de simples reproduções de relações de dominação. Essas diferentes ações eram reivindicações ativas de direitos e de demandas por legitimação desses direitos. Em suma, era menos a estrutura da sociedade que se manifestava nas fontes do que as interpretações quanto à forma que essa estrutura social teria assumido; eram as tentativas de entrar em acordo acerca dessas interpretações e as estratégias usadas para legitimá-las. Tal característica criadora da ação era alimentada, na sociedade do Antigo Regime, por uma cultura particular – a cultura da jurisdição – que dava à ação a capacidade de transformar as condições jurídicas e de atribuir os papéis e os direitos.6 Nessa sociedade, mais que a titularidade de uma propriedade, o que conta é a situação de fato, a familiaridade com o objeto, o fato de utilizá-lo habitualmente. Mais do que ter sido designado formalmente a um cargo ou a um posto, é o fato de “ter agido de forma...” que afeta o estatuto de alguém. Neste sentido, as ações não são nem “a face manifesta de uma razão latente” (Ogien, 1985), nem o espelho dos edifícios sociais construídos noutro lugar e nem o reflexo de normas externas. As ações são modalidades de construção desses edifícios sociais, de suas razões, de suas lógicas e de suas normas. Elas incorporam uma atividade interpretativa de possibilidades de movimento, bem como de sua legitimação. Vista dessa maneira, a relação entre práticas e normas muda profundamente. Esse encontro entre a cultura jurídica das sociedades do Antigo Regime e as teorias da ação, realçado por uma parte da sociologia e da etnometodologia (Garfinkel e Sacks, 1970), embora paradoxal – ou talvez em razão desse próprio paradoxo – foi muito bem-sucedido. Foi uma perspectiva que deu a certos historiadores a capacidade de fornecer contribuições significativas nas ciências humanas ao debate geral acerca das relações entre normas e práticas, bem como a validade em conceber os comportamentos em termos de conformidade não refletida a uma regra7. Foi a percepção do caráter criador da ação que inibiu toda associação mecânica e imponderada entre estrutura social, ação e cultura. Para ficarmos ainda no domínio 6

Ver por exemplo: Costa (1969); Torre (1995). A respeito do debate sobre o significado de “seguir uma regra”, ver Cottereau (1987; 1987; 1994). Ver também “L’économie des conventions” (1989); “Les conventions” (1993) e, ainda, vários volumes da coleção Raisons pratiques (EHESS), que foram consagrados às relações entre ação e legitimação, em particular o n. 1, 1990 (Les formes de l’action) e o n. 3, 1992 (Pouvoir et légitimité). 7

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do direito, é evidente que todo grupo social era influenciado por uma pluralidade de ideias de justiça. As ideias do direito natural e do direito positivo, por exemplo, podem ser apresentadas pelos mercadores, pelos homens da lei e pelos trabalhadores em diversas situações. Era menos a condição social das pessoas que determinava o recurso a um ou ao outro desses sistemas de legitimação do que as posições particulares que elas ocupavam em momentos precisos (seu lugar de habitação, sua estabilidade, sua mobilidade no território, sua posição no mercado etc.). Em outras palavras, não havia correspondência entre cada cultura jurídica e um grupo social com seus próprios interesses e suas próprias experiências, mas uma cultura jurídica que poderia ser mobilizada por indivíduos diferentes, reunidos por objetivos comuns. Quando (como Renata Ago mostrou em uma análise próxima daquela da economia moral de Thompson), por exemplo, agiam na qualidade de consumidores, os camponeses do século XVIII, que viviam na região do Lazio, podiam fazer uso da linguagem da economia moral e do direito natural. Todavia, esses mesmos camponeses estavam em condições de utilizar a linguagem do lucro quando vendiam seus produtos no mercado (Ago, 1985). Não há nada de automático ou de impensado nessas ações, nem tampouco nas estratégias utilizadas para legitimá-las. O mundo social – isto é, o mundo das ações – é um mundo interpretativo. Ação e interpretação não podem ser separadas. Isso significa que, no intuito de reconstruir a pluralidade de concepções de justiça que coexistiam na sociedade do Antigo Regime, não é necessário – e talvez, nem mesmo pertinente – pesquisar fontes “diretas”, isto é, fontes não institucionalizadas ou que não estão relativamente contaminadas. Como toda ação, as fontes que o historiador utiliza são com frequência (mas não sempre) documentos que reivindicam alguma coisa (em detrimento de descrevê-la). As atas notariais, as petições, os processos, as cartas e mesmo as fontes aparentemente neutras, como os documentos demográficos, representam, na verdade, reinvindicações jurídicas (Loza, 1997).8 A fonte, nesse sentido, nos fala de seu objeto, sendo ao mesmo tempo, como Bloch (1993) percebeu, um texto narrativo. Todavia isso não é verdade no sentido de que toda fonte é escrita em um gênero literário definido. A “narração” incorpora reivindicações de verdade e de legitimidade, e assim todo um trabalho intelectual de interpretação das ideias do “justo” e do “legitimo”, bem como operações de construção de legitimidade que não se reduzem a técnicas retóricas, mas se alimentam de trocas, de relações e de objetos (como sabemos bem, a construção da legitimidade não é apenas uma questão de palavras).

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Sobre as fontes e suas demandas de legitimidade, ver: Artifonti e Torre (1996); Torre, (1995).

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Assim, a partir dessa visão das fontes, os questionamentos que devemos lhes fazer – Quais reivindicações de legitimidade elas expressam? A quem essas reivindicações são endereçadas? De que maneira? – se revelam igualmente pertinentes tanto para as fontes “diretas” quanto para aquelas que nos parecem (e são, provavelmente) mais “contaminadas”. Essa questão de legitimação, tal como defendo, me parece ser completamente estranha ao eixo social da microstoria como aquela representada por Grendi. Essa abordagem pressupõe, em relação a um objeto de estudo, outra distância, diferente daquela tradicionalmente adotada pelos micro-historiadores sociais. Ela nos permite, nos dizeres de Luc Boltanski (1990:xx), a “não renunciarmos às ilusões dos atores”. A análise não seria uma “correção” da versão dos fatos dos atores, ou ainda uma revelação a esses atores de uma realidade que presumimos não terem eles consciência (especialmente em relação às obrigações objetivas que determinam suas ações). A questão é, sobretudo, reconstituir suas capacidades de tornar compreensíveis, legitimas e aceitáveis suas próprias ações e seus próprios argumentos. Para utilizar uma vez mais as palavras de Boltanski (1990, grifo nosso), a questão é de “levar as pessoas a sério”; de levar em conta, em uma análise, tanto suas ações quanto suas intenções.9 Foi essa perspectiva que conduziu muitos historiadores sociais (entre os quais eu me incluo) a dedicarem um novo interesse a essa dimensão cultural e intelectual que havia sido negligenciada anteriormente. A atividade de legitimação dos argumentos e das ações exige dos atores sociais a mobilização de uma bagagem de conhecimentos, de interpretações, de recursos culturais e materiais, bem como a capacidade de manipulá-los. Nessa perspectiva, a biblioteca não seria apenas um recurso próprio do historiador social e que permaneceria fora do campo de análise. Ela se torna um elemento constitutivo da análise social, da mesma maneira que as estratégias, os objetos, as escolhas econômicas, as escolhas matrimoniais etc. Dessa forma, quer eles queiram ou não, caçadores de trufas e paraquedistas, historiadores sociais e historiadores das ideias devem se aliar. A ideia que emerge dessa perspectiva é aquela de uma cultura “operacional”, para utilizarmos os termos de Renata Ago; uma cultura “pragmática”, poderíamos assim dizer. Em outras palavras, uma cultura cujos termos e referências doutrinárias permanecem, com frequência, nas sombras, ao passo que se encontra inscrita nas ações que os documentos registram. “Mulheres comerciantes e cultura escolástica” (Ago, 1995) e Magistrados e baconianos (Cerutti, 2003) constituem os títulos provocadores, mas sinceros (isto é, reveladores de tentativas de leituras multidimensionais, sociais e culturais), que apareceram em números

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Ver também: Thireau e Hanssheng (2001).

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recentes da Quaderni Storici dedicados a um tema que a microstoria tradicionalmente manteve em suspensão: o direito.10 Na verdade, ao longo desses últimos anos, a revista publicou várias monografias consagradas a diferentes aspectos da cultura jurídica. Os títulos da revista são significativos: “Direitos de propriedade”, “Cidadania, processos de justiça” etc. A ideia que guiou esss escolhas é a de que o direito constitui uma gramática contextual amplamente partilhada pelos homens e pelas mulheres das sociedades modernas; um tipo de “antropologia da Europa moderna”, como foi descrito por Clavero (1985) e Hespanha (1999). Esses números da revista (alguns mais bem-sucedidos do que outros) visam a um objetivo duplo. Primeiramente, trata-se de explorar a cultura do direito (portanto, de um sistema normativo altamente formalizado nas obras eruditas) em sua utilização contextual, situada “localmente”. Em outras palavras, explorar os usos que os homens e as mulheres faziam dele, bem como – de maneira explicita – explorar tanto suas reinvindicações como suas interações cotidianas com as coisas, com as pessoas e com os bens. Isso implica que devemos trazer à luz os processos de seleção – ou melhor, de combinação – de tradições jurídicas que foram realizadas em um lugar e momento precisos (por quê? Como? Por quem?). Em segundo lugar, o fato de levar em consideração as relações recíprocas existentes entre normas formais e as práticas sociais implica renunciarmos conceber o patrimônio jurídico como um recurso “dado”, estabelecido nos textos jurídicos (embora às vezes objeto de manipulação). As prescrições existem na “pretensão de as próprias práticas serem aceitas como legítimas” e nas operações locais (situadas) de “construção de sentidos”. Dessa forma, a análise das normas faz parte das análises dos lugares sociais (Quéré, 1992). A relação entre normas e práticas é então uma relação de reciprocidade; uma influenciando a outra. O campo da legitimidade é mais amplo que o campo da legalidade e frequentemente a primeira alimenta a segunda. A circularidade dessa relação possui implicações políticas e intelectuais de suma importância. O ponto de vista dos atores Essas propostas dialogam de maneira implícita com outras posturas metodológicas. A capacidade das práticas sociais de se constituírem em “precedentes” – e assim, sob certos sistemas jurídicos, em normas – é uma resposta, ao que me parece, a essas análises que, muito atentas aos processos de legitimação, entendem essas práticas essencialmente como operações de bricolagem entre tradições culturais eruditas. Penso particularmente no trabalho de Luc Boltanski, com quem tenho grande dívida intelectual (Cerutti, 1991). As gramáticas utilizadas 10

Ver Quaderni Storici, n. 88 (1), abr. 1995; n. 89 (2), ago. 1995; n. 101 (2), 1999.

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pelos indivíduos para legitimar seus próprios argumentos bebem em um repertório limitado de textos fundamentais, identificados por Boltanski como estando na base dos laços sociais (nesse sentido, Boltanski estabelece uma conexão original entre a sociologia e a história das ideias). Em outras palavras, o contexto de legitimação é exterior à ação: as fontes dessa ação são autoridades externas. Nessa perspectiva, reproduzimos, ao que me parece, uma ideia impessoal, imprecisa e, no fim das contas, consensual de horizonte cultural. Obviamente, ao contrário, a esfera da legitimidade não é uma esfera consensual, mas um campo onde a competição e o conflito são ferozes e, com frequência, sistemas culturais inteiros desaparecem das memórias e são deslegitimados. Para não reduzir a atividade dos atores a simples exercícios de bricolagem, e para interrogar as múltiplas e variáveis formas dos sistemas de legitimidade, precisamos direcionar nossa atenção aos processos por meio dos quais tanto as normas quanto esses sistemas são constituídos e assim explorar a maneira pela qual os dois interagem. Seria igualmente necessário examinar os processos de seleção aos quais as tradições intelectuais estão sujeitas, tanto em lugares particulares quanto em momentos precisos: “processos de seleção” aos quais a história cultural dificilmente presta toda a atenção necessária. Em particular, penso aqui em processos muito refinados de contextualização cultural, extremamente sensíveis à pluralidade de tradições culturais e que são conscientes do problema da seleção entre diferentes tradições, mas que, a meu ver, não prestam suficiente atenção à maneira pela qual a seleção se opera. Carlo Ginzburg, em especial, seguiu com grande coerência um método de análise tão bem apresentado em suas próprias pesquisas sobre as relações entre as culturas quanto em seus escritos metodológicos e historiográficos.11 No parágrafo seguinte, analisarei alguns pressupostos que me parecem ser a base de seus últimos trabalhos e sugerirei que a separação entre a análise social e a análise cultural (que mesmo no passado nunca foi realmente apropriada) permanece completamente inadequada para descrever as diferenças entre métodos de análise que persistem ainda hoje na microstoria, apesar do novo potencial de convergência. Essas diferenças relativas à relação que os pesquisadores adotam com seu objeto de pesquisa dependem do lugar acerca do qual os pesquisadores situam sua autoridade em relação aos atores sociais e de onde eles retiram suas categorias analíticas. Em outras palavras, o problema é aquele da relação entre uma análise êmica e uma análise ética. A questão não é a de estabelecer a legitimidade de uma dessas perspectivas em relação à outra, nem de contrapor ortodoxias analíticas (a êmica como a única dimensão legítima). O

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Ver Ginzburg (2001; 2000a; 1998).

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problema é mais radical e eu o formulo da seguinte maneira: o que é um método de análise “interno” e em que situações ele pode ser aplicado? Ao levarmos em conta o ponto de vista dos atores, devemos nos fixar no contexto imediato dos seus comportamentos, ou esse método pode (deve) ser mobilizado quando o objeto de análise for mais amplo e incluir os modelos culturais e normativos o inspiram e dos quais ele seria expressão? Dito de outra forma, o êmico e o ético são dois procedimentos de análise – como eu penso – ou seriam dois contextos (um sendo o contexto mais imediato, por meio do qual emergem os comportamentos e onde os atores ativam seus modelos culturais, e o outro mais distante e mais profundo, onde os modelos culturais são construídos)? Acredito que essa segunda concepção domina os procedimentos de análise utilizados por Carlo Ginzburg na maioria de suas pesquisas recentes. Eles giram regulamente ao redor de uma série de pressupostos. Em primeiro lugar: a análise de todo fenômeno social demanda a mobilização de uma pluralidade de contextos, visto que todo objeto é composto de uma série de estratos, isto é, de uma quantidade de elementos que assentam suas raízes em cronologias de diferentes profundidades. Em segundo lugar: o trabalho de exploração dessas cronologias variadas é colocado a serviço da reconstituição das “experiências” vividas; aquelas, segundo Ginzburg, que “não se esgotam nem na experiência consciente nem naquelas que deixam seus traços na documentação”, mas que são compostas também por uma dimensão inconsciente que deve ser levada em conta.12 Finalmente, e em conexão com o último ponto, é necessário realizar um “jogo de escalas”, isto é, realizar variações do ângulo de análise que permitiriam ao pesquisador manter uma distância crítica. Isso tornaria possível apreender aquilo que não estava presente na consciência dos atores, mas que, no entanto, era constitutivo de suas experiências. Esses três pontos cardinais constituem, no trabalho de Carlo Ginzburg, uma “cadeia documental”, isto é, um percurso que, a partir do documento, identifica progressivamente os contextos nos quais inscrever sua análise. Essa identificação procede de uma maneira que podemos chamar de concêntrica – que vai gradualmente do sentido que os atores dão ao fenômeno em questão, em direção ao sentido mais distante e mais imprevisível que escapa à compressão consciente desses mesmos atores, e que é construída por meio de comparações. Ou seja, não é devido à distância, mas graças à distância (Ginzburg, 2000).

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“Nos testemunhos etnográficos – diretos ou reelaborados – dos rituais de transgressão funerária, a distinção entre os níveis de interpretação está longe de ser clara”. Ao mesmo tempo, o papel da comparação torna-se essencial: “Através da comparação, torna-se possível, em princípio, reconstituir um significado que não é menos autêntico do que aquele incorporado na experiência vivida. Esta última não se reduz nem à experiência consciente nem àquela que deixou traços nos documentos” (Ginzburg, 1987:630).

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Um papel central é atribuído a este último nível de análise, visto que é nele que jaz o sentido último das ações e das crenças. Como argumentou Perry Anderson (1991) – e com razão, eu acredito –, para Ginzburg, quanto mais profunda é uma coisa, mais relevante ela é.13 Ginzburg perseguiu então essa estratégia de análise com uma coerência crescente nos últimos anos, desde sua pesquisa sobre o sabá até trabalhos mais recentes acerca da iconografia política. Essa estratégia se propõe, em última análise, a tirar proveito das potencialidades heurísticas que estão inscritas na condição de afastamento, isto é, o espanto face a sistemas de sentido e de contextos que são claramente exteriores à consciência (dos atores, do pesquisador e do leitor que é convidado a partilhar essa experiência de descoberta).14 O mais profundo, o mais impensado dos passados se encontra, desse modo, entre nós; um convidado de pedra sentado – mas invisível – em nossa mesa. Distância e comparação O que me parece problemático nesse processo não é a distância explícita tomada pelo pesquisador em relação ao seu objeto. Se há um ponto a respeito do qual as análises de Carlo Ginzburg me convencem é a eficácia dessa distância, que se exprime, por exemplo, por meio da extraordinária riqueza do olhar comparativo. Acredito que nesse processo não podemos definir de maneira suficientemente precisa quais regras presidem a operação de distanciamento. Trata-se, ao mesmo tempo, de uma questão de procedimentos de análise e de concepção daquilo que é a cadeia documental.15 Uma vez que que a primeira espiral de contextualização foi alcançada, as ações e crenças são projetadas em um contexto cultural cuja pertinência é delineada pelo saber do pesquisador. Desse modo, a cadeia documental só termina no momento em que o pesquisador decide. Nada, em um objeto de estudo (uma vez que a etapa inicial de análise do contexto imediato é concluída), pode colocar limites ao pesquisador ou instituir controles sobre suas escolhas. Nesse sentido, a aproximação entre o famoso cartaz em que Lord Kitchener conclama os jovens britânicos a se alistarem na guerra de 1914 e a passagem da História Natural de Plínio, o antigo, relativa às representações de Minerva e de Alexandre o Grande, seguem um caminho 13 Para justificar essa declaração, Anderson se refere a uma citação retirada de Céline, encontrada no início de Os queijos e os vermes: “tudo o que é interessante se encontra nas sombras” (Anderson, 1992, p. 223). A primeira versão desse ensaio foi publicada em italiano na revista Micromega (1991), com uma resposta de Ginzburg que simplesmente confirma a interpretação de Anderson, se referindo ao provérbio: “o significado das coisas jamais se encontra na superfície”. 14 Ver, nesse sentido, o prefácio de Ginzburg (2000). 15 O conjunto de operações sucessivas de seleção, coleta, tratamento, conservação e, por fim, difusão de documentos e informações.

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inteiramente delineado pelo autor (nesse caso, para um diálogo aberto com Aby Warburg).16 Os materiais que criam o estranhamento e suscitam, posteriormente, a “revelação” dos processos inesperados de parentesco entre objetos diferentes foram introduzidos no campo e selecionados pelo pesquisador. Em suma, o objeto utiliza o autor para buscar sua leitura mais autêntica (ou, pelo menos, a mais profunda), mas não é capaz nem de interromper sua análise, nem de contradizê-la. A mesma coisa é válida, ao meu ver, para o leitor. O que me parece problemático nessa análise não é, repito, a distância estabelecida entre o pesquisador e seu objeto de estudo e menos ainda a utilização da comparação (a dimensão que poderíamos chamar de ética). O problema está, na verdade, em uma concepção que acredito ser redutora da análise contextual e social. Esta seria utilizada apenas para esclarecer os usos que os atores fazem das imagens e das crenças, enquanto o problema do “caráter original” dessas mesmas imagens e crenças seria levado a outro nível de análise, a um plano que transcende os atores em termos de lugar, de período histórico etc. A separação entre esses dois momentos de análise é explícita e preconcebida.17 No entanto, o momento da descoberta, de espanto e de estranhamento, carregado de implicações hermenêuticas, poderia também aparecer no contexto imediato se o pesquisador ao menos prestasse atenção ao intenso trabalho de seleção realizado pelos atores. Este determina, por exemplo, a sobrevivência de uma imagem ou de uma crença particular ao invés de outras e explicaria o porquê e o como dessa transmissão, bem como as transformações sofridas por ela ao longo do tempo. A abordagem que sugiro implica “levar em conta as ilusões dos atores” (Boltanski, 1990; 1991), isto é, levar em conta suas atividades de escolha e seleção entre as tradições culturais e que permitem assim a sobrevivência de algumas e a condenação de outras ao esquecimento. Essa atividade de seleção evidencia um contexto cultural que é “controlado”, não no sentido de ser limitado no seu âmbito cronológico (a abordagem que defendo permite o recurso às mais antigas tradições culturais), mas no sentido de que sua pertinência é determinada sobretudo pelos itinerários seguidos pelos atores e não simplesmente pelos conhecimentos do pesquisador. Nessa perspectiva, a cadeia documental não é circular nem centrífuga (surgindo dos atores e se afastando deles cada vez mais, seguindo caminhos que dependem do campo de conhecimento do pesquisador). Ela é edificada sobre a base das relações que os atores estabelecem com a tradição, com o texto e com a crença em questão, visto que a cultura não se reduz a uma herança e é constituída também por criações contemporâneas. Em outras palavras, a cadeia documental

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Ver Ginzburg (2001). Corresponderiam elas ao “mito das origens” ou à “obsessão embriogenética”, para utilizarmos os próprios termos de Marc Bloch (1993)?

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que eu concebo é êmica, construída pelo ponto de vista dos atores. Êmico é um método de análise, não o contexto imediato dos comportamentos. E me parece que é aquilo que constitui a diferença mais significativa que separa as análises “sociais” das análises “culturais”. Culturas localizadas Um método de análise é igualmente um procedimento de controle das interpretações possíveis. Como todo procedimento de controle, ele coloca limites na exploração de contextos não comunicantes, distantes uns dos outros. O sacrifício desses contextos oferece, todavia, vantagens que me parecem importantes. A primeira delas é conseguir romper um ciclo lógico que tende a limitar a análise. O procedimento de “revelação” do sentido oculto pressupõe, evidentemente, que consideremos que os atores não sejam conscientes da origem profunda de sua experiência. Essa ignorância é alegada pelo pesquisador que, não tendo realizado nenhuma tentativa de reconstituir o trabalho de seleção criativa efetuado pelos atores, não nos dá nenhum meio de confirmá-las ou de negá-las. No entanto, sobre essa suposta ignorância, se instala uma consequência de peso: nosso passado atua para além da memória e da intenção. Os mitos nos pensam (Ginzburg, 2001). E de fato, esse é o caso se levarmos em consideração o procedimento de análise. A segunda vantagem que representa a reconstituição dos contextos culturais a partir da atividade de seleção dos atores é que ela permite ao historiador descobrir novos objetos: os “produtos” que foram produzidos numa época e em um lugar específico. E, por conseguinte, descobrir tradições culturais que não são construídas pelos textos, antigos ou modernos, e cuja gênese não pode ser compreendida a não ser mediante a reconstituição das relações entre ação e legitimação e das relações entre culturas e comportamentos. Como dito anteriormente, isso diz respeito à questão da possibilidade de “ser surpreendido” ao invés de “surpreender” os atores, revelando-lhes aquilo que é suposto e não o contrário. Fui confrontada recentemente por um caso de criação de uma tradição cultural que emergiu de um processo de escolha e de seleção que eram “locais”, isto é, bem situados no tempo e no espaço. Ele só se tornou compreensível através da análise das ações (e não somente dos discursos e dos escritos) efetivamente empreendidas pelos homens e mulheres em um tribunal civil numa cidade do Antigo Regime (Cerutti, 2003). O processo sumário que foi adotado em inúmeros tribunais era pouco custoso e, sobretudo, informal. A presença de advogados era proibida, bem como suas apelações, ao passo que o julgamento se apoiava apenas sobre as declarações das partes em litígio. Estas apresentavam suas próprias razões ao exporem

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detalhadamente suas ações – a venda, a compra, o empréstimo etc. –, cuja legitimidade não dependia de sua conformação a uma regra, mas, antes, do fato de terem ocorrido em um contexto geral de consenso “sem nenhum conflito”. Era um processo que legitimava as práticas sociais na qualidade de fontes do direito: uma forma supralocal de justiça que permitia aos mercadores e a outros grupos itinerantes (mas também a figuras juridicamente débeis, como as viúvas e os menores) terem acesso a um julgamento adequado e fundamentado na legitimidade conferida simplesmente às suas ações (em detrimento de seus saberes locais acerca do direito e dos costumes). Esse procedimento e seus princípios estavam enraizados em uma tradição muito antiga, que remontava ao jusnaturalismo escolástico e à concepção de “razão prática” teorizada nas obras de São Tomás de Aquino. Para compreender o funcionamento desse direito, bem como da concepção de justiça demonstrada tanto por homens quanto por mulheres durante grande parte do período moderno, era necessário, portanto, retomar essa tradição. No entanto, tal retomada estava longe de ser suficiente. Essa tradição era evocada como uma fonte de legitimação das ações e das demandas de justiça e, ao mesmo tempo, esstas mesmas ações e reinvindicações construíram um contexto no qual a tradição era reformulada, recriada e transformada. A análise detalhada do funcionamento dos processos, assim como a reconstituição dos interesses (não somente econômicos) de diferentes protagonistas envolvidos (o público do tribunal, assim como os homens da lei e os magistrados), se constituiu em operação essencial para compreender não apenas o uso que era feito de uma tradição cultural, mas também a maneira por meio da qual ela era recriada. De fato, ao longo desses anos, o jusnaturalismo escolástico se entrelaçava com outras tradições culturais, cuja aproximação seria vista como algo extremamente improvável pelos historiadores das ideias. O contexto no qual o processo sumário pôde gozar de um novo sucesso foi aquele da crítica do formalismo do procedimento judiciário que se tornou extremamente agressivo no Piemonte da primeira metade do século XVIII. A tradição do direito natural ainda era mobilizada em oposição à formalidade do direito e em relação aos abusos de poder dos homens da lei. No mesmo momento, entretanto, tornouse constante a transferência para uma tradição aparentemente diferente, vista como incompatível com aquela do empirismo baconiano e que se exprimia, no campo jurídico, pela da rejeição do apriorismo das doutrinas jurídicas e em favor da investigação empírica das características de cada caso particular. Assim, de uma maneira imprevista, o pensamento escolástico e o empirismo baconiano se aproximaram, criando uma “tradição cultural” a respeito da qual não encontramos qualquer traço nas obras de história do pensamento jurídico. 55

Um contexto político e social particular (composto pela vontade de um grande número de homens e mulheres de apresentarem seus próprios casos na Justiça e de resolverem seus litígios “com brevidade” e “sem o barulho” dos advogados somado às lutas internas da comunidade dos homens da lei) conduziu à criação de uma tradição cultural específica. Nesse caso, não somos confrontados por uma forma de manipulação dos recursos culturais já existentes, nem por simples operações de bricolagem de ideias pensadas por outros. O entrelaçamento de ação e de legitimação produziu, assim, uma forma cultural autenticamente original. Percebo então nessa pesquisa uma contribuição ao projeto micro-histórico de construção de uma história cultural e intelectual que seja, no fim das contas, singular e localizada. Uma história em que a distância entre a razão e a ação não seja estabelecida a priori e na qual o que prevalece é o “deslumbramento” suscitado no pesquisador pelas capacidades extraordinárias e criadoras das pessoas que constituem seus objetos de análise. Referências AGO,

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“A Contrapelo”: diálogo sobre o método

Simona Cerutti

“Reflexões sobre uma hipótese vinte e cinco anos depois”. O posfácio presente na nova edição francesa de Mitos, emblemas e sinais (Ginzburg, 2010) oferece uma ocasião preciosa para observar um autor reconstituindo, retrospectivamente, seu próprio caminho de pesquisa, tomando como referência um texto programático escrito há um quarto de século. Exercício delicado, já que a fidelidade a si mesmo pode ser interpretada como um sinal de coerência intelectual ou, ao contrário, como indício de isolamento interior de um paradigma muito autoritário, ao mesmo tempo que a atitude inversa, a mudança de perspectiva, pode passar mais a impressão de inconsistência do que de criatividade. Nada disso se passa com Carlo Ginzburg: ele faz desse posfácio um exercício de pesquisa e nos oferece uma reflexão importante sobre o peso que os contextos culturais podem exercer sobre a produção intelectual – o termo contexto não se refere aqui a um cenário objetivamente incontornável, mas aos elementos com os quais um autor escolhe dialogar e nos quais ele inscreve sua própria proposição intelectual, permitindo-lhe (pelo menos em parte) estruturar sua obra. O fato de que o problema da prova tenha sido pouco abordado no ensaio “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” (Ginzburg, 1989) enquanto está no centro de trabalhos posteriores permite mensurar toda a importância que o desafio pós-moderno apresentou à produção intelectual de Ginzburg. E essa importância não lhe passa despercebida: ele vai fazer do artigo de Momigliano, que denuncia as implicações céticas da desconstrução de Hayden White, o divisor de águas de seu percurso intelectual. Mas se o pós-modernismo se tornou para ele um interlocutor ou, mais que isso, um inimigo quase que central, toda sua reflexão já estava impregnada, desde seu encontro decisivo com a obra de Marc Bloch, pelo problema das condições da possibilidade do conhecimento histórico e, assim, da relação do historiador com suas fontes. Tal relação está no centro do paradigma indiciário baseado nos sinais e domina ainda, 27 anos mais tarde, a coletânea O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício (Ginzburg, 2007a). É então em torno desses “sinais” que eu gostaria de dialogar com a obra de Carlo Ginzburg ou, em outras palavras, refletir acerca das fontes como condição da possibilidade de 

Artigo originalmente publicado como: “À Rebrousse-Poil: dialogue sur la méthode”. Critique, n. 769-770,. 2011/6, p. 564-575. Trad. e rev. técnica Deivy Ferreira Carneiro (InHis/UFU).

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todo conhecimento histórico. Meu argumento é que não podemos considerar as fontes como “sinais”, mas sobretudo como ações cuja intencionalidade, longe de impedir uma compreensão profunda (e é essa a posição de Ginzburg), constituem condição dessa compreensão. Tal perspectiva permitirá também que nos voltemos a um terreno em relação ao qual Ginzburg mantém uma distância respeitosa: o campo jurídico. Distância duplamente paradoxal, uma vez que é desse campo que provêm grandes quantidades de documentos históricos e, além disso, é o campo jurídico que fornece os elementos de reflexão a respeito de dois outros termos estabelecidos por Ginzburg (juntamente com sinais) como centro do paradigma indiciário: o caso e a série. Como acariciar o “pelo muito luzidio da história”? A reflexão de Carlo Ginzburg acerca do estatuto das fontes históricas seguiu, ao longo dos anos, dois caminhos paralelos. Caminhos esses que correspondem a dois desafios constantemente presentes neste terreno e que E. P. Thompson definiu como “o positivismo trivial e o idealismo plausível”.1 De um lado, o desafio das leituras positivistas que transformam as fontes em recipientes transparentes de informações; e do outro, o ceticismo pós-moderno que considera as fontes como construções desprovidas de referência a toda realidade que lhe seria exterior. Contra essa forma moderna de ceticismo e contra o pretenso “erro referencial”, a escolha de Ginzburg foi levar o desafio para o campo dos adversários, tomando seus argumentos para, em seguida, submetê-los à análise. Os temas da retórica, da narrativa, do romance e de todas essas artes que, segundo os pós-modernos, se confundiriam com a história, foram submetidos por ele a interrogações enfáticas acerca tanto do estatuto da prova quanto da pluralidade das vias de referência.2 Entretanto, a batalha de Ginzburg contra o “positivismo grosseiro” é bem mais antiga e foi inspirada por aquilo que poderíamos definir como uma forma de empirismo não positivista, encontrado de forma relativamente explícita em alguns de seus importantes trabalhos, que, contudo, não estão entre os mais conhecidos. Um desses ensaios, inédito em francês e em português, merece ser observado aqui: Giochi di pazienza, escrito com Adriano Prosperi e apresentado em um seminário acerca do Beneficio di Cristo, um dos textos religiosos mais controversos do século XVI italiano (Ginzburg e Prosperi, 1975). Encontramos preciosos insights sobre o ofício do historiador neste livro que apresenta menos os resultados que os 1

E. P. Thompson utiliza esta expressão numa carta enviada à revista History Workshop alguns meses antes de sua morte (History Workshop, v. 35, primavera 1993, p. 274-275). 2 Ver a esse respeito: Ginzburg (2002a; 2004).

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diferentes caminhos (às vezes bons, às vezes falsos, às vezes somente plausíveis) seguidos por dois pesquisadores em seus percursos de análise. Giochi di pazienza revela a cozinha dos historiadores: ao invés de conduzirem o leitor a um belo frango assado com batatas fritas, eles apresentam uma ave ainda viva, cacarejando, com penas e barbilhão – “não uma pesquisa concluída, mas o vai-e-vem da pesquisa; as falsas pistas seguidas e descartadas antes de se chegar a um resultado exitoso” (Ginzburg e Prosperi, 1975:4). Trata-se então de um livro sobre método, mas um método que, como sugeriu Louis Garnet citado por Ginzburg e Prosperi (1975), somente revela seu percurso uma vez que a pesquisa está concluída. É esse empirismo que será apresentado de maneira mais articulada em Sinais (Ginzburg, 1989): a proposta de um método interpretativo focalizado em dados marginais e que coloca explicitamente o problema do estatuto dos casos particulares e da relação com as ciências da natureza. Não é somente o termo sinais que autoriza a evocar a influência de Marc Bloch sobre reflexão de Ginzburg acerca da relação que liga um historiador às suas fontes, mas é sobretudo, de forma mais explicita, aquele que é considerado um dos principais pressupostos da reflexão do historiador francês: aquilo que as fontes nos dizem não constitui necessariamente o objeto de nosso estudo. Nas fontes (escritas, figurativas etc.) os elementos mais reveladores de realidade são aqueles que se encontram nos bastidores. São os elementos que escapam ao controle do redator da fonte; são os traços não conscientes, não controlados (a palavra “escapam” testemunha a influência de Bloch (2001).3 Essas zonas opacas abrem caminho para os elementos culturais menos explícitos, uma vez que são os mais profundos. Os “sinais” então, como já é bem conhecido, constroem o contexto “horizontal” que está no centro do paradigma indiciário, de acordo com a definição de Ginzburg, representado pela tríade Morelli, Freud e Holmes.4 Assim, a natureza referencial das fontes não se situa onde o historiador positivista espera encontrar – nas informações deliberadamente explicitadas – mas nos traços, nos sinais; estes sim reveladores de uma realidade profunda e inconsciente. Nesse novo código de conduta proposto pelo paradigma indiciário, uma escolha é tomada a favor de um método particular de análise: uma leitura “a contrapelo”, realizada “contra as intenções dos redatores das fontes”, no intuito de capturar justamente aqueles elementos que lhes escapam ao controle.

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Ver capítulo 2 e segs. Giovanni Morelli (1816-1891) foi o inventor de um método de atribuição de autoria de obras de arte que se apoia não sobre os traços estilísticos mais evidentes de um artista, mas sobre os detalhes menos intencionais, mais espontâneos e, dessa maneira, mais difíceis de serem imitados. Ver Ginzburg (1989). Sobre Sherlock Holmes, ver p. 145-146. Sobre Freud, ver p. 146-148. Sobre a “tríade”, ver p. 150-151. A tríade Freud-Morelli-Holmes é também evocada no posfácio da edição francesa já citada.

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A ideia tomada de Walter Benjamim5 identifica, portanto, nos produtores da fonte (Ginzburg muitas vezes trabalhou com as fontes judiciais) os “vencedores” a respeito dos quais Benjamin faz referência: “o pelo muito luzidio da história” seria o produto da versão dos fatos que as fontes revelam por meio das vozes explícitas de seus redatores. Já aquilo que a leitura “a contrapelo” faria ressurgir seriam os traços não controlados e, por isso mesmo, os mais reveladores de outras histórias. Eu gostaria, da minha parte, de propor a possibilidade – e a necessidade – de outra leitura “a contrapelo”, que me parece bem mais próxima daquela que Benjamin anuncia: uma leitura que visa não somente nos proteger dos contemporâneos, mas igualmente de nós mesmos, isto é, do nosso próprio olhar sobre as fontes e sobre o passado que inscreve cada episódio no fluxo contínuo de um processo histórico dotado, a posteriori, de coerência e de transparência. O pelo muito luzidio da história é o produto de uma operação de transmissão e racionalização ex post; ao mesmo tempo que escovar no sentido contrário, com a finalidade de subtrair o passado da coerência da história, restitui sua própria contemporaneidade por meio do sentido e do significado contextual.6 Trata-se então, novamente, de detectar nas fontes os conteúdos que não são imediatamente apreendidos e que, portanto, não são da ordem do involuntário, do inconsciente. Pelo contrário: essa abordagem é semelhante à “leitura por sobre os ombros dos atores” proposta por Clifford Geertz – leitura cuja ambição não é ir além das intenções dos próprios atores, mas, ao contrário, revelar essas intenções para além de suas declarações explícitas e, sobretudo, para além da leitura anacrônica feita pelos historiadores. O anacronismo, talvez seja útil relembrar, não é o efeito de uma leitura das fontes realizada por meio das categorias dos pesquisadores. É na verdade a atribuição, geralmente implícita, de nossas próprias categorias e de nossa própria linguagem aos atores sociais. Em suma, o anacronismo não é o fruto de uma escolha de externalidade (cujas possibilidades heurísticas são, ao contrário, essenciais),7 mas de uma proximidade não controlada, de uma mistura entre categorias e temporalidades diferentes. A leitura a contrapelo, à qual faço referência, arranha a superfície da fonte para fazer surgir, para além da leitura do pesquisador, o significado que os contemporâneos deram às palavras e às coisas. As intenções dos atores estão, muitas vezes, longe de serem evidentes,

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“Sua tarefa (aquela do teórico do materialismo histórico), ele acredita, é escovar a história a contrapelo” (Tese VII. Sobre o conceito de história). Utilizamos aqui a versão de Michael Lowy: Benjamin (2007:55). 6 Ver W. Benjamin (2007:55): “Não há nenhum documento de uma cultura que não seja também documento da barbárie. E a mesma barbárie que os afeta, afeta igualmente o processo de sua transmissão de mão em mão”. 7 Essenciais e analisadas por Ginzburg (2001) em vários textos que compõem a coletânea: Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância.

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ocultadas por categorias através das quais analisamos os vestígios que foram deixados e que nos permitem qualificar suas ações. Conduzir esse trabalho de “limpeza” significa, antes de tudo, tomar ciência de uma distância e de uma diferença. A produção da maior parte dos documentos nas sociedades do passado não foi motivada por preocupações de conhecimento relacionadas, como atualmente, a interesses de natureza sociológica.8 Essas motivações surgiram muito mais de preocupações de ordem jurídica, jurisdicional ou judiciaria que se encontram na origem da produção de um documento que se tornará, posteriormente, uma fonte.9 A própria existência desta última – a produção dos “sinais” – pode então constituir o objeto de um estudo que esclarecerá tanto sua forma quanto seu conteúdo. E essa questão é válida para fontes muito diferentes umas das outras: tanto para os documentos que os historiadores qualificam como “quantitativos” quanto para as fontes narrativas que deveriam restituir as dimensões íntimas e privadas. Neste sentido, os censos populacionais das sociedades modernas – fonte cuja razão de ser nos parece evidente – são, na maior parte das vezes, mais atos de jurisdição sobre a população recenseada do que apenas uma ação burocrática. Por meio dessas operações, direitos são afirmados (direitos judiciários, direitos de arrecadação, de recrutamento etc.): as informações fornecidas pelos recenseamentos são de uma ordem particular, e essa ordem é definida por uma intencionalidade que não nos é familiar e que necessita ser reconstituída atentamente. Caso contrário, corremos o risco de cometer erros grosseiros e equívocos graves. Um novo objeto de estudo toma forma desta maneira: muitas vezes difícil de controlar, mas suscetível de abrir caminhos para leituras mais precisas e não anacrônicas. Podemos dar como exemplo – espetacular, mas não excepcional – uma das fontes nominativas mais ricas acerca da América Latina do período colonial: o recenseamento da população dos Andes peruanos no início do século XVI. Esse documento foi largamente utilizado por demógrafos e por historiadores como um reflexo da população existente. Eles retiraram desses documentos dados acerca da composição dessa população: sexo e idade, estatuto – servil ou não –, composição étnica etc. Mas só recentemente essa documentação, que se pretendia “espelho” da população, foi reinscrita no contexto de sua produção por uma jovem pesquisadora chamada Carmen Beatriz Loza (xxxx). Esse recenseamento não foi uma ação burocrática neutra; foi um ato produzido no contexto de uma disputa legal entre uma sobrinhaneta de Ignácio de Loyola e um membro da aristocracia espanhola pela jurisdição de populações

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Conforme foi sublinhado por Edoardo Grendi há alguns anos. Ver, nesse sentido, Grendi (1977). Sobre a característica reivindicativa das fontes, ver, em particular, dois números da revista Quaderni Storici, organizados por A. Torre e E. Artifoni (n. 96, dez. 1996) e por I. Grangaud (n. 129, dez. 2008). 9

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autóctones. Seus nomes; a distribuição dos homens, das mulheres e das crianças; as declarações acerca de sua condição servil ou livre – todas essas informações devem ser interpretadas em um contexto específico, capaz de permitir a avaliação das distorções contidas nesses dados. Longe de invalidar essas informações, a leitura do documento, uma vez restituído o contexto de sua produção, pode se assentar sobre bases certamente mais limitadas, mas também muito mais sólidas. Todavia, reconstituir a intencionalidade que norteou a produção dos documentos é igualmente uma exigência no caso das fontes “qualitativas”. Retomaremos aqui o debate sobre as ricordanze, memórias escritas por mercadores italianos (nesse caso, fiorentinos) entre os séculos XIV e XVI, que foram analisadas de forma notável por Christiane Klapisch (1990). As ricordanze possuem uma grande quantidade de informações familiares referentes ao nascimento das crianças, sua educação, os casamentos, os pagamentos de dotes, a mortalidade, as despesas e as contas a receber etc. Esses documentos, que aparentemente revelam apenas elementos da esfera privada, foram escritos unicamente por homens. Enquanto na mesma época as mulheres podiam ser autoras e desfrutar de um gênero literário público e de prestígio, a saber, as crônicas citadinas, as memórias de família não se enquadravam nas possibilidades de seus horizontes. Muitas hipóteses foram levantadas acerca dessa questão, mas uma análise parece decisiva: aquela que se concentra no uso que os próprios redatores das ricordanze faziam delas. As ricordanze não tinham por finalidade ficar trancadas nos cofres das casas, funcionando como uma memória de uso restrito das famílias. Elas foram produzidas, às centenas, nos tribunais civis, a fim de atestar o pagamento de dotes, de atestar direitos de herança, de certificar a existência de uma dívida etc. É essa “intenção” de uso na esfera judiciária (entre outras, provavelmente) que está na origem de sua produção e é ela também que permite compreender a razão da ausência de mulheres entre seus redatores declarados. Isso se dava simplesmente porque a palavra das mulheres não possuía legitimidade na Justiça, a ponto de carecer da presença de um homem que agisse como “guardião” (o mundualdus), fosse para dar suporte às suas queixas ou simplesmente para corroborar suas declarações. O estatuto de tais fontes é, então, aquele das ações dotadas de uma intencionalidade que não nos é mais familiar e que silencia as escolhas assinaladas pelos historiadores. Falar em termos de “sinais” não restitui à fonte essa dimensão essencial, aquela que oculta toda uma gama de experiências desses atores do passado: suas próprias ações, evidentemente, mas também seus passos no intuito de afirmar seus direitos, de assegurar suas pretensões e, finalmente, legitimar sua conduta e obter pleno reconhecimento. E esse nível de análise – que

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demonstra a enorme distância que nos separa do nosso passado –, que eu qualificaria de êmica,10 refere-se tanto ao nível dos comportamentos quanto à riqueza dos sistemas culturais, cuja eficácia não depende de sua inconsciência nem que sejam reprimidos para serem autênticos. Trata-se de os analisar não para abandonar o campo imediato dos atores, mas para prescrutarlhe com mais precisão.11 Campo histórico e campo jurídico Afirmações de direitos, de reivindicações, de jurisdição, de legitimação – todos estes termos que foram utilizados a propósito das fontes referem-se aos campos jurídico e judiciário. Carlo Ginzburg está familiarizado com fontes judiciais. Tanto Os andarilhos do bem (Ginzburg, 1988) quanto O queijo e os vermes (Ginzburg, 2006) nasceram de seu encontro com os processos inquisitoriais. O problema das relações entre os campos da história e do direito chamou sua atenção suficientemente para que ele tratasse do tema em pelo menos duas ocasiões: no livro The judge and the historian (Ginzburg, 2002b), no qual ele analisa o problema da prova, e no ensaio “O inquisidor como antropólogo” (Ginzburg, 2007b), em que se debruça mais uma vez sobre da questão das fontes; de seu caráter referencial e dos empecilhos (e dos recursos) representados pela voz de seus redatores. Todavia, é uma relação que permaneceu cautelosa, confinada ao mundo da prova e que não gerou em Ginzburg uma verdadeira reflexão sobre suas perspectivas analíticas. É significativo que no texto “Sinais”, Carlo Ginzburg (1989) dialogue com a história da arte, com a medicina ou com a psicanálise, mas não com o direito. E podemos lamentar tal situação, visto que uma atenção mais enfática sobre das relações entre as duas disciplinas poderia ter enriquecido a reflexão conduzida por Ginzburg acerca dos temas do caso e da série. O confronto entre o trabalho do juiz e o trabalho do historiador no momento específico e crucial da análise dos casos está também na origem do ensaio de Piero Calamandrei, escrito em 1939, do qual Ginzburg retirou o título do seu livro consagrado ao caso Sofri: The judge and the historian. Mas se utilizou o texto de Calamandrei como inspiração, ele não foi muito longe. Ginzburg se concentrou sobre o tema da prova, que não era central para Calamandrei, cuja obra era, na verdade, uma resposta ao denso livro La logica del

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Devemos essa distinção (que visa separar as categorias dos observadores daquelas de sujeito da observação) a. Pike (1967:37-39). Esta distinção teve uma importância crescente nas reflexões de Carlo Ginzburg (2007). 11 Já desenvolvi esses argumentos no texto: “Histoire pragmatique, ou de la rencontre entre histoire sociale et histoire culturelle” (Cerutti, 2008).

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giudice e il suo controllo in Cassazione, editado em Pádua em 193712 e escrito por Guido Calogero, um filósofo do direito próximo ao pensamento de Croce. A controvérsia entre os dois autores estava pautada na relação entre fatos e normas, tema clássico que era discutido, todavia, de uma maneira nova e extremamente interessante. A questão em debate era onde situar a proximidade do juiz e do historiador: ela se dava no momento do exame dos fatos ou na operação de qualificação e interpretação desses mesmos fatos? De acordo com Calogero são os fatos, os casos analisados que aproximam os historiadores dos juízes. Mas de quais fatos estamos falando? Juízes e historiadores, sustenta ele, não são confrontados por realidades já existentes, mas por objetos construídos por eles mesmos. Eles lidam, na verdade, apenas com documentos, testemunhos e provas que serão transformados em um caso somente por meio de suas ações. Os limites que o procedimento impõe aos juízes se aproximam das operações de escolha e de seleção que os historiadores praticam cotidianamente. Em suma, fatos jurídicos e fatos históricos são similares na medida em que são “artefatos”, produtos de uma atividade humana. Se existe uma distância entre o juiz e o historiador, afirma Calogero, ela se situa sobretudo na operação jurídica par excellence, aquela da interpretação das intenções do legislador a fim de poder aplicar a lei em um caso particular que está em análise: operação meta-histórica, envolvendo a reconstituição não da verdade, mas do verossímil, do provável. A posição de Calamandrei seguia exatamente a direção oposta. Os fatos judiciários são aqueles em que uma ou ambas as partes envolvidas indicam ao juiz que são juridicamente pertinentes. Apenas isso. Ao juiz está proibida a “curiosidade” que leva o historiador a ampliar o campo de sua própria pesquisa, na qual estabelece ligações inesperadas entre fenômenos distantes no tempo e no espaço. O historiador responde a questões que surgem de sua própria pesquisa. Já o juiz trabalha em um terreno no qual as pertinências são ditadas por uma voz exterior. Os casos jurídicos e os casos históricos não seriam da mesma natureza, mesmo que as operações de subsunção dos casos, sob uma mesma norma, aproximem o juiz e o historiador num trabalho minucioso sobre os textos do passado.13 É interessante sublinhar que as duas posições, mesmo que opostas, partilham de um mesmo fundamento: a atividade do historiador não se resume apenas à coleta de dados, de fatos evidentes por eles mesmos. O trabalho de reconstituição do passado, que mesmo os juristas

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O texto de Calamandrei foi publicado em Besta (1939). As relações entre o juiz e o historiador estão também no centro da análise de Lima (1996). 13 Esse tema foi retomado, recentemente, no contexto dos processos de crimes contra a humanidade a respeito dos quais alguns historiadores foram chamados a testemunhar, situando suas considerações em um equilíbrio tênue entre a análise e o julgamento. Ver, nesse sentido. Thomas (1998). Este artigo adota sem citar, e provavelmente de maneira não intencional, a posição de Calamandrei.

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reconhecem, implica uma atividade de escolha que está necessariamente ligada a regras (profissionais, éticas etc.). Esse campo de reflexão em torno dos elementos do empirismo que caracteriza as operações de construção dos objetos, realizada tanto por historiadores quanto por juízes, me parece constituir, ainda hoje, uma das principais riquezas desse encontro.14 E o campo dos procedimentos judiciários (há muito tempo negligenciado pelos historiadores devido a sua aridez e pelos juízes, por causa de sua presumida “impureza”) é um local de testes e de historicização das relações entre o caso e a série – historicização cuja importância foi revelada pelo trabalho de Carlo Ginzburg.15 Referências BENJAMIN, Walter. Avertissement d’incendie: une lecture des thèses “sur le concept d’histoire”.

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14

Um fundamento praticado de maneira exemplar por Clifford Geertz (1997) em um ensaio que deu o título à coletânea. 15 Restaria afirmar minha própria dívida intelectual com Carlo Ginzburg. O livro O queijo e os vermes foi uma das principais influências que me conduziu ao ofício de historiadora. Tanto seus trabalhos quanto as conversas que tivemos ao longo dos anos nutriram incessantemente minha própria pesquisa.

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____. The judge and the historian: marginal notes on a late-twentieth-century miscarriage of justice. Nova York, NY: Verso, 2002b. ____. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ____. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ____. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007a. ____. O inquisidor como antropólogo. In: ____. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007b. ____. Réflexions sur une hypothèse. In: ____. Mythes, emblèmes traces: morphologie et histoire. Lagrasse: Verdier, 2010. p. 351-364. ____;

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4

Quem está embaixo? Uma releitura de E. P. Thompson, historiador das

sociedades modernas

Simona Cerutti A tradução de Costumes em comum finalmente disponibiliza ao público francês os ensaios que o historiador britânico Edward Palmer Thompson consagrou à história moderna. Em outras palavras, uma das produções historiográficas mais ricas, mais originais e mais fecundas do século XX.1 O livro, lançado em 1991 sob o título Customs in commons, reúne ensaios escritos a partir dos anos 1960, muitos dos quais se tornaram célebres. O artigo consagrado à economia moral da multidão, reproduzido em sua versão original, foi acompanhado por uma reflexão atualizada e uma resposta detalhada aos seus críticos (e a seus exegetas) (Thompson, 1971).2 Já outros ensaios foram reeditados em versões ampliadas e enriquecidas. A coletânea apresenta uma reflexão sagaz a respeito das condições de coexistência e de conflito entre grupos sociais na sociedade inglesa do século XVIII. Trata-se assim de uma resposta a uma questão que E. P. Thompson teve o mérito de formular com profunda clareza: como é possível viver numa sociedade paternalista? Ou, dito de outra maneira, que formas de animosidade ou de resistência podem ser elaboradas no interior das relações de poder que se baseiam sobre tal idioma social? Essa questão despedaça a imagem de uma construção consensual da sociedade inglesa e conduz o pesquisador ao campo da pesquisa com fontes mais eficazes para identificar não somente essas tensões, mas também os métodos necessários para analisá-las. A tradução realizada por Jean Boutier e por Arundhati Virmani constitui uma pesada e intimidante disputa com “a fecundidade de um espírito livre e heterodoxo, hostil ao 

Artigo originalmente publicado como: “Who is below? E. P. Thompson, historien des sociétés modernes: une relecture” (Cerutti, 2015). Texto publicado por ocasião da tradução francesa do livro de E. P. Thompson (1998). (em francês: Les usages de la coutume: traditions et résistances populaires em Angleterre, XVIIe-XIXe siècle, 2015). A autora agradece a Jacques Revel pela leitura atenta deste texto e também por seus comentários e críticas. Tradução e revisão técnica de Deivy Ferreira Carneiro (InHis-UFU). 1 Devemos destacar a recepção delicada reservada a E. P. Thompson pela historiografia francesa, já evidente em A formação da classe operária inglesa (em francês, traduzido por M. Golaszewski e M.-N. Thibault em 1988 e publicado pela Gallimard/Le Seuil). Assim, 21 e 25 anos separam, respectivamente, as edições francesas de Costumes em comum e A formação da classe operária inglesa de suas edições originais. Seria interessante interrogarmos de maneira aprofundada as razões desse atraso, acompanhando os diagnósticos apresentados por Patrick Fridenson e publicados em Le Débat, 3, p. 175-192, 1980, bem como por Jacques Revel em numerosas ocasiões. Uma delas em um encontro ocorrido na Maison Française d’Oxford, em novembro de 2013, sob o título “The French E. P. Thompson”, a respeito do qual apresentarei alguns de seus argumentos. Para um balanço mais recente a respeito do sucesso dúbio da obra de E. P. Thompson, ver Davis e Morgan (2014). Ver, ainda, McWilliam (2014). 2 Publicado em francês com o título: “L’économie morale de la foule dans l’Angleterre du XVIIIe siècle” (Thompson, 1988).

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establishment, às instituições, às mesquinharias universitárias; tomada por uma escrita inflamada e incansável”, versátil e original, que fez do escritor E. P. Thompson “talvez o maior dos desafios” para seus tradutores (Boutier e Virmani, 2015:34). Mas este desafio nutriu uma proximidade com o autor e uma sensibilidade particular às intenções que estão inscritas em cada uma das escolhas lexicais. Na sua riquíssima introdução, J. Boutier e A. Virmani sublinham algumas etapas da biografia do historiador, enfatizando seu engajamento político – um elemento essencial para a compreensão de um autor para quem a paixão cívica e a produção científica sempre foram inseparáveis (Winslow, 2014).3 O essencial do texto está, portanto, dedicado à análise dos conceitos-chave de sua obra, a começar pelos “costumes em comum” que dão título à coletânea e, em especial, ao segundo dos dois termos, definido como “aquilo que pertence igualmente a mais de um” (Johnson,1755) 4 e que carrega em si uma grande parte do peso político do argumento. As “palavras poderosas” Boutier e Virmani aprofundam seus propósitos enfatizando aquilo que chamam de “palavras poderosas:5 “agência” e “economia moral”, ou ainda, “experiência” e “costumes”. Trata-se de reconstituir a origem de cada um desses conceitos na obra de E. P. Thompson e de evocar os debates suscitados por eles. A operação é útil sobretudo para os dois primeiros termos (agência e economia moral), conceitos que já não pertencem somente aos historiadores, mas que são largamente adotados no léxico de uma pluralidade de disciplinas (e até mesmo na linguagem da mídia). Com razão, os tradutores localizam na experiência de ensino que E. P. Thompson teve com os operários de Yorkshire e, paralelamente, no seu trabalho de pesquisa sobre William Morris nos arquivos, os momentos de elaboração de uma concepção de agência que não foi inspirada naquela das ciências sociais. Quanto ao processo de construção da “economia moral”, ele transita desde o Livro dos provérbios à formalização escolástica da ética cristã do preço justo, perpassando também pelo Book of orders,6 que em 1631 atribuiu ao governo real a assistência aos pobres. Isso demonstra a que ponto a economia moral não pode ser lida “em

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Para uma boa resenha desse livro, ver Pasquali (2015). O termo “common”, citado em Boutier e Virmani (2015:12). 5 Boutier e Virmani (2015:10) retomam aqui a formulação de Williams (1986:70). 6 O Book of orders é um conjunto de leis distribuído aos juízes de paz pelo rei Charles I da Inglaterra, em 31 de janeiro 1631. É considerado o elemento central das políticas de Charles I em relação às massas durante seu governo, que durou de 1629 até 1640. O objetivo das leis era garantir uma melhor administração da justiça e garantir um alívio econômico aos pobres. Foi criado também como uma forma de evitar distúrbios. Além disso, serviu para aumentar o controle do governo de Charles sobre aquilo que, até então, era visto como “assuntos locais da gentry”. (N. do T.). 4

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nenhum caso como uma simples resposta popular à experiência constante de escassez e de alta dos preços” (Boutier e Virmani, 2015:30). Não se trata de oferecer aqui uma resenha tardia de um livro publicado há quase 25anos, mas de continuar o debate acerca dos conceitos introduzidos por E. P. Thompson, particularmente um entre eles – History from below7 –, que influenciou profundamente gerações de historiadores (entre os quais, eu mesma), suscitando debates sobre a pesquisa com fontes, assim como a elaboração dos métodos necessários para implementá-la. A perspectiva adotada consiste menos em se perguntar como realizar uma “história vista de baixo”, mas em refletir, utilizando a linguagem usada por Mark Hailwood (2013) em um debate virtual ocorrido em 2013:8 who is below? (quem está embaixo?) Ao formular esta questão, M. Hailwood se interrogava sobre os contornos e os limites dessa categoria. Ela é definida por critérios socioeconômicos (“below” está relacionado à classe operária, ou à plebe, ou ao povo, ou ainda, aos pobres?)? Esse conceito está fundamentando em critérios políticos e jurídicos (as mulheres estão embaixo em uma sociedade patriarcal? E os marginais, os perseguidos e os “não conformistas”)? Se toda definição estrita parece inadequada, poderíamos nos contentar com uma definição padrão? O “below” seria tudo aquilo que não é elite? O debate foi inaugurado por alguém com autoridade para tal: Tim Hitchcock. Em uma resenha de um importante livro de Thomas Sokoll sobre as pauper’s letters, ele declarou a necessidade de se elaborar uma nova “history from below” (Hitchcock, 2004). Tratava-se de saudar o retorno a uma autêntica “história vista de baixo” após um período historiográfico no qual o pós-modernismo, o pós-estruturalismo e o “neoliberalismo de Michel Foucault e de Jürgen Habermas” (Hitchcock, 2004:295) haviam nos convencido de que a linguagem era o único objeto legítimo de estudo. E tal retorno teria como efeito, de acordo com T. Hitchcock, destacar novamente os grupos sociais que estavam particularmente familiarizados com esse tipo de artifício.9 Mas a nova história vista de baixo, cujo advento assinalamos, estaria atenta não apenas à resistência direta contra o processo de disciplinarização, mas igualmente às capacidades de construção da ordem social que pobres evidenciavam (por exemplo, os casos de

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A origem do termo é controversa. Ele aparece em um artigo de E. P. Thompson (1966). De acordo com Steve Hindle, suas origens são mais antigas, remontando às atividades de um grupo de historiadores próximos ao Partido Comunista Britânico, que contava em suas fileiras com George Rudé, Eric Hobsbawm e Rodney Hilton (Hindle, Shepard e Walter, 2013:8). Ver, também, Krantz (1985). Este livro contém o artigo de Eric Hobsbawn “History from below – some reflections” e a resenha de James C. Scott publicada originalmente no American Journal of Sociology, v. 93, n. 3, p. 725-727, 1987. 8 Hailwood teve o grande mérito de estar entre os primeiros que colocaram diretamente essa questão. 9 “Neste processo, os pobres, isto é, as mulheres e os homens que não deixaram qualquer palavra escrita, deixaram de ser atrativos” (Hitchcock, 2004).

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políticas assistenciais).10 T. Hitchcock insistia ainda, 10 anos mais tarde, sobre este ponto: esta nova história seria capaz de restituir a capacidade dos indivíduos de imporem uma redistribuição de recursos e de utilizar, para seus próprios fins, “esta tecnologia que é a linguagem” (a única concessão feita pelo autor à linguistic turn). As novas possibilidades abertas pelos recursos eletrônicos para a coleta e difusão de fontes constituem as bases dessa nova história vista de baixo.11 Essa renovação foi anunciada também por numerosas intervenções, em um simpósio virtual de 2013, que recolocaram a história vista de baixo nos debates da moda, estendendo-a a novos campos de pesquisa, se acreditarmos em alguns de seus participantes que propunham uma “Landscape history from below” (Whyte, 2013) ou uma “Global history from below” (Farrell, 2013). Nesse contexto, raras são, atualmente, as contribuições que retomam a questão colocada por M. Hailwood (mas é preciso destacar que o fórum de debates é continuamente alimentado com novas intervenções). Temos aquela de David Hitchcock, baseada numa leitura de Angelus Novus de Walter Benjamin, que abre uma discussão sobre o trabalho de “resgate” que está no centro do projeto de E. P. Thompson, sobre o qual voltaremos mais tarde. Temos também a contribuição de Matt Jackson, cujo mérito foi ter salientado os problemas do aumento da distância que pode ocorrer entre os conteúdos das fontes e as expectativas dos historiadores (Hitchcock, 2013; Jackson, 2013). A descoberta de que certos lugares que eram tradicionalmente identificados com o povo, com os pobres, com a plebe etc., tais como as tavernas ou as estalagens, acolhiam, de fato, uma população bem mais diversificada do ponto de vista social, o que levou a uma interrogação radical: “Se os historiadores utilizam as tavernas para escrever uma história vista de baixo, a respeito de quem eles estão escrevendo?” (Jackson, 2013).12 Retornemos à questão inicial: Quem está embaixo? A resposta não é simples e, desde os primeiros usos do termo, as interpretações a esse respeito foram variadas, principalmente, em razão de certa indeterminação que não foi resolvida por E. P. Thompson. E estas se cristalizaram através das traduções que a History from below, juntamente com as “palavras poderosas”,

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“A criação de uma nova Poor Law era, essencialmente, produto do sucesso dos pobres em manipular a antiga” (Hitchcock, 2004:297). T. Hitchcock considera que o livro de T. Sokoll, que publicou milhares de cartas que os pobres haviam mandado para os curas, a fim de obter assistência no contexto das primeiras Poor Law, teve o mérito de evidenciar a falsa desculpa que consiste em atribuir a dificuldade do estudo dos pobres à ausência de fontes a respeito. Sokoll mostra que elas são abundantes e explicitas e que levá-las em consideração muda a interpretação dos processos históricos, a começar pela “modernização” que conduziu a disciplinarização dos pobres. 11 Ver a intervenção de Tim Hitchcock (2010). Sobre esta nova história vista de baixo, ver Vaillant (2013). 12 No original: “In short, if historians are using drinking houses to write ‘history from below’ who are they writing that history about?”

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conheceram em diferentes países. Por fim, seria interessante nos determos sobre essas diferentes interpretações antes de retomarmos à interrogação principal. Crowd, plebs, below Em 1981 (cerca de 10 anos antes da publicação de Costumes em comum), uma coletânea de ensaios de E. P. Thompson foi publicada sob o título Società patrizia, cultura plebea pela editora italiana Einaudi, no contexto da nova coleção “Microstorie”, dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi (Thompson, 1981). O editor da coletânea, Edoardo Grendi13 (o verdadeiro pai da micro-história, segundo Giovanni Levi (2012) apresentou ao público italiano as pesquisas de E. P. Thompson sobre a história do período moderno, cuja forte coerência foi destacada numa riquíssima introdução. O tema da “história vista de baixo” foi colocado como central para a compreensão da cultura paternalista característica daquela sociedade, bem como para compreender as relações de interdependência que ligavam “os governantes e a multidão”. A tradução do título do artigo sobre a economia moral não foi fiel ao original em inglês: english crowd foi substituído por “classes populares inglesas”. E se a origem desta decisão se perdeu,14 E. Grendi, que reviu o conjunto dos textos, evidentemente a ratificou. Passar da “multidão” às “classes populares” inseria as análises de E. P. Thompson no clima e nas temáticas historiográficas dominantes daqueles anos, que haviam visto o tema da cultura popular se afirmar com a publicação de O queijo e os vermes (Ginzburg, 1980) e as traduções das obras de Mikhail Bakhtine (1979) e de Peter Burke (1980).15 Foi neste momento que o livro de Nathalie Zemon Davis, Society and culture in early modern France foi traduzido para a coleção “Microstorie”, com o título Le culture del popolo, ecoando a edição francesa lançada um ano antes (Davis, 1980).16 Traduzir english crowd por “classes populares” foi, provavelmente, menos uma escolha deliberada do que o resultado do “clima historiográfico” daquele período, comum tanto à Itália quanto à França.17 Na realidade, essa tradução reproduzia a mesma ambiguidade que caracterizava a proposta da coleção “Microstorie”, cuja contracapa anunciava 13

Sobre Edoardo Grendi, ver a reconstituição biográfica e intelectual no prefácio de Grendi (2004). Sobre a relação entre E. P. Thompson e Edoardo Grendi, ver Raggio (2012). 14 Nem Sabina Loriga, que traduziu a maior parte dos ensaios (entre eles, “A economia moral”) nem eu mesma, responsável pela editoração da coleção “Microstorie”, nos lembramos se a escolha foi da tradutora ou da editora. 15 Bakhtine (1979) teve tradução francesa com o título L’ouvre de François Rabelais et la culture populaire au moyen âge et sous la Renaissance. Trad. A. Robel. Paris: Gallimard, 1970 e foi reeditada em 1980 após ter conhecido um notável sucesso entre os historiadores do período moderno). 16 Ver também a edição francesa: Les cultures du peuple: rituels, savoirs et résistances au XVIe siècle. Tras. M.N. Bourguet. Paris: Aubier Montainge, 1979. 17 Para uma reflexão crítica acerca dessas modas historiográficas, ver Strauss (1991), bem como a réplica de Beik (1993). Na Alemanha, o artigo de E. P. Thompson (1980) sobre a economia moral foi publicado em uma coletânea. Agradeço a Christophe Duhamelle por esta informação.

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estar atenta “também, mas não necessariamente” à história dos pequenos (piccoli) e dos excluídos. No entanto, E. Grendi havia mostrado uma grande sensibilidade a respeito do tema “who is below?”, tanto na sua introdução aos ensaios de E. P. Thompson quanto em seus escritos posteriores (Grendi, 1994), buscando reconstituir as intenções de um autor que, no tocante à identificação entre a história vista de baixo e o “povo”, se manteve prudente, deixando margens de interpretação em vários de seus artigos. É importante ressaltar que Thompson utilizava de mais bom grado o termo crowd, enquanto referências às classes populares eram raras e quase sempre indefinidas. Trata-se de um ponto importante, na verdade decisivo, que foi quase que totalmente negligenciado, para a compreensão do trabalho de E. P. Thompson. Ele não foi evocado nem mesmo por ocasião de discussões recentes acerca do aniversário de 35 anos da publicação do artigo “Patrician society, plebeian culture”. Estas ficaram centradas sobretudo no caráter extremo da oposição entre os termos “patrícios” e “plebeus”, que teriam apagado toda hierarquia e toda diferenciação no interior de cada um dos dois campos.18 E. Grendi assinalou, em outra ocasião, que a categoria plebe em E. P. Thompson não descrevia uma condição social, mas servia sobretudo para designar a configuração específica das relações que caracterizavam a sociedade inglesa. A categoria plebe reintroduziria os conflitos e as formas de competição social no quadro idílico e consensual do “longo período da paz Whig”, celebrado pela historiografia inglesa (Grendi, 1981:XXVIII). E. Grendi citou a este propósito uma passagem crucial de Costumes em comum: Estes estudos, eu espero, revelarão que o conceito de cultura plebeia é mais concreto do que prático. Esta cultura não se situa na atmosfera etérea “das significações, das atitudes e dos valores”, mas ela se inscreve num equilíbrio particular das relações sociais; de um ambiente de trabalho permeado de exploração, de resistência à exploração e por relações de poder que eram ocultadas por rituais paternalistas e pela deferência.19

Em outras palavras, de acordo com E. Grendi, o termo “cultura plebeia” serviria apenas, nas intenções de E. P. Thompson, para designar os termos de oposição e de interdependência social. Segundo ele:

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Ver, a esse respeito, o resumo do debate que ocorreu na Universidade de Warwick em fevereiro de 2009 em Hailwood (2009). As intervenções de Phil Withington e Keith Wrighson, por exemplo, ressaltaram a que ponto essa dicotomia era estranha à linguagem dos contemporâneos (retornaremos mais adiante a essa crítica feita a E. P. Thompson. 19 Thompson, 2015:59-60 (ed. inglesa de 1991) apud Grendi (1994:236-237).

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De certo modo, os governantes e a multidão precisavam uns dos outros; se observavam, encenavam e contraencenavam sobre as vistas uns dos outros. Cada um dos protagonistas moderava o comportamento político do outro. Tratava-se de uma relação mais ativa e mais recíproca do que é evocada, habitualmente, pela fórmula “paternalismo e deferência” [Thompson, 2015:113].

Na sua introdução à coletânea italiana, E. Grendi ressalta outro ponto essencial: “de fato, no único exemplo de rigorosa análise contextual (tanto espacial quanto temporal) que Thompson nos oferece”, na obra Senhores e caçadores, está claro que a história vista de baixo não coincide com a história das classes populares – “o movimento dos blacks está longe de ser plebeu; e a oposição proposta é mais aquela entre a configuração social tradicional e a burocracia política: os Whigs versus os oficiais das florestas” (Grendi, 1981:XVIII).20 O tema do “who is below?” estava, portanto, muito presente no momento da publicação da edição italiana dos ensaios, o que torna ainda mais surpreendente a escolha de associar a “classe popular” à “economia moral”; escolha um pouco desrespeitosa com o título original, referindo-se, provavelmente, às solicitações daquele “clima historiográfico” e em razão da excepcional atenção crítica de E. Grendi. A associação entre below e as classes populares não era, de fato, uma característica exclusiva da historiografia italiana. Se no caso da “economia moral” a tradução francesa mais tardia (1988) permaneceu fiel ao original (“L’économie morale de la foule”, título repetido na tradução francesa de Costumes em comum), isso não se deu para proteger E. P. Thompson contra uma deformação de suas categorias analíticas. A identificação direta entre a história vista de baixo e as classes populares realizou-se por meio de uma leitura que não levou a sério a complexidade de suas análises, ignorando suas ambiguidades.21 Na realidade, não se trata apenas de um problema de tradução: a mesma tendência é encontrada em muitos estudos, tanto na Inglaterra quanto nos Estado Unidos, que se inspiraram nas pesquisas de E. P. Thompson sobre do período moderno. O “clima historiográfico do momento”, mas talvez acima de tudo o impacto dos escritos de outros autores que foram diretamente inspirados pelos trabalhos de história moderna de Thompson, em especial, os textos de James C. Scott (1977), cuja The moral economy of peasant não pode ser vista como uma imitação da economia moral thompsoniana.22 Como o próprio E. 20

Ver, nesse sentido, Thompson (1975a). O leitor francês, infelizmente, pode ter contato apenas com uma seleção de capítulos deste livro notável (Thompson (2014). 21 E mesmo nos anos 1970 e 1980, a crítica da utilização “realista” da categoria “popular” produziu reflexões importantes. Ver, por exemplo: Revel (1986); Chartier (1986); Passeron (1989). 22 E, mais recentemente, Scott (2005). Sobre esse trabalho e como ele foi influenciado não somente por E. P. Thompson, mas também por Karl Polanyi e Alexander Chayanov, ver Edelman (2005). Uma confrontação entre

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P. Thompson destacou em seus Costumes em comum, “Scott [...] vai além na descrição dos ‘valores’ e das ‘atitudes morais’”;23 isto é, ele faz da economia moral uma expressão direta da cultura de um grupo social (sublinhamos novamente que esse aspecto foi fortemente destacado por E. Grendi). Didier Fassin, em um artigo no qual faz um balanço da recepção da economia moral, destaca a esse propósito, que na obra de J. Scott a economia moral torna-se “um mundo local de valores” (Fassin, 2009:1249), cuja característica é refletir as relações de dependência. De acordo com J. Scott (1985:184 apud Fassin, 2009:1249), “o contexto moral consiste em um conjunto de expectativas e de preferências acerca das relações entre ricos e pobres”. Ricos e pobres, povo e elites; a economia moral aparece aqui inscrita no interior dessas dicotomias. Além disso, ela é chamada – intensamente – a fazer parte do patrimônio tradicional e atemporal (“uma moral prévia”)24 das classes populares. Ao mesmo tempo, remove-se a genealogia apresentada por E. P. Thompson que destaca a formalização escolástica da ética cristã do preço justo, bem como oculta-se a jurisdição real sobre os pobres, tornando duvidosa a leitura exclusiva da economia moral como uma resposta popular à penúria. Para além da versão que James Scott deu ao conceito, a vasta adoção, essencialmente metafórica, da fórmula da economia moral em um quadro de análises das resistências das culturas locais face aos processos impostos de “modernização” contribuiu para acentuar nela uma característica genericamente “popular”.25 Além disso – e isto constitui um elemento decisivo – a associação de “below” a “povo” e, por conseguinte, à qualificação social da multidão, testemunham uma atitude persistente entre os historiadores: a intenção de se referir às fisionomias sociais bem definidas; atribuir culturas ou ideologias a indivíduos ou a grupos E. P. Thompson e J. Scott foi proposta por Granovetter (1985). A economia moral conheceu um enorme sucesso nos últimos 30 anos. Uma enquete (realizada com ajuda do Google adviser) computa algumas centenas de ocorrências dess expressão nos títulos das publicações científicas. Ela revela também que a fórmula foi retomada tanto em pesquisas sobre os contextos asiáticos quanto em contextos sul-americanos, sendo algumas delas citadas por Fassin (2009). Sobre essa difusão, ver: Fassin e Eideliman (2012); Fassin e Lézé (2014); Fassin (2012). 23 Thompson (2015:418) citado também por Didier Fassin (2009:1249). De acordo com Andy Wood (2006), os livros que adotam mais de perto a formalização do tema da agency seguindo a acepção de James Scott são: Griffiths, Fox e Hindle (1996); Braddick e Walter (2001). 24 Idem. 25 Embora a utilização que foi feita desse conceito no contexto da definição e também da defesa dos bens comuns tenha tomado uma direção diferente, acabou abrangendo um sentido muito mais amplo. Para tal, ver as reflexões sobre a justiça social e o mercado propostas pelos seguintes autores: Booth (1994); Cadigan (1999); Arnold (2001); Trawick (2001). Alguns balanços, muito úteis, sobre a utilização da economia moral de E. P. Thompson pelos historiadores e pelos pesquisadores em ciências sociais podem ser encontrados em Randall (2000). Ver também, ainda que mais recente, o artigo de Batzell (2015). Sobre a utilização conforme a crítica recente advinda dos subalterns studies, ver Bahl (2005). Eu acredito que a utilização “enviesada” da fórmula de Daston (1995) contribuiu enormemente para transformar a economia moral em um código de valores “corporativo”: o “sistema equilibrado de forças emocionais, com pontos de equilíbrio e de contrastes” (p.4) é de fato, bem mais impreciso que a economia moral de E. P. Thompson, mas tornou-se um reservatório de cultura de certos grupos sociais específicos.

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bem identificados na escala social; construir sistemas de classificação alicerçados sobre qualidades individuais ou coletivas estáveis (o estatuto, o nível de riqueza, o ofício etc.) mais do que sobre as “condições” e as práticas sociais aparentemente mais difíceis de serem apreendidas. Voltaremos oportunamente a essa questão. Spatial turn vs agency? Falamos, até aqui, de mal-entendidos. Mas falamos também daqueles que são justificados, pelo menos em parte, pela ambiguidade com que o próprio E. P. Thompson tratou o conceito de “plebe” ou a expressão “cultura popular”. A cultura é “popular” enquanto expressão do povo ou em razão de seu caráter subordinado e, finalmente, de sua derrota? Essa ambiguidade é também alimentada pela sobreposição que ele opera entre a ação de protesto e a ação popular. Convém nos atentarmos neste ponto. O desafio dessa superposição diz respeito à relação entre experiência, cultura de grupo e ação. A continuidade estabelecida entre esses elementos por E. P. Thompson, sobretudo em A formação da classe operária inglesa, foi objeto de críticas severas por parte de historiadores das mais diferentes orientações. Apesar da intenção declarada neste livro, de não tratar os grupos como “coisas”, mas de os considerar acima de tudo como “processos”, a noção de experiência foi criticada como redutora e com argumentos convincentes. E. P. Thompson tende a associar cada um dos seus aspectos às relações de produção. As ações populares analisadas são expressões diretas de estruturas objetivas de poder e de experiências partilhadas, determinadas assim pela estrutura social. A ação é um produto dessa estrutura e pode ser relacionada à mesma. O contexto que é levado em conta na análise de E. P. Thompson é um contexto social, e a cultura que ele aborda é a cultura popular.26 Tal perspectiva é regida pela convicção de que os comportamentos emanam da experiência de grupos específicos que são, por sua vez, reflexos da estrutura social (de classe) e, ao mesmo tempo, o veículo de sua cultura. É essa conexão que tem sido particularmente questionada. Sabemos que o elemento de descontinuidade foi individualizado sobretudo ao nível da linguagem e de suas prerrogativas. Foi demonstrado também que esta última não pode ser considerada como uma simples expressão dos interesses de grupo já existentes, mas também como um elemento de construção desses grupos e da configuração social.27 Sabemos ainda que essa consideração fundamental,

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Kaye e McClellan (1990) e, em particular Sewell Jr. (1990); Johnson (1978). Ver também Cerutti (1996). A literatura sobre a Linguistic Turn é excessiva. Para um primeiro balanço, ver Bonnel e Hunt (1999). Sobre a noção de experiência, ver o artigo clássico de Joan W. Scott (1991). Ver também a crítica de Simona Cerutti (1997).

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tem frequentemente se perdido na dissolução do “social” em suas dimensões discursivas. Frequentemente, mas não sempre, a partir de uma nova atenção direcionada à linguagem nas últimas décadas, importantes reflexões foram desenvolvidas em direção às formas de comunicação social e política. O paradigma da circulação de informações, combinado com uma atenção específica aos espaços e aos lugares nos quais essa circulação se realiza, é apresentado explicitamente como uma via para “problematizar nossa visão da política na época moderna” (De Vivo, 2012:18) 28 e ultrapassar, assim, a oposição entre a política das elites e aquela das classes populares. No caso da pesquisa de Filippo de Vivo, de onde é retirada essa citação, a percepção das formas, bem como dos lugares dos agentes que ativaram a circulação de informações, revela uma vida política veneziana caracterizada por uma extraordinária polifonia, por uma agitação constante de vozes que construíram coletivamente os eventos políticos. Um diálogo rigoroso com as fontes impediu o autor de cair nas armadilhas colocadas pelas duas correntes clássicas em torno das quais o tema da informação foi mais frequentemente tratado: a primeira, de inspiração foucaltiana, que a transformou em um instrumento essencialmente de propaganda, ou, ao contrário, aquela (muito utilizada nas últimas décadas) inspirada nos pressupostos de Jürgen Habermas sobre a esfera púbica e marcada por um igualitarismo suspeito (De Vivo, 2012:29-33).29 Paralelamente, o terreno mais específico da história social de inspiração thompsoniana foi influenciado também por essa nova corrente. O caráter relativamente unânime do percurso que conduziu uma grande quantidade dos historiadores “das classes populares” (sobretudo, mas não apenas, no contexto anglo-saxão) em direção ao estudo da comunicação, da informação e de seus espaços, é impressionante nesse sentido. A intenção primordial que guiou essas pesquisas teve como objetivo uma contextualização mais atenta dos momentos de interação e conflitos. O prefácio de James Scott (2009) acerca do livro Political space in pre-industrial Europe, coordenado por Beat Kümin (2009), constitui-se num caso exemplar desse percurso de revisão da característica, por definição subversiva, das culturas populares.30 Nessa coletânea, os espaços clássicos da vida coletiva e das resistências das classes populares presentes nos textos dos anos 1960 e 1970, tais como as tavernas e as hospedarias, passaram a figurar como

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Esse livro é uma profunda reelaboração do livro Information and communication in Venice: rethinking early modern politics (De Vivo, 2007). No contexto anglo-saxão, essa abordagem abriu também a possibilidade de superação da oposição entre a historiografia Whig e as correntes revisionistas que perpassaram pelas últimas décadas, como Lake e Pincus (2007). 29 Para um testemunho do grande sucesso do paradigma habermesiano, ver: Lake e Pincus (2007); Rospocher (2012); Boucheron e Offenstadt (2011). 30 O livro reúne também alguns dos trabalhos apresentados no primeiro workshop “Social Sites – Öffentliche Raüme – Lieux d’échanges, 1300-1800” ocorrido em 2005.

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lugares de controle social, de competição e de conflito no interior desses mesmos grupos sociais.31 Tratava-se de um questionamento duro, que abalou algumas certezas, colocando em discussão inclusive, segundo os próprios autores, a existência efetiva das “transcrições ocultas” e “dessas afirmações e desses gestos hostis que são também centrais nas descobertas recentes da já lendária agência popular” (Brown, 2009:80). A partir disso, tornou-se cada vez mais difícil isolar os comportamentos e as culturas que poderíamos designar como “populares”, enquanto, paralelamente, esses comportamentos e essas culturas estariam longe de se expressar por meio de resistências e de revoltas diretas, face a face aos poderes constituídos O encontro entre os estudos relativos à comunicação e o spatial turn suscitou então uma discussão aprofundada sobre a existência de formas específicas de ações populares. De acordo com alguns pesquisadores, ela questionou radicalmente vários topoi da história social dos anos anteriores (entre outras, a transcrição oculta de James Scott) e, em particular, aqueles advindos da pesquisa de E. P. Thompson, como o conceito de agência, considerado altamente ligado a uma ideia de “contra-hegemonia” consciente e deliberada. Ao contrário, era preciso desviar a atenção em direção às formas – e aos lugares – de encontro e de negociação: Mais do que raciocinar em termos de agência, seria melhor pensarmos acerca das cartografias das relações de poder: nos perguntarmos onde se encontram os lugares de negociação; os teatros da representação do poder; os espaços de liminaridade.32 as redes de comunicação que poderiam produzir formas de alfabetização, bem como os litígios judiciários, ou ainda, as revoltas[Dayton, 2004].33

Cartografias de poder, espaços, redes de comunicação: o “manifesto” desse movimento foi muitas vezes compreendido como como a substituição da luta de classes pela luta de espaços (Lussault, 2009). A preocupação, constantemente invocada, de superar as oposições fáceis entre classes populares e elites acabou dissolvendo o tema do alto e do baixo no paradigma da 31

Ver: Brown (2009:61-80); Clark (2009:81-94). Peter Clark assim escreveu: “Ressaltando a natureza evasiva que a historiografia forneceu aos albergues, às tavernas e sobretudo aos cabarés e tantos outros lugares de desordem, este artigo gostaria de mostrar a centralidade desses espaços no quadro das práticas sociais e materiais de vigilância no interior da comunidade provinciana” p. 80. Ver Clark (1981). Ver também Kümin (2007). 32 A liminaridade é a segunda etapa constitutiva do ritual de acordo com a teoria de Arnold Van Gennep. Segundo essa teoria, o ritual (especialmente o rito de passagem) provoca mudanças em seus participantes, em especial, mudanças de status (N. do T.). 33 Encontramos um dos primeiros usos do termos agency por E. P. Thompson no texto “Agency and choice” (Thompson, 1958). Uma reflexão crítica sobre o conceito de agency em Thompson já se encontra no texto Anderson (1980). Para uma crítica a este conceito “saturado [...] com categorias do liberalismo do século XIX”, ver Johnson (2003). Todo o número dessa revista é consagrado à discussão acerca desse conceito. Sobre o conceito, de agency, numa perspectiva pós-modernista, ver Shaw (2001). Ver também Wood (2006). Uma bela análise da relação que podemos estabelecer entre agency e análise êmicas na antropologia encontra-se em Keane (2003). Para um balanço recente da agência thompsoniana à luz das análises espaciais, ver Featherstone e Griffin (2015).

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comunicação. A questão de “quem está embaixo?” torna-se pouco pertinente. Uma vez abandonado o mito das culturas alternativas e rebeldes; uma vez abandonada a transcrição oculta produzida pela agência, o que sobraria da história vista de baixo? Desse modo, é preciso perguntarmos se a history from below poderia fazer parte ainda das preocupações do historiador ou seria nada mais que uma invocação nostálgica? Experiências e fontes Retornemos agora e interroguemo-nos sobre a pertinência dessa operação de crítica à “cultura popular”. Se a formularmos nos termos já evocados, correremos o risco de errar o alvo. O problema está, na verdade, menos em colocar em discussão cada ingrediente da “cultura popular” como ela foi de fato – e, portanto, enfraquecer o caráter alternativo do “below” – e mais em questionar, e de maneira radical, a legitimidade da identificação entre o “baixo” e as classes populares, conjuntamente com a superposição, tão frequentemente operada, entre as culturas de protesto e as classes populares. E essa associação não sobreviveria – como diria E. P. Thompson – à imersão “na acidez dos dados” (Thompson, 1978:101 e segs.). Trata-se de fato de retomarmos uma reflexão mais aprofundada sobre as relações entre experiência, ação e cultura, sobre essa cadeia instituída por E. P. Thompson, a qual inúmeros pesquisadores pensaram que deveria ser desfeita e repensada, e que a linguistic turn, bem como o paradigma da circulação, mal atingiram a superfície da questão. Na década de 1980, certo número de pesquisadores optou por confrontar diretamente os trabalhos de E. P. Thompson analisando temas e fontes análogas às dele. Tal diálogo ocorreu no campo da análise de fontes e se referiu à reconstituição da experiência dos atores, à percepção das ações que estão transcritas nas fontes e, finalmente, ao reconhecimento da linguagem dos atores sociais. Foi nesse terreno, me parece, que foram elaborados os materiais que permitiram, em novos termos, a discussão de temas ligados à história vista de baixo, bem como sobre a questão “who is below?”. O exemplo que eu gostaria de ressaltar baseia-se na pesquisa realizada pela historiadora italiana Renata Ago acerca de um tema bem próximo daquele da economia moral (Ago, 1985).34 Ela analisou o funcionamento do mercado de grãos em Roma no século XVIII a partir de uma dupla interrogação. Em primeiro lugar, a política de aprovisionamento implementada pela autoridade pontifical se conformava ao modelo da economia moral das classes populares? Em

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Sobre a apresentação e a discussão dos resultados dessas pesquisas, ver Cerutti (1996).

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segundo lugar, o liberalismo comercial promovido pelo Estado pontifical a partir do século XIX pode ser considerado como a adoção de um modelo capitalista? Com o intuito de responder a tais questões, Ago acompanhou os protagonistas dessas trocas comerciais e reconstituiu tanto a fisionomia social como as atividades dos mercadores e dos compradores, o que a permitiu relacionar os comportamentos desses indivíduos no mercado com os interesses e as relações sociais que eles haviam tecido tanto nas províncias como nos feudos. Em suma, ela relatou as experiências desses protagonistas em diferentes planos da vida social. E os resultados dessa análise são interessantes. Renata Ago percebeu que a maior parte da população podia se encontrar, em momentos diferentes, nos papéis de vendedor, de comprador, bem como no de consumidor de seus próprios produtos. E eram esses papéis contingentes que sugeriam a cada ator uma conduta em relação ao mercado. No momento em que não havia papéis predeterminados, não era possível falar em termos de adesão a um sistema ideológico determinado. O papel de comprador ou mesmo de vendedor suscitava a reinvindicação de um controle sobre a definição do “preço justo” ou, ao contrário, a reinvindicação de um direito ao lucro. Ela encontrou essa mesma troca de posições entre os fazendeiros do feudo de Castro e os camponeses de Monteromano. No caso romano, desta feita, a economia moral não era a expressão de uma cultura social advinda da experiência partilhada por um grupo, mas era sobretudo uma forma de reinvindicação legítima, fundamentada de acordo com a posição ocupada de maneira contingente pelo ator em relação ao mercado. A diferença em relação à interpretação de E. P. Thompson, mas sobretudo em relação àquela dos seus exegetas, é evidentemente enorme: no exemplo inglês, o discurso moral é revelador da coesão e da consciência de um grupo. No caso romano, revela a existência de práticas exercidas por diversos sujeitos ao longo de toda a sua vida ou, no limite, ao longo de um dia. Renata Ago oferece, assim, uma perspectiva muito diferente sobre as relações entre as estruturas e os comportamentos: as “leis do mercado” não existem para além da experiência do mercado. Essas leis são determinadas pelas relações – instáveis e mutáveis – entre os compradores e vendedores, não obstante os efeitos destas relações nem sempre sejam planejados ou previstos (Bohstedt, 1992).35 Esse exemplo pontua, no próprio campo da economia moral, uma questão importante: a necessidade de sermos cuidadosos em relação a toda e qualquer assimilação direta (não

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Esse artigo evidenciou que a economia moral não seria uma “condenação ao capitalismo”, mas sobretudo uma “correção” do comércio, convidando, dessa maneira, a “repensar a economia moral como um conjunto de táticas pragmáticas mais do que como um corpo de crenças anticapitalistas” (Bohstedt, 1992:274). Reflexões precoces sobre o tema encontram-se em Coats (19720 e também na resposta de Fox-Genovese (1973); Stevenson (1985).

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verificável empiricamente) entre uma estrutura social, uma cultura e as ações. E tal questão é especialmente verdadeira nas sociedades do período moderno, no qual um estatuto particular é atribuído à ação. Não somente não podemos considerá-la como sendo uma emanação “natural” de grupos definidos como devemos perceber que o movimento é na verdade inverso, já que é a ação que pode conferir o status, bem como as qualidades individuais ou de grupo. Raciocinar em termos de “práticas” ao invés de identidades ou culturas de grupos não significa, todavia, substituir a análise dos grupos sociais por variáveis fluidas e imprecisas. Trata-se sobretudo de reconhecer o estatuto particular atribuído à ação nessas sociedades do período moderno e sua capacidade de transformar as condições sociais (e não somente de refleti-las). A repetição, ao longo do tempo, de uma ação que ocorrera “sem qualquer contradição” seria capaz de atribuir direitos e prerrogativas (Torre, 1995; Raggio, 1996; Cerutti, 2003; 2007). Mais que o título formal de propriedade, era a situação de fato, a familiaridade com o objeto ou seu uso contínuo ao longo do tempo que atribuía o status de proprietário. Mais que a atribuição formal de um cargo ou um posto, era o fato de “agir como” que poderia modificar o status individual. Nesse sentido, as ações não seriam expressões de estruturas preexistentes, mas sobretudo os canais por meio dos quais se constroem os edifícios sociais, bem como seriam os momentos de sua legitimação (Ogien, 1985; Cerutti, 2008).36 O uso estabelecido pela multiplicidade de status [...] sem estabelecermos os sujeitos e suas vontades, se limita a registrar um equilíbrio de forças, natural ou já consolidado pelo tempo, revestindo-o de legalidade. Os status pessoais não são um número limitado de condições pessoais definidas a priori, mas são as inumeráveis situações socioeconômicas nas quais as pessoas se encontram.37

Ação/agência O conceito de ação que estamos discutindo aqui é bem diferente do conceito thompsoniano de agência. Enquanto este último é a expressão das capacidades de um grupo definido, dotado de consciência e de vontade que interpreta o mundo social e age sobre ele, o conceito de ação refere-se às capacidades práticas desempenhadas por sujeitos múltiplos e diferentes que estabelecem fisionomias e grupos sociais. É desnecessário dizer que essas duas dimensões não são excludentes e que podem estar, na verdade, estreitamente ligadas. Nesse sentido, elas

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Para uma reflexão recente sobre o caráter performático das práticas para um filósofo, ver Frega (2015). A citação, perfeitamente adaptada a um contexto da época moderna é, todavia, de um historiador medievalista (Conte, 1995; 2000). 37

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remetem a dois níveis diferentes de leitura das fontes. Tanto uma quanto a outra são completamente legítimas, mas devem, dessa maneira, permanecer desassociadas em um olhar êmico e em um olhar ético. Apesar disso, uma crítica pertinente foi direcionada a E. P. Thompson devido a sua falta de vigilância em relação à separação. O antropólogo Renato Rosaldo abordou tal problema de maneira bem explícita. Segundo ele, Thompson não distinguia sua própria interpretação daquela dos sujeitos atores que ele estudou. Ele tratava sua própria narração como um dispositivo neutro e não como uma forma cultural escolhida entre uma gama de formas possíveis. Ele acabou por se alimentar de um idioma cultural do passado – o melodrama. Entretanto – e é legítimo colocarmos tal questão – trata-se do idioma de E. P. Thompson ou daquele dos protagonistas de seu estudo? (Rosaldo, 1990). Em suma, R. Rosaldo parece sugerir que a relação passado/presente, tão viva na obra de E. P. Thompson, o conduziu a repelir a alteridade do passado (Grendi, 1994:244). Essa crítica é dura, sobretudo porque foi dirigida a um historiador que refletiu de maneira muito intensa a respeito da leitura e interpretação das fontes (lutando contra o jogo acadêmico e os anacronismos produzidos por ele). A que ponto tal crítica é fundamentada é o que revela uma pesquisa similar à de Thompson, que aborda o mesmo tema e se baseia em fontes análogas. Trata-se das cartas anônimas, que protagonizam ao mesmo tempo o artigo “The crime of anonymity” (um dos textos mais famosos de Thompson (1975b), e a pequena obra Lettere orbe, de Edoardo Grendi (1989). Seria interessante, para nosso propósito, comparar os procedimentos seguidos nessas duas pesquisas. As cartas anônimas, que foram objeto da pesquisa de E. P. Thompson, foram analisadas como “formas características de protesto social de toda sociedade nas quais as formas de defesa coletivas são vulneráveis” (Thompson, 1975b:257). A extraordinária violência dos termos e dos modos de comunicação é valorizada mediante a organização das cartas por tema, o que revela a extensão dos domínios sobre os quais o protesto é exercido. Esta violência que acompanha a legitimidade manifesta atribuída às cartas – publicadas no folhetim oficial London Gazette entre os anos de 1750 e 1820 – o auxiliou no desmantelamento da imagem pacífica e consensual do governo Whig. Somos aqui confrontados com uma manifestação flagrante do protesto social; um testemunho “vindo de baixo” da maneira por meio da qual relações encharcadas de uma ideologia paternalista puderam ser vividas no seio de uma sociedade extremamente hierarquizada. As cartas anônimas endereçadas, um século mais tarde, ao Estado genovês pelos indivíduos das cidades e das zonas rurais, que gozavam, aliás, de semelhante legitimidade entre eles (elas eram solicitadas pelo governo local), foram analisadas de uma maneira muito 83

diferente. Em primeiro lugar, elas foram organizadas mais de acordo com um critério territorial do que sociológico, ou seja, a partir da proximidade ou da distância em relação ao governo central. Foram, portanto as fontes que ditaram sua própria classificação. Em seguida, a pesquisa realizada enfatizou dois polos que eram mantidos numa tensão constante: de um lado, a preocupação em desvendar a complexidade da “expectativa em relação à autoridade” (Grendi, 1989:8) que variava sobretudo em função da localização das cartas; de outro, a individualização dos interlocutores locais desses documentos. O historiador buscou, na verdade, reconstituir não somente as relações dos sujeitos com o Estado, mas também os aspectos da vida local, o que revela uma análise muito atenta dos escritos. A partida foi ganha, me parece, nesses dois terrenos. A análise da expectativa em relação ao Estado coloca em evidência a competência jurídica dos atores que recorrem a essas cartas para intervir diretamente nos procedimentos em curso – um ponto assinalado também por E. P. Thompson, mas que infelizmente não foi desenvolvido – ou para exprimir as visões particulares da justiça (civil para os ricos e criminal para os pobres). Mas o que, acima de tudo, emerge das cartas é uma crônica densa de uma vida local dominada por um conflito nobiliárquico endêmico e pela corrupção dos oficiais locais. Essas são imagens muito particulares de comunidades no seio de um Estado que emerge; profundamente diferente daquelas que surgem de outras fontes mais familiares aos historiadores (súplicas, solicitações de graça, processos). Estamos assim bem longe daquela oposição única entre os pobres e seus senhores que E. P. Thompson evidencia nas cartas anônimas inglesas. Nos encontramos imersos, desta feita, em um mundo social que conhece, evidentemente, os conflitos com as autoridades, mas que é, ao mesmo tempo, muito estratificado e perpassado por uma pluralidade de outras tensões, de outros interesses e de outros desafios. É possível que tais diferenças estejam ligadas à diversidade de fontes, contextos e de períodos analisados. Todavia, fica muito evidente que o confronto com a historiografia Whig e com sua imagem de uma sociedade dominada pelo paternalismo, e a diferença que ela transmite, que ditou a Thompson sua rígida agenda: ao incorporar a dicotomia entre o alto e o baixo; entre os pobres, o povo e os poderosos, o historiador inglês adotou a linguagem de suas próprias fontes, sem opor qualquer resistência crítica. Mas qual resistência e qual crítica? A linguagem da pobreza, tal como ela aparece nas fontes judiciárias e nas súplicas, impõe ao historiador um esforço de abstração em relação às

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categorias contemporâneas.38 No interior da complexa história dos “pobres” ao longo dos séculos, existe uma constante que é preciso levar em consideração: o amor e a proteção dirigida a eles se manifestam diretamente como atos de administração política. Tal característica marca a categoria: desde sua genial invenção realizadas pelos bispos ao longo do quarto século da era cristã39 até a passagem da tutela dos pobres para as mãos dos soberanos, em particular os reis da França, entre os séculos XIII e XIV (Brown, 1992; 2012); Aladjini, 2008). A capacidade legitimadora da proteção para com os pobres entre os interlocutores privilegiados da administração central transformou a reinvindicação da pobreza em um instrumento de pressão tanto individual quanto coletiva. Dessa maneira, a categoria, tal como ela emerge dos documentos, somente pode ser lida e interpretada à luz da jurisdição à qual ela estava submetida e à luz dos direitos que eram atribuídos a ela. Os “pobres” das súplicas e das queixas não são “o pobre”. Os pobres são todos aqueles que, a partir de uma condição de vulnerabilidade, que pode ser econômica ou não, reivindicam um direito a proteção que, tradicionalmente, lhes é atribuída pelo direito (Cerutti, 2012).40 Encontramos aqui as ideias de interdependência e reciprocidade que caracterizam a economia moral, dissipando assim quaisquer equívocos possíveis. Essa constante nos auxilia a desconfiarmos de toda associação do termo ao seu significado atual. Isso pode parecer trivial; entretanto ainda hoje são muito numerosos os pesquisadores que se utilizam das súplicas dos “pobres” para mensurar a privação econômica de uma dada sociedade. Ainda que E. P. Thompson tenha mostrado muita prudência, a crítica de R. Rosaldo é bem fundamentada: o historiador inglês, por vezes, confiou tanto nas aparências quanto na linguagem dos atores, sem manter uma boa distância. O que queremos dizer com esses argumentos é que a economia moral não é um patrimônio específico do pobre, assim como as cartas anônimas não devem ser vistas como uma forma de comunicação com a autoridade que seria própria da plebe. Nesse sentido, a history from below é de fato a história da economia moral bem como aquela das cartas anônimas. Ela é a história dos princípios econômicos, das concepções de justiça e redistribuição, das relações com as

38

Ao longo de toda a Idade Média e de uma boa parte da Idade Moderna, a palavra pobre remetia a uma noção de ausência, insuficiência, carência etc., de acordo com a palavra latina da qual se originou: paulus (pouco de); enquanto a ideia de privação econômica estava mais associada aos termos indigente e inapto. (Todeschini, 2007). 39 Os pobres são a glória dos bispos, de acordo com São Jerônimo, que deu ainda uma formulação a esse processo particular de “criação” e de apropriação da categoria pelos bispos ao longo dos primeiros séculos do cristianismo. A tutela dos pobres tornou-se um desafio político capital na competição que opunha as elites urbanas no curso do quarto século, e esse processo foi enxertado na invenção do caráter popular do cristianismo. Ver, nesse sentido: Brown (1992; 2012); Aladjini (2008). 40 . Para uma análise da linguagem da pobreza utilizada nas súplicas e nas fontes judiciárias, ver as pesquisas (nem sempre atentas às precauções que acabamos de evocar) de Shephard (2008; 2015). Ver também Wood (2001). A respeito da época medieval, ver: McDonough (2014); Vermeesch (2014). Para uma crítica da leitura economicista, ver: Cerutti (2010); Vallerani (2015); Cerutti e Vallerani, (2015).

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autoridades usufruídas numa legitimidade total em um momento histórico, mas retiradas em outro contexto. A history from below é assim a história do que poderia ter acontecido explicitada por E. P. Thompson: é uma história “em outros termos” que se esforça em restituir as vozes que não foram levadas em consideração e que perderam a batalha por sua legitimidade. A natureza popular das culturas “alternativas” é frequentemente o produto de uma mudança indevida e o resultado de um círculo vicioso. Percebe-se claramente que foi o fato de elas terem sido derrotadas que transformou – na versão de seus antagonistas contemporâneos e, posteriormente, na dos historiadores – determinadas culturas em “populares” e não o contrário. Mais do que descrever o patrimônio de um grupo social, o adjetivo designa uma etapa no processo de deslegitimação de sua cultura. Isso foi o que eu pude verificar a respeito do campo da justiça na obra de E. P. Thompson, um campo que foi, como bem sabemos, marcado por batalhas de legitimidade. Os historiadores reconstituíram, muitas vezes, a competição entre uma justiça popular (informal, menos onerosa etc.) e uma justiça mais formal. No entanto, minha própria experiência de pesquisa me sugere uma perspectiva diferente. Trabalhando em diversos tribunais de Turim, a capital do Estado da Savoia durante todo o século XVII, encontrei, na verdade, uma pluralidade de procedimentos (Cerutti, 2003). Cada um entre eles era regido por uma “gramática” de direito específica; por diferentes ideias do que seria uma prova ou do que seria um julgamento justo – em particular, as características da justiça sumária que estava em vigor nesses tribunais e que funcionava, numa primeira abordagem, como um exemplo particularmente significativo de justiça popular. A presença de advogados e sua “argumentação” eram proibidas, ao passo que os debates eram compostos unicamente pela confrontação entre as partes. Estas apresentavam o caso através de descrições detalhadas de suas próprias ações – as condições por meio das quais haviam sido realizadas as vendas, as dívidas, os empréstimos etc. – cuja legitimidade não era medida em função da sua conformidade a uma norma, mas sobretudo em função de sua inclusão em um contexto de consenso geral. Tratava-se de práticas que haviam decorrido “sem nenhuma contradição”. O processo sumário legitimava esses procedimentos sociais na qualidade de fontes do direito. Práticas sociais versus normas jurídicas: isso poderia ser suficiente para fazer da justiça sumária uma justiça “popular”, ainda mais que ela havia sido substituída, nos anos 1730, por procedimentos mais formalizados. No entanto, se olharmos mais de perto, isto é, analisarmos a gramática desse procedimento e individualizarmos seus simpatizantes e seus antagonistas, surge uma imagem bem diferente. Esse procedimento correspondia a uma concepção particular 86

da justiça cujos princípios tomavam mais como referência o direito natural do que do direito positivo. Eles eram tudo, menos informais; estavam enraizados em tradições jurídicas antigas e legítimas. Tratava-se de uma forma de justiça supralocal que permitia aos mercadores e a outras figuras sociais itinerantes (mas igualmente a figuras socialmente vulneráveis tais como as viúvas e os mineiros) o acesso a um julgamento equitativo, fundamentado mais na legitimidade das suas ações do que na adesão às leis. Tal justiça era, dessa feita, conhecida pelos sujeitos que, em razão de uma fragilidade jurídica ou devido à mobilidade territorial, compartilhavam uma “incompetência” aos olhos das normas locais. A justiça sumária reflete um pluralismo jurídico que era específico daquela sociedade e sua derrota é o resultado de uma duríssima competição entre diferentes atores sociais que não podem ser reduzidos a uma simples oposição entre o povo e a elite. O direito natural não era uma linguagem do povo, mas a expressão de todos aqueles que, pertencendo ou não ao povo, se opunham a uma ideia de justiça formalizada e monopolizada somente pelos profissionais do direito; de todos aqueles que reivindicavam a dignidade das práticas constituídas na forma do direito. A derrota do procedimento sumário foi a derrota de um ideal de justiça mais “laico”, ainda que certamente popular. O adjetivo “popular” que foi atribuído a essa justiça mais confirmava seu fracasso do que o explicava. Este ponto, em especial, merece mais ênfase que a assimilação abusiva entre “exclusão” e “povo”. A derrota ou exclusão da cultura popular do campo da visibilidade são apresentados frequentemente como processos autoevidentes, como produtos necessários para a afirmação do poder, enquanto nada pode ser dado como certo na competição por legitimidade. A history from below é o culminar deste trabalho de recuperação daquilo que poderia ter acontecido: um trabalho de resgate de outros sistemas de significação que, tendo perdido sua batalha por legitimidade, foram “esquecidos”. Trata-se, pois, de um trabalho sobre a memória e sobre o poder, sobre tudo aquilo que nós esquecemos ou que nos fizeram esquecer. É sobre esse aspecto que repousa sua dimensão profundamente política, muito mais, creio eu, do que sobre sua atribuição a certas culturas e a grupos sociais específicos. A history from below é um trabalho de reconstituição de configurações sociais frequentemente compostas (no interior daquelas classes populares, podendo ter sido associadas a outros grupos sociais) que concebeu, utilizou e modificou esses sistemas de significado.41

41

Hitchcock (2013), no artigo “Why history from below matters more than ever?”, fala também sobre o resgate, mas de maneira diferente, ligado à percepção de alteridade: “para mim, a história vista de baixo é ainda um projeto de resgate, não somente da ‘condescendência’ da pretensa superioridade do nosso olhar contemporâneo em relação àquele dos nossos ancestrais, mas também da maneira por meio da qual escolhemos tratar as pessoas que não

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O fato de desvincular a history from below do estudo da cultura popular poderia expandir seu campo de ação. Sem poder aprofundar essa questão, eu gostaria de propor um exemplo relativo a um campo aparentemente distante da história social e que, na verdade, me é pouco familiar: a história do conceito de adiáfora. As adiáforas são as “coisas indiferentes, insignificantes” que, de acordo com a filosofia estoica, se situam fora da lei moral ou, dito de outra maneira, as ações que a lei moral nem permite nem proíbe. Retomada por Paulo na primeira epístola aos coríntios (8-10), o conceito torna-se um instrumento de reflexão sobre a possibilidade, para os cristãos, de praticar ritos pagãos. A questão está, então, em saber em qual número e onde se situam as coisas insignificantes, a respeito das quais não seria necessário solicitar o parecer das autoridades.42 No século XVI, a adiáfora conheceu um novo sucesso ainda a respeito da questão dos ritos, advinda do impulso da reflexão das doutrinas reformadas. O debate acerca das coisas indiferentes está muito presente nos escritos de João Calvino bem como em outros textos dos principais pais reformadores.43 Na Inglaterra, a nova Igreja se construiu, pelo menos em parte, a partir dos “vazios” estabelecidos pelas adiáforas.44 Paralelamente, o debate se laicizou e empenhou-se mais diretamente na questão da definição das esferas de obediência devidas às autoridades civis.45 Além disso, o tema também chegou no contexto familiar por meio de uma reflexão sobre as relações entre os pais e os filhos, bem como entre os cônjuges.46 Foi nesse terreno laico que ocorreu meu encontro com as adiáforas, por meio de um tratado de François Grimaudet, jurista francês de religião reformada, intitulado Des causes qui excusent le dol, publicado em 1585 (Grimaudet, 1595).47 Trata-se de um escrito que busca definir as modulações das responsabilidades jurídicas que devem ser levadas em consideração em um julgamento equitativo. No caso dos mineiros, das mulheres casadas e dos servos, o problema se coloca na definição dos terrenos sobre os quais a obediência é devida (e quando o

compreendemos. A história vista de baixo é aquela que se preocupa em restituir essas histórias que a memória coletiva e a história nacional marginalizaram”. 42 Acerca desta questão, ver o livro muito controverso de Jaquette (1995; 1996), o primeiro com uma rica bibliografia. 43 Para uma boa introdução sobre o tema, ver Stevenson Jr. (1999) Ver também: Street (1955). A respeito das opiniões de Philippe Melanchton e Thomas Starkey, ver Zeeveld, (1948) e a resenha crítica de Mayer (1980). 44 Bradshaw (1605). Ver também: Verkamp (1977); Greaves (1982). 45 Os argumentos são apresentados por John Locke (1992) e Locke (2002:28 e segs), em resposta ao proposto por Bagshaw (1660). Acerca desse debate, ver: Creppell (1996) e, sobretudo, Rose (2005), finalizado com uma rica bibliografia. 46 Encontramos um bom exemplo em Ferrière (1766). 47 Agradeço a Françoise Briegel por ter me feito prestar atenção neste tratado, no contexto do nosso trabalho em comum sobre a responsabilidade na justiça ao longo do período moderno.

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dolo deve ser perdoado). Os delitos que se referem aos “direitos naturais” devem ser sempre considerados abomináveis, mesmo na ausência de uma proibição por parte das autoridades: ceux lesquels par cognoissance et instinct naturel l’homme juge estre malefices, et qu’il ne les faut commettre, comme meurtre, parricides, empoisonnemen, et autres semblables actes, lesquels sans aucune prohibition il ne faut commetre, et convient les fuir [Grimaudet, 1595:33-34].

Outros delitos devem ainda suscitar uma oposição, certamente “modesta”, advinda do exemplo de um pai ou de um marido: comme s’il commandoit mettre le feu en la ville, trahir le pays, ou faire aucun vilain cas. Mais toutesfois le refus d’obéir, doit estre avec response modeste, et reverence à eux deüe [Grimaudet, 1595:33].

E, finalmente, existem as adiáforas, as coisas indiferentes: Et ne sont crimes fors par la prohibition de la loy: comme s’ascrire dans des biens d’un testateur en son testament, de soy est acte indifferent, et est delict seulement pour la prohibition de la loy [Grimaudet, 1595:33].

As adiáforas “não são os crimes criados pela proibição da lei”. Trata-se, em suma, de espaços “francos” de autoridade; lugares neutros nos quais o problema da obediência não se coloca e onde a ingerência dos superiores não tem razão de ser. De acordo com Grimaudet, as leis civis são, então, “coisas indiferentes”, moralmente neutras pois proíbem “somente” pela lei. A posição de Grimaudet está longe se ser isolada. A discussão acerca da definição das adiáforas permaneceu viva durante uma grande parte do período moderno e reapareceu discretamente, mas de forma constante, em uma pluralidade de contextos.48 O que estava em jogo era, evidentemente, mais significativo: tratava-se da definição de espaços subtraídos da autoridade, de localizar os lugares nos quais nem a proibição nem o consentimento deveriam ser levados em conta. O debate em torno das adiáforas precisa ainda ser restabelecido. Ele constitui uma etapa no interior de uma reflexão acerca da autoridade, da obediência e de seus

48

Esta é uma posição partilhada, por exemplo, por Robert Barnes, no texto “Les lois humaines n’engagent pas la conscience” citado por Verkamp (1977:42).

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limites, bem como da resistência legítima às opiniões das autoridades. Esse debate registrou um momento de aceleração nos meios reformados até se dispersar, em seguida, em pequenos cursos d’água que mal podemos identificar nos dias de hoje. Com a história dos escrúpulos e da melancolia,49 esse debate nos levou a uma história da obediência e dos seus limites, o que em minha opinião, se configura – para todos os efeitos e apesar dos contextos intelectuais nos quais ele se desenvolveu – numa possível history from below. Referências AGO,

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