Institucionalização da prática de Enfermagem com Florence Nightingale

Agradeço o honroso convite para ser o porta-voz da Congregação desta Escola em sua primeira sessão selene após ter-se integrado de Professores Titulares. Outros de nós têm recebido incumbências de falar à Escola reunida; cabe a mim a palavra pelo grupo, desta vez. Recebo o convite, lembrando-me do deleite de ter ouvido vários de vós e prelibando a próxima ocasião em que acompanharei, como ouvinte, reflexões de outro que for designado.

Convido-vos a refletirmos sobre o seguinte: a enfermeira, e a institucionalização da profissão e de seu novo papel profissional.

Sociologicamente está firmada a profissão de enfermeiro. Seu complexo institucional conta com cursos de Graduação e Pós-Graduação nas estruturas universitárias, valendo-se de um corpo de conhecimentos, obtidos por pesquisa científica, técnicas e valores profissionais, tudo transmitido a cada grupo anual das novas gerações; divisões e outros setores corretamente hierarquizados em órgãos de prestação de serviços; ocupações técnicas e auxiliares participantes do desempenho da assistência à saúde; associação de natureza cultural responsável por conduzir, com instrumentos sociais, o progresso da enfermagem; início de vida sindical nas unidades da Federação; e por ultime, nessa ordem cronológica, conta com os Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem para disciplina e ética do exercício. Tal complexo está estabelecido por meio dos consensos sociais, expressos na norma jurídica de leis, e na realidade de fatos comprovados. O simples enumerar desses seis componentes da enfermagem deve ter suscitado ricas reflexões neste auditório. Em cada um desses componentes alguns de vós poderiam discorrer com argumentos válidos, sobre nossas falhas e franquezas.

Penetraremos nesse por assim território do complexo institucional para examinar vossas possíveis reflexões. Não c faremos como aconselhou Dante em seu célebre aviso de deixar a esperança do lado de fora. Move-nos a confiança no futuro.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

Será justificada a esperança no futuro de nossa profissão?

Neste, por assim dizer, território podemos começar primeiramente por indagar o que fazemos e como fazemos. Vamos partir do princípio.

Em nossos dias, o historiador Arnold Toynbee utilizou a expressão costela, num paralelo do enunciado bíblico sobre a criação. Por exemplo, da cultura ibérica, uma costela veio a formar a atual cultura brasileira permanecendo viva, na Europa de então, a cultura do onde se destacou o começo da nossa. Posso prosseguir exemplificando, que houve uma costela da enfermagem norte-americana trazida para o Brasil nos anos 20 e 30 pelas enfermeiras da missão Rockefeller.

Quanto tempo teria levado para que o complexo institucional da enfermagem se completasse com os Conselhos Federal e Regionais que só se instalaram em 1975? No desenrolar da história de um grupo profissional, meio século é muito pouco tempo. Que psicologia social tem existido? As pessoas empenhadas na enfermagem brasileira estariam sabendo, nos anos 20 e 30 o "que" e "como" de seu próprio trabalho no processo do desenvolvimento da enfermagem? Desde as pioneiras de 1925, cinco grupos etários de enfermeiras, segundo c valor modal das idades das turmas, têm estado em sucessão: nascidas antes de 1910, 20, 30, 40 e 50. Que teriam pensado e que estão pensando estes grupos sobre o "que" e "como" de sua participação na enfermagem? Dou um testemunho. Tomei parte nos componentes iniciais do nosso complexo institucional em elaboração. Não tive perspectiva para reconhecer neles que importância e seu significado na cultura. Participei de reuniões da ABEn, nos anos 30, e da leitura do que então se escrevia, com lamentável ignorância de seu valor: (*** *** Percebi a importância das leis para à enfermagem depois que cursei a especialização; em 1942 o Chefe do Gabinete do Ministro da Educação e Cultura, e em 1943 a líder perspicaz Madre Marie Domineuc procuraram-me para eu começar a ver a Legislação de Enfermagem. ) Algumas de nós deixaram extraviar seus números da Revista Brasileira de Enfermagem; evidenciou-se por pesquisa de 1950 (1LIMA, Izaura B. et alii. — Aspectos da Situação da Enfermagem no Brasil. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 1950.)que um grande número de enfermeiros não registrava seu diploma no Ministério da Educação. Testemunhei uma ou outra enfermeira não dar importância a um trabalho muito custoso em que pessoas se empenharam durante anos para que todos os campos da enfermagem ficassem reunidos em uma só profissão. Refiro-me à junção da enfermagem obstétrica.

Apesar da não percepção por parte das enfermeiras, em geral, está em andamento o processo do desenvolvimento da enfermagem, isto é, seu complexo institucional estará se completando, ano a ano. Por processo entende-se mudança contínua de um objeto qualquer em direção definida. Qual teria sido o fio invisível a ligar o desenvolvimento da enfermagem, guiados para um fim definido? Essa pergunta, a meu ver, só pode ser respondida pela teologia, porque deve ter sido por um Poder Iluminador. Vejamos. Os traços diversos de um mesmo complexo institucional são desenvolvidos por grupos diferentes de pessoas, e em momentos diferentes do continuum cultural; não há, talvez, possibilidade de uma comunhão íntima das idéias contemporâneas e no entanto o complexo institucional se forma, e de modo assaz racional. Com essa observação, não quero significar que o progresso se fez à revelia das enfermeiras. É o assumir a profissão, vale dizer, o participar ético de cada uma em seu posto de trabalho, com responsabilidade, que tem levado para diante a enfermagem. Nunca será possível conhecer, para se admirar, os sofrimentos e as lutas que enfermeiras têm enfrentado, ocasionadas porque existe o mal no mundo. A este respeito desejo citar pensadores e místicos que estão tentando interpretar a história. Tenho lido que é justamente o atrito entre o bem e o mal que põe os homens e mulheres a viver vidas que valem a pena e que estão forjando o progresso humano e o estabelecimento do reino do bem e da justiça.

Em resumo, nessa primeira das considerações gerais, fez-se referência ao continuum cultural do desenvolvimento da enfermagem. O propósito foi fazer x:m paralelo: ao exemplo do passado em que enfermeiras não se davam conta de coisas importantes que já estavam acontecendo com o grupo profissional infere-se que hoje podemos deixar de valorizar aspectos sutis da estrutura de nosso grupo profissional que no futuro vão se delinear com mais clareza. Pode ser que as especialidades da enfermagem já se apresentem em traços ainda obscuros nos primeiros cursos de Mestrado e residências de enfermagem.

Em segundo lugar, as condições da enfermagem, porque estão indissociadas das condições da mulher na cultura brasileira, tendem a melhorar. Felícia R. Madeira e Paulo I. Singer (2MADEIRA, F. R. e Singer, P. I. — Estrutura do Emprego e Trabalho Feminino no Brasil — 1920-1970. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), São Paulo, Brasiliense, 1975. 45 p.), estudando o emprego nos Serviços de Consumo Coletivo, afirmam: "Os Serviços de Consumo Coletivo têm sofrido acentuada expansão, à medida que o desenvolvimento acarreta uma demanda crescente por serviços sociais, educacionais e de saúde, enquanto a complexidade e diversidade cada vez maiores das funções governamentais induz a expansão da administração pública"... "A importância dos Serviços de Consumo Coletivo do ponto de vista do emprego é muito pequena em 1920 e em 1940, quando menos de 3% da força de trabalho feminino se achava engajados neles. Mas, em 1950, esta proporção salta para 5,7%, subindo para 7% em 1960 e para 10,5% em 1970. Neste ano, os Serviços de Consumo Coletivo ocupam quase tantas mulheres quanto o Secundário I e os Serviços de Produção juntos". Prosseguem estes autores seus comentários. Nestes serviços, "o número tanto de homens como de mulheres engajados tem aumentado rapidamente, sendo o crescimento do número de mulheres 1,5 a 3 vezes superior ao de homens. Resulta daí que este Setor que era predominantemente masculino em 1920, quando as mulheres não representavam mais do que 17,2% de sua mão-de-obra, vai se tornando cada vez mais misto, com o contínuo aumento da participação feminina, que em 1970, atinge 43,3%. Comentam ainda: A mulher ocupada nos Serviços de Consumo Coletivo é em geral professora ou enfermeira, mas também funcionária burocrática, médica ou assistente social... "A evolução do emprego feminino nos Serviços de Consumo Coletivo representa, portanto, a medida, se não a única a mais importante da integração da mulher na atividade produtiva social com todas suas conseqüências econômicas e sociais".

Terminando aqui a citação, queremos frisar o reflexo desses tempos novos na procura da enfermagem como profissão. Justamente em 1968, pela primeira vez houve maior procura que oferta de vagas nos cursos de Graduação de Enfermagem. Dos anos de 1970 a 1972 e daí em diante, tanto tais matrículas quanto as dos cursos técnicos têm tido incremento de procura feminina.

Encontrei, quanto a candidatos ao curso de Graduação em Enfermagem, em pesquisa realizada, as seguintes porcentagens. A pesquisa foi para o Brasil no período de 10 anos, tomado cem com número do ano incial, 1965. É o seguinte o aumento em percentuais: Em 1968 houve 184% de candidatos; em 1970, 284%; em 1972, 565%; e, em 1974, 1.245% (**** **** Quanto a vagas e matriculados após o exame vestibular, no mesmo período, tomado o valor 100 para o ano inicial, 1965, achei o seguinte aumento: ).

Quando grande número de candidatos apresentam-se para o vestibular dos cursos de enfermagem, é provável a entrada de pessoas bem dotadas dos atributos necesssários às profissões voltadas para os Serviços de Consumo Coletivo. É portanto, de esperar que estas pessoas prossigam o avanço previsto para a profissão de enfermagem.

A terceira consideração geral é a que diz respeito aos avanços da ciência e tecnologia, incluídos o planejamento e a administração públicos. O ano de 1975 trouxe-nos a entrada em ação do Departamento de Assuntos Universitários do Ministério da Educação e Cultura para encaminhar à resolução o problema da escassez de enfermeiros. Obteve em março desse ano de 1977 de peritos de nomeada o Diagnóstico dos Cursos de Enfermagem; a seguir, atraiu a cooperação da Escola de Enfermagem Ana Néri para a implementação de projetos calcados naquele Diagnóstico. As Universidades do País estão passando por reformas para que sua produção se ajuste às necessidades de profissionais, pesquisa e liderança social.

Os grandes Hospitais Universitários têm que funcionar sobre princípios de administração, se não o fizerem, os atritos e desajustes serão insuportáveis aos seres humanos envolvidos. Florence Nightingale teve mais lutas neste particular, do que com a profissão de enfermeira, propriamente, porém sua vida teve o efeito de facilitar o progresso dos hospitais por mais de meio século depois de sua contribuição. Nos dias de hoje, com o trabalho de uns interdependentes da atividade de outros, é ainda maior a necessidade de grandes homens e grandes mulheres para implantação de serviços úteis às sociedades do futuro.

Novamente, recorrendo a filósofos e místicos, prevemos dificuldades crescentes e esfacelamentos de velhas estruturas para o surgimento das instituições renovadas, voltadas para a paz e a justiça que beneficiem o maior número.

O NOVO PAPEL DA ENFERMEIRA NAS AMÉRICAS

No contexto das idéias acima referidas, de maior harmonia ou justiça do que a atual na distribuição dos serviços de consumo coletivo é que se insere o novo papel da enfermeira.

A professora Maria de Lourdes Verderese, Consultora em Enfermagem da CPAS/OMS, descreve as condições atuais:

  1. "A profissão de enfermagem ocupa um lugar firme e destacado na sociedade, conta com grande tradição e história respeitável. Mas isto tudo carece de importância para as pessoas que nunca viram uma enfermeira, um médico, um dentista, um auxiliar sanitário ou qualquer outro representante do sistema moderno de atenção da saúde. Nos países em desenvolvimento das Américas, o número de pessoas que não recebe atenção ascende a milhões. Isto se deve a muitos motivos: Talvez não haja suficiente pessoal de saúde para atendê-los, ou talvez não tenham com que pagar os serviços. A escassez de ditos serviços pode ser o resultado da ineficiência e baixa produtividade. Ou quiçá haja uma grande diferença cultural entre os serviços oferecidos e as necessidades da população.

  2. A mais alta prioridade da Organização Panamericana da Saúde e Organização Mundial de Saúde é colaborar com os países com o fim de mudar a situação antes descrita. Para lograr o objetivo de proporcionar serviços de saúde para todos antes que finalize este século, será preciso reavaliar por completo nossos sistemas de atenção da saúde dentro do contexto sócio-econômico geral.

  3. A mudança tem que se iniciar na própria comunidade. A população já não pode permanecer como mero "paciente" atendido pelo sistema de saúde; deve antes trabalhar ativamente para melhorar suas próprias condições de saúde. A comunidade deve planificar e por em prática um sistema de assistência primária de saúde, que consiste na aplicação de métodos simples mas eficazes aos quais a população tenha fácil acesso".

  4. Para que a comunidade desempenhe esta nova função, deve-se contar com novo tipo de profissional de saúde. Em vez de dar assistência esporádica, na ocorrência da doença, este pessoal deve trabalhar para melhorar as condições de saúde a longo prazo, e constituir-se vínculo entre a comunidade e o sistema nacional de saúde. Mas, no presente, nenhum grupo de profissionais está capacitado para desempenhar esta função. Os médicos, por exemplo, são escassos, concentram-se nas cidades e seus serviços são dispendiosos. Necessita-se, então, de divisar-se uma nova categoria de especialistas em saúde.

  5. As enfermeiras representam um grupo numeroso de profissionais de saúde que, contando com formação e orientação diferentes, poderiam contribuir para vincular a comunidade ao sistema nacional de saúde.

  6. As futuras enfermeiras provavelmente serão generalistas, encarregadas de prestar assistência primária contínua a indivíduos, grupos ou a toda população. Seus objetivos serão a prevenção de enfermidades, a promoção e manutenção da saúde. Encarregar-se-ão de resolver os problemas de saúde comunitária e outros de sua competência e encaminharão pessoas que precisam de assistência especializada a outros profissionais.

  7. Ademais, a nova enfermeira estimulará a comunidade para que se ajude a si mesma. Freqüentemente será o primeiro contato da população com o sistema de saúde.

  8. A enfermeira, em sua nova função, realizará também atividades vinculadas tradicionalmente com o exercício da medicina. Estará preparada para fazer-se responsável por suas ações e para tomar decisões só ou com outras pessoas na avaliação da assistência à saúde, na formulação de planos e programas preventivos, etc.

  9. Alguns países da América Latina como Panamá, Colômbia e Chile, e igualmente os Estados Unidos e Canadá estão capacitando enfermeiras para desempenhar tais funções". (5VERDERESE, Maria de Lourdes — A Nova Enfermeira. In Salud Revista da OPAS, Vol. 9, n.º 3, 1977, p. 17 e segs.)

A articulista prossegue, indicando o como fazer, para que esta assistência primária de saúde, a cargo da enfermeira, seja posta em prática. Afirma que há necessidade de ampla e inteligente divulgação centrada nas necessidades sociais. E que a nova prática terá de ser decidida em reuniões por resolução de médicos e enfermeiras, além de outros interessados.

CONDIÇÕES NO PAÍS PARA O NOVO PAPEL DA ENFERMEIRA

O assunto "assistência primária" é atual. Está sendo abordado de vários ângulos porque é novo e multiforme. A razão pela qual vô-lo trouxe é por ter me parecido dos mais sérios que temos de enfrentar nestes próximos anos.

Citemos alguns aspectos para a colocação do problema. Não há dúvida de que qualquer grupo profissional pode deixar de perceber com clareza o papel de outra profissão, porque não tem sua própria experiência disto. No caso de pessoas do sexo masculino frente a uma do sexo feminino, encontra-se outro "bias" paralelo. Com duas óticas com viés, a institucionalização dos papéis corretos da enfermeira, nutricionista, assistente social e talvez psicóloga não vai ser fácil.

Com franqueza, nosso grupo profissional de enfermagem tem algumas dificuldades que teremos de vencer. Os cursos de Graduação e Mestrado são relativamente novos no Brasil. Algumas enfermeiras, boas profissionais talvez não se sintam bem seguras no mundo universitário, na utilização dos princípios científicos no enunciado de uma hipótese para a confirmar ou negar. O conhecimento de outras línguas, para acompanhar-se o avanço da prática de especialidades de enfermagem em outros países, é exercício que tem de ser feito. Entretanto, em geral a enfermeira trabalha em jornada longa, de 8 horas, ou talvez tenha outros papéis no lar, restando-lhe pouco tempo para estudo.

Aquelas enfermeiras e enfermeiros, que tanto tem feito de modo que a prática profissional tenha avançado até o nível de hoje tendo meu louvor, que neste momento creio ser toda a Congregação desta histórica escola Ana Néri. Citemos para esta homenagem, Ethel Parsons, Bertha Pullen, Edith Fraenkel, Laís Netto dos Reys, Izaura Barbosa Lima, Waleska Paixão, Marina Resende, Glete de Alcântara e Maria Rosa Sousa Pinheiro; elas estão continuando a influenciar a prática profissional pelos seus feitos e por suas contiuadoras, a nova geração agora com maior número de expoentes, Wanda Horta, Cecília Pêcego Coelho, Teresa de Jesus Sena, Vilma de Carvalho, Lygia Paim, Cilei Chaves Rhodus, o grupo das enfermeiras professoras titulares e adjuntas atuais do país, das que dirigem divisões e serviços de enfermagem nos hospitais complexos, dos que desempenham cargos de âmbito nacional, e dos que têm publicado pesquisas significativas e dos que têm prestado assistência de enfermagem, capacitados por estudo e por amor ao sujeito de sua assistência.

Parece-me que, a esta altura, nós brasileiros, temos de utilizar muitos recursos para a formação de consensos nacionais. Por exemplo, o universo de comunicação na enfermagem: necessitamos utilizar os mesmos termos para nos compreendermos. Consulta de enfermagem e prescrição de enfermagem, sendo os termos melhores para as ações respectivas, merecem utilização em todos os serviços de saúde do país. Um dos modos de obter os consensos aqui referidos é produzirem-se relatórios de especialistas, a exemplo da Organização Mundial de Saúde. "Expert opinion" ou seja a opinião de especialista é o que se quer obter.

Quatro tipos de órgãos, desde já, podem necessitar obter tais relatórios de especialistas: O Departamento de Assuntos Universitários do Ministério da Educação e Cultura, a Associação Brasileira de Enfermagem e órgãos do Ministério da Saúde e da Previdência Social. Os modelos profissionais de Assistência Primária na Saúde poderiam desse modo receber o estudo de grupos de trabalho de especialistas multiprofissionais, reunidos.

Tendo em mãos um relatório de especialistas, a ABEn o faria submeter, nos Congressos, aos enfermeiros do mesmo campo de prática, de todo o Brasil, para darem parecer, e a seguir o faria ser votado em sessão plenária.

Há outro aspecto que nos parece importante para a formação de consensos profissionais. Desejo me referir à necessidade da educação continuada. Faz falta aos profissionais de saúde. Nós, enfermeiros, temos que dar um tratamento mais racional a este aspecto do que o temos feito. É um grande desperdício deixar que enfermeiros, preparados em cursos universitários longos, se esqueçam, por desuso, de uma grande soma do aprendido. O ingresso, após a opção, em um dos campos profissionais, para o encontro em reuniões científicas desse campo parece-nos uma abordagem melhor do que a adotada até o presente. Neste caso, os enfermeiros de cada campo de especialização de determinada área programática aí mesmo se reuniriam para estudo. Não seria impossível, conseguir dos Conselhos Regionais de Enfermagem que passassem a exigir comprovante dessa educação continuada para ser mantida a inscrição do profissional. A recomendação de envolver os Conselhos é originária da Associação Norte-Americana de Saúde Pública (APHA), para todos os profissionais de saúde.

CONTRIBUIÇÃO CIENTÍFICA AO CORPO DE CONHECIMENTO DA ENFERMAGEM

A enfermagem tem possibilidades amplas de pesquisa. É digno de nota alunos dos cursos de Mestrado hesitarem sobre o que pesquisam. Talvez fosse posível fazer-se um quadro bastante amplo das áreas de pesquisa biológica (inclusive física) e social (inclusive da filosofia e demais ciências do homem) em que se pode pesquisar em assuntos do âmbito da enfermagem.

Muitas áreas do conhecimento no Brasil passam, no presente, por fase análoga à da enfermagem no que diz respeito ao seguinte: Cada país desenvolve sua cultura, e nenhuma cultura é transplantada e segue igual à da área de onde saíram seus traços originários. Nós não somos o mesmo Portugal, novo, nem Portugal é a mesma Roma, nova. As artes, por exemplo, no Brasil estão buscando penetrar no substrato mítico cie suas origens. Nós, profissão feminina e que lida com o ser humano, temos a riqueza da cultura brasileira: misto milenar de Ariadne, na Grécia antiga, que sabia viver com objetivos seus; de Cornélia, a ensinar democracia aos Grachos, seus filhos; de Moema, nas águas da Baía de Todos os Santos ,a fazer o sacrifício de vida pelo amado (mito, talvez, de uma cultura jovem unindo-se à civilização européia); a mulher forte, do Brasil rural, ensinando idéias européias em seus engenhos, de que nos fala Guilherme Freyre; e mais recentemente, das admiráveis mulheres que têm ajudado a fazer o que é hoje esta parte do mundo. Nossas ancestrais, mulheres fortes e de vida admirável têm em nós suas continuadoras.

A enfermagem é profissão que se insere nos Serviços de Consumo Coletivo. Lida com pessoas. Qual o sentido e o destino do homem? Pela teologia, vemos que Deus se revela, pela seu poder e sua divindade porque quer patentear seu desígnio de amor pelo homem e indicar-lhe seu próprio destino. Uma vez que se coloca o ponto de partida da ética (enriquecida de suas disciplinas paralelas, teologia e filosofia) na visão global do ser humano, nenhuma ciência susceptível de contribuir para conhecimento mais profundo do homem deve ser excluída. A enfermagem pode aprender da escola fenomenológica de Edmund Husserl, na filosofia de Teillard de Chardin sobre o esfacelamento de velhas estruturas para surgir o tempo novo de distribuição de justiça na humanidade, no qual se insere, possivelmente, o novo papel da enfermeira. Podemos aprender com Sir Karl Popper, de seu enunciado de que o alvo da ciência é a verossimilitude mais do que a procura da verdade (4POPPER, Karl Raimund — Conhecimento Objetivo: Uma Abordagem Evolucionária; tradução de Milton Amado. São Paulo. Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.). Junto com psicólogos e psiquiatras nossas pesquisas serão facilitadas, uma vez que eles também estão buscando saber que é o homem e qual o seu destino.

No campo das ciências genéticas, com Darwin e os geneticistas de hoje, mas também com a teologia, pode-se compreender a alma como um somatório genético que tem, no entanto, sensibilidade para ser dirigida pelo amor de Deus; daí se explica a evolução, como um acontecimento dirigido.

Nos campos da ética, fisiologia e psicologia podemos compreender o seguinte: a falta de interesse e do exercício provenientes do trabalho e a falta da luz solar podem romper o equilíbrio dos condicionamentos do adulto normal, contribuindo para diminuir sua saúde mental e suas funções fisiológicas.

O CORPO DE CONHECIMENTO DA ENFERMAGEM

Sabemos que os conhecimentos existem. Resta saber se eles estão interligados, ou em um sistema de interação, de modo que façam um corpo de conhecimentos de significado mais para a enfermagem do que para qualquer outra profissão ou outro ramo do saber. Isto é, haverá homogeneidade entre eles, de modo que possam ser classificados numa categoria lógica?

Não se pode negar à enfermagem os foros de ciência, porque ciência trata do real, susceptível de ser observado. Quanto à arte do executar a arte, é inseparável das ciências, nas profissões voltadas para serviços de consumo coletivo. Sobre ciência e arte, para fazer a distinção, o físico francês Ampére observa em seu "Ensaio sobre a Filosofia das Ciências" que nas ciências o homem apenas conhece e nas artes conhece e executa. Por exemplo estou entrevistando uma aluna, chorosa sobre sua culpa. Com a psicologia, a teologia e a ética profissional (ciências), identifico os elementos deste caso. Decido nada dizer, por enquanto, sobre o confessado e dizer algo que a encoraje a prosseguir para uma vida nova. Este silêncio sobre um lado e o falar sobre outro lado é arte.

No campo da estética, por exemplo, pesquisa de como suprir a falta da fruição de beleza e de oportunidade para criatividade no trabalho poderia servir de experimentação para determinar índices de cura de depressão mental e efetiva.

Terá havido, por enfermeiros, estudos teóricos, não interesseiros, que tenham trazido melhora sobre o conhecimento de fatos? E por sua vez terá havido ação de enfermeiros que tenha trazido melhora para a vida do homem no mundo? Parece que a profissão de físico se enquadra na primeira destas interrogações; a nossa e a profissão dos educadores inserem-se na última. Mas nada impede, ao contrário tudo leva a constatar interações, constantes e em muitos aspectos, entre ciência pura e ciência aplicada e arte.

Devemos, mais do que temos feito, ensinar ciências do comportamento e arte de exercer a nossos alunos, porque poderão ocupar seu tempo, nas enfermarias, aprendendo a conhecer o homem, a mulher e a criança com quem conversam: conhecer para exercerem boa enfermagem e crescerem eles mesmos como pessoas.

Por último, tratarei com muito pouca contribuição a dar, sobre quais os sistemas de classificação na enfermagem.

Não devemos ficar paralisados, em nosso trabalho de criar um corpo de conhecimentos da enfermagem. Nos exemplos esparsos dados acima, ficou patente a amplitude do campo das profissões de saúde, uma vez que lidam com a saúde do homem.

Falta-nos, para completar, algumas referências a um dos sistemas de classificação, mais somático do que psico-social, porém útil.

Muitas profissões, em seus primeiros estágios, realizam pragmaticamente seus trabalhos e mais tarde conseguem esquemas teóricos que lhes facilitarão o conhecimento científico dos fatos com que lidam. Mesmo inadequadas, certas classificações são postas em uso, até que sejam melhoradas ou substituídas. Na botânica, ouço que a classificação binária, de Linneu, que é utilizada universalmente, tem inadequação, porque freqüentemente em caracteres morfológicos em vez de bioquímicos ou fisiológicos, sendo que estes últimos poderiam facilitar melhor o grupamento ecológico. A Sociologia (Teoria Social) partiu também de estudos por assim dizer, de morfologia, como a Antropologia Física, progredindo para os estudos exploratórios de compreensão dos processos sociais (Sociologia), em busca dos significados humanas. Por exemplo, por que os sistemas de parentesco são universais? A resposta está no significado: conhece-se o papel do pai, mãe e irmãos para que a afetividade da criança se desenvolva; os demais parentes próximos e os padrinhos ampliam a capacidade de amor da criança.

A parte somática constitui o primeiro esquema de classificação na enfermagem e até hoje deve ser utilizada porque corresponde a uma ordem de realidades — os aspectos nos tecidos. Refiro-me à enfermagem médica, cirúrgica, neurológica, etc. No caso de um cardiopata a prescrição de enfermagem leva em consideração o que deve ser feito para um doente de coração e vasos circulatórios, com suas complicações orgânicas. Outra ordem de realidade levaria em conta, por assim dizer, os significados. Em outras palavras: a doença e a pessoa que está lidando com a vida que inclui a doença. Não resta dúvida que há interação não só de muitos fatores como das duas realidades entre si. A sinergia seria observável para detectar certas interações.

Com análises e sínteses, já teríamos encontrado o meio de classificar em grupos, com critério metodológico, os sujeitos da assistência de enfermagem? A assistência será de profissional (enfermeiro) e prestada a clientes em instituições de saúde, domicílios, escolas e empresas de trabalho. Quais seriam as categorias maiores em que vamos enquadrar os conjuntos de ações de enfermagem? Categorias maiores e conjuntos de ações seriam dois tipos de teorização. As categorias maiores nas instituições de saúde existem e nós as utilizamos. Enfermagem médica, cirúrgica, etc. e suas subdivisões, são categorias maiores. São um esquema científico para abranger casos individuais.

Esta classificação tem os inconvenientes a que já se referiu, por serem acentuadamente somática. É um tanto baseada no evidente à primeira vista. Tanto um paciente de enfermagem médica quanto um de enfermagem psiquiátrica podem ter mais causas e resultados nosológicos em comum entre si do que divergentes, tornando-se incongruente a utilização desta categoria; seu precalço: não leva muito em consideração os significados.

O grupo profissional identificado com a enfermagem faz parte do multi-grupo da saúde. Quanto a sofrermos vieses de porventura outros do multi-grupo que julgam saber mais do que nós, enfermeiros, como dar a assistência de enfermagem, cabe aqui um raciocínio como exemplo. É possível conseguir casos isolados que afirmem a assertiva. Não é de esperar que se consiga afirmar cientificamente tal alegação. Ademais, não são outros e sim os enfermeiros que cultivam esse ramo, a ponto de darem de suas horas de trabalho — e também retiradas do repouso e dos outros interesses — para que exista todo o "complexo institucional da enfermagem", formado por: exercício pessoal, serviços de enfermagem, cursos de graduação e pós-graduação, conselhos federal e regionais, sindicatos, associações (nacional, estaduais e distritais), seus congressos, livros e periódicos; por seu poder político e democrático de representação e por sua legislação dinamicamente ajustada às realidades sociais.

Pela profissão de enfermagem põe-se em prática algo para fim determinado com infinitas combinações de princípios das várias ciências, com técnica, sob orientação ética. Não há como dar primazia ao conhecimento científico sobre sua utilização. A arte tem como ponto de partida uma aplicação refletida (inclusive ética) e econômica de normas científicas.

Quanto a procurar nossos esquemas teóricos em categorias maiores,façamos grupo com os demais profissionais de saúde, uma vez que nossos problemas de categorias teóricas são em grande parte deles também. A medicina do futuro deverá ser mais dirigida à pessoa — homem, mulher, criança — como indivíduo, biologicamente constituído mas que tem intercâmbio de energia da mente e do espírito até hoje não desvendadas. O próprio prefixo bio é de uma riqueza de significado inesgotável, já que a vida está interligada a todos os demais componentes mencionados.

Agora faz-se aqui um referência à outra tentativa de teorizar, a que denominei conjunto de ações. De novo, está ficando cada vez mais evidente que o conjunto é multi-profissional. Apenas por recurso didático, neste momento, proponho a vosso pensamento "os conjuntos de ações de enfermagem". De mais de uma perspectiva se pode teorizar. Novamente, os objetivos principais da área em que se passam as ações de enfermagem dão motivo à sua ubicação. Serão localizados em duas categorias: instituições para a saúde individual e para a saúde coletiva. Pode-se mesmo combinar ambos, como no caso de grupos dinâmicos para aprenderem (e ensinarem) práticas de saúde (grupos de mães, etc). Outras categorias teóricas já estão estabelecidas. Tome-se como útil o esquema constante da conferência da Dra. Lygia Paim (3PAIM, Lygia — Plano Assistêncial e Prescrição de Enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem — Distrito Federal — 29:66-83 — 1976.), quanto a domínios (1. psicobiológico, 2. psicossocial e 3. psicoespiritual); propósitos, e, neste ponto, citou Brodt e Horta (I. preservar o equilíbrio; II. prevenir o desequilíbrio, etc.); e dependência (T. dependência total; A — dependência de ajuda, etc).

A essa altura convém referir que as ciências biológicas e as ciências sociais e do comportamento é que são os elementos principais para a construção de nossas profissões de saúde. A medicina, como grupo de profissionais, procura aumentar a proporção desses últimos componentes curriculares que abrangem filosofia, teologia e ciências do homem.

O prontuário orientado para problemas é uma das tentativas de levar em consideração o homem, e de tentar responder suas necessidades por meio de nosso trabalho de profissão, e esta baseada nas ciências todas já referidas.

O grupo profissional identificado com a enfermagem faz parte do multi-grupo da saúde.

Não estamos sós: todas as profissões de saúde enfrentam hoje o desafio de atingir classificações que levam em conta o homem, sua vida terrestre e seu destino eterno.

Em 1975, ao dar início à comemoração do seu 75.º aniversário, o Conselho Internacional de Enfermeiros fez o seguinte pronunciamento: "Nós, enfermeiros de todas as nações, sinceramente acreditamos que o melhor aspecto de nossa profissão é o avanço através da unidade de pensamento, da simpatia e do propósito de tornarmos nós mesmos uma confederação de pessoas para um eficiente cuidado do paciente. Este avanço é uma garantia de honra e de interesse pela profissão".

Tal é a importância do momento que estamos vivendo: se soubermos agora tratar dos consensos da enfermagem na sociedade brasileira poderemos realizar os desígnios do novo papel novo. Chegou o tempo de estudo acurado dos grandes campos profissionais. As especialistas em enfermagem psiquiátrica, pediátrica e dos demais campos, e também a generalista, que irá responder o apelo dos que não mais ficarão marginalizados do sistema de saúde na América Latina; seremos nós todos, homens e mulheres como enfermeiros que iremos nos reunir aos demais das profissões e ocupações de saúde para responder às necessidades de saúde de nossa pátria que está depositando em nós seus novos anseios.

BIBLIOGRAFIA

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    LIMA, Izaura B. et alii. — Aspectos da Situação da Enfermagem no Brasil. Ministério da Educação e Saúde. Rio de Janeiro, 1950.

  • 2

    MADEIRA, F. R. e Singer, P. I. — Estrutura do Emprego e Trabalho Feminino no Brasil — 1920-1970. Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), São Paulo, Brasiliense, 1975. 45 p.

  • 3

    PAIM, Lygia — Plano Assistêncial e Prescrição de Enfermagem. Revista Brasileira de Enfermagem — Distrito Federal — 29:66-83 — 1976.

  • 4

    POPPER, Karl Raimund — Conhecimento Objetivo: Uma Abordagem Evolucionária; tradução de Milton Amado. São Paulo. Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.

  • 5

    VERDERESE, Maria de Lourdes — A Nova Enfermeira. In Salud Revista da OPAS, Vol. 9, n.º 3, 1977, p. 17 e segs.

Quando a enfermagem foi institucionalizada?

O ensino da enfermagem, no Brasil, foi institucionalizado em 1923, com a criação da Escola de Enfermagem Ana Nery e, no estado da Bahia, apenas em 1946 é que se deu a criação da então Escola de Enfermagem da Universidade da Bahia (EEUB), através do Decreto Lei 8.779 de 22 de janeiro de 1946.

Qual a importância das ações de Florence Nightingale para a construção e consolidação da enfermagem moderna?

Florence foi pioneira no tratamento dos feridos durante a Guerra da Crimeia. Ao longo de sua atuação no manejo dos feridos, ela identificou que a falta de higiene e as doenças infectocontagiosas eram “carro chefe” na involução do tratamento dos soldados, sendo o motivo dos altos índices de óbitos.

Como era realizado o processo de enfermagem para Florence Nightingale?

A Enfermagem, para Nightingale, era uma arte que requeria treinamento organizado, prático e científico; a enfermeira deveria ser uma pessoa capacitada a servir à medicina, à cirurgia e à higiene e não a servir aos profissionais dessas áreas.

Como Florence Nightingale influenciou na enfermagem atual?

Para mudar essa realidade, Florence implementou no hospital de batalha princípios de gestão ambiental, arejando o ambiente, removendo os leitos de locais contaminados para locais limpos, higienizou os doentes, fez uso de boa dieta, retirou os focos de infecção e acalentou os soldados em suas visitas noturnas com uma ...