Quais são os cuidados de enfermagem ao paciente dependente químico?

Pesquisa

Cuidados requeridos por usuários de crack internados em uma instituição hospitalar

Care required for users of internal crack in an institution hospital

Dime Everton Feijó MagalhãesI; Mara Regina Santos da SilvaII

IAcadêmico de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande/FURG
IIEnfermeira. Docente da Escola de Enfermagem da FURG. Doutora em Enfermagem

Endereço para correspondência

Mara Regina Santos da Silva
Rua Frederico Carlos de Andrade, 750
Cassino-Rio Grande/RS. CEP: 96208-050
E-mail:

Data de submissão: 31/7/2009
Data de aprovação: 2/8/2010

Resumo

Estudo centrado no problema da dependência ao crack, cujo objetivo é conhecer as práticas de cuidado que, segundo o ponto de vista das pessoas dependentes, são importantes para sua recuperação. Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo e exploratório, desenvolvido com sete usuários de crack, em regime de internação em um hospital psiquiátrico da região sul do Estado do Rio Grande do Sul. Para a coleta de dados, foi utilizada a entrevista semiestruturada, realizada em janeiro de 2008, na própria instituição, enquanto os participantes estavam internados. Os resultados apontam como necessidades prioritárias, no processo de recuperação, a existência de uma relação mais humana com os profissionais de saúde, o apoio da família e o aproveitamento produtivo do tempo livre durante a internação. Apontam, também, algumas razões que determinam a busca de ajuda profissional e as expectativas em relação à internação hospitalar.

Palavras-chave: Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Cocaína; Crack; Cuidados de Enfermagem

INTRODUÇÃO

Nenhuma droga, atualmente, tem chamado tanta a atenção como o crack, dada sua crescente e indiscriminada disseminação entre a população Somente na instituição hospitalar em que este estudo foi desenvolvido, dos 18 leitos disponibilizados para tratamento de dependentes químicos, observou-se que, em um único dia, 12 deles estavam ocupados por pacientes com histórico de envolvimento com crack. Essa observação restringe-se a uma única unidade de internação que presta assistência aos usuários do sexo masculino. Se considerarmos as demais unidades existentes na instituição, incluindo a ala feminina e o setor de convênios, o número de dependentes de crack de ambos os sexos aumenta, embora o percentual possa baixar, já que nessas unidades também internam portadores de outros diagnósticos, como esquizofrenia, transtorno bipolar e depressão.

Dentre as razões que explicam o "sucesso" dessa droga entre os usuários, pode-se destacar seu baixo custo, o que a torna acessível a todas as classes sociais. Uma pedra pequena de crack custa, em média, 5 reais na região onde os dados foram coletados, enquanto 0,5 g de cocaína, quantidade suficiente para proporcionar sensação semelhante, custa em torno de 10 reais. Entretanto, mesmo tendo um preço relativamente baixo, ele se torna alto, em médio prazo, dada a quantidade de droga necessária para suprir as carências dos usuários em relação à droga.

Outros fatores que podem explicar a popularização do crack incluem: sua potência até seis vezes maior do que a cocaína; a rapidez com que surgem os primeiros efeitos estimulantes, em geral, de 10 a 15 segundos; e a rapidez com que se instala a dependência. Além desses, é preciso considerar que o crack representa uma fonte de renda produtiva para os traficantes e para os fornecedores, uma vez que após os primeiros contatos com a droga torna-se difícil para o usuário evitá-la, o que assegura a manutenção do "cliente".1

As complicações decorrentes do uso do crack comprometem diversas dimensões da vida dos usuários e das pessoas que com eles convivem. Do ponto de vista orgânico, atinge funções vitais - por exemplo, a função pulmonar, com redução da capacidade de expiração; o sistema cardiovascular, com reações hipertensivas e taquicardia, podendo chegar à parada cardíaca por fibrilação ventricular; o sistema neurológico, com a probabilidade de convulsões e acidente vascular cerebral hemorrágico; e outras complicações associadas às comorbidades psiquiátricas, como síndrome do pânico e depressão severa,2,3 dentre outras.

A repercussão da droga transcende os malefícios de ordem individual e orgânica e afeta, também, o contexto familiar, de forma que a pessoa dependente do crack não se torna a única vítima da droga. Dado o caráter incontrolável do consumo, essa pessoa passa a gastar o dinheiro não apenas dela, mas também aquele destinado ao sustento da família, uma vez que vende suas roupas, eletrodomésticos, aparelhos eletrônicos, o carro... enfim, pode chegar a vender a própria casa para conseguir dinheiro para obter o crack.

Do ponto de vista social, a vida da pessoa dependente de crack tende a ruir de forma muito mais rápida do que geralmente acontece com qualquer outra droga. Nos primeiros contatos com o crack, o usuário goza de uma inigualável sensação de prazer, fantasiando um mundo sem limites e sem problemas. Sua rede social amplia-se, surgem novos parceiros e aumenta sua popularidade entre os colegas. Em pouco tempo, porém, a situação inverte-se, surgindo uma sensação de vazio, angústia e desespero, acompanhada do aumento do consumo da droga para tentar superar esses sentimentos e continuar usufruindo o prazer que obtinha inicialmente.

Contribui para agravar a situação social da dependência ao crack o fato de esse problema acontecer entre pessoas de qualquer idade, sexo, ou etnia, o que justifica a preocupação dos profissionais da saúde e da população em geral, já que o consumo dessa droga está comumente associado à criminalidade. Furtos e assaltos são comuns entre os usuários, dada a necessidade de uma fonte de renda para conseguir o crack.

O impacto devastador que esse conjunto de complicações tem sobre a vida das pessoas contribui, pelo menos em parte, para evidenciar a necessidade de instituir medidas que possam interromper a trajetória que leva à dependência. Diferentemente do que ocorre com a maioria das pessoas que se envolvem com outras drogas em que os familiares procuram ajuda profissional, no caso do crack são geralmente os próprios usuários que buscam ajuda nos serviços de saúde.

As opções de tratamento existentes na região onde este estudo foi realizado incluem clínicas de reabilitação, instituições hospitalares, Centros de Atenção Psicossocial (CAPSs) e serviços comunitários. Esse conjunto constitui uma rede de serviços que atua em diferentes níveis de atenção e, teoricamente, estaria em condições de enfrentar os problemas relacionados à dependência química. Entretanto, trata-se de uma rede que não está conseguindo resultados satisfatórios, em termos de prevenção e reabilitação, visto que o número de usuários cresce a cada dia de maneira assustadora.

Embora haja grupos específicos de profissionais atuando para auxiliar os usuários do crack a se desvincularem da droga, um aspecto que contribui de forma negativa para que as ações realizadas não respondam satisfatoriamente é o desconhecimento de muitos trabalhadores da área da saúde mental sobre as formas efetivas de enfrentamento desse grave problema. Em geral, esses trabalhadores têm conhecimento dos efeitos do crack sobre o organismo, suas consequências familiares e sociais, no entanto poucos conhecem o tipo de ajuda de que essas pessoas necessitam para conseguir interromper o processo de dependência e ajudar os usuários a reconstruir a vida sem a droga. Da mesma forma, não está claro o papel das instituições hospitalares nesse tipo de dependência. Não se sabe até que ponto os hospitais podem realmente responder às necessidades das diferentes etapas do processo de recuperação, ou se as intervenções realizadas nesse tipo de instituição são efetivas apenas no período de desintoxicação.

Com base nessas considerações, o objetivo com este estudo é conhecer as práticas de cuidado que, segundo o ponto de vista das pessoas dependentes de crack, são importantes no processo de reaprender a viver sem a droga; ou seja: a) conhecer as necessidades prioritárias envolvidas nesse processo de reaprendizagem; b) identificar as razões que determinam a busca de atendimento em um serviço especializado; c) conhecer as expectativas do dependente de crack quanto às práticas de cuidado dos profissionais no momento em que procura um serviço de saúde, particularmente os cuidados de enfermagem;

METODOLOGIA

Este é um estudo qualitativo, descritivo e exploratório, desenvolvido com um grupo de sete usuários de crack internados em uma instituição hospitalar especializada em tratamento psiquiátrico.Todos são do sexo masculino, brancos, com idade entre 18 e 33 anos; seis são solteiros e um é casado; três têm o ensino médio incompleto; dois, o ensino fundamental incompleto; e dois são analfabetos. A renda familiar desses participantes variou entre R$ 500,00 e 2.000,00 e o tempo de uso do crack oscilou entre oito meses e oito anos. Para preservar-lhes o anonimato e a identidade, eles são identificados neste estudo pelos seguintes nomes fictícios: João, José, Marcos, Carlos, Antônio, Roberto e Pedro.

Foram considerados como critérios para a inclusão no estudo: ser portador de diagnóstico médico de transtorno relacionado a substâncias, de acordo com o DSM-IV-TR,4 especificamente aqueles relacionados ao consumo de crack; estar na condição de internação voluntária (nomenclatura utilizada pela instituição para caracterizar as situações em que o usuário chega ao hospital por iniciativa própria); estar internado há, pelo menos, quinze dias, para assegurar a familiarização com a instituição; concordar em participar da pesquisa (mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido). Foram excluídos do estudo usuários de crack portadores de patologias como transtorno bipolar, esquizofrenia, ou quaisquer outras condições que pudessem interferir nos resultados da pesquisa ou no tratamento do paciente.

O local escolhido para recrutar os participantes deste estudo foi um hospital especializado em atendimento psiquiátrico, de caráter filantrópico, localizado no extremo sul do Brasil. Esse hospital possui cem leitos, distribuídos em quatro unidades: setor de convênios (com pacientes de ambos os sexos e portadores de diversos diagnósticos); setor de dependência química (onde se encontravam os participantes deste estudo, somente com pacientes do sexo masculino, portadores de transtorno relacionado a substâncias); setor destinado a outros diagnósticos como esquizofrenia e transtorno do humor, também apenas para clientes do sexo masculino; e o setor feminino, que recebe pacientes portadoras de diversos diagnósticos. Dentre as opções de tratamento para dependentes de crack existentes na região, esse local foi escolhido por ser considerado referência em dependência química, recebendo clientes de diversas localidades do Rio Grande do Sul.

Para a coleta de dados foi utilizada a entrevista semiestruturada, realizada individualmente com os usuários no período de janeiro de 2008. Inicialmente, o foco da entrevista estava voltado para a obtenção de informações gerais que permitissem caracterizar os participantes (sexo, idade, renda familiar, estado civil, dentre outros). Em seguida, foram investigados os motivos que levaram os participantes a procurar um serviço de saúde especializado, suas expectativas em termos de tratamento, no momento da internação, e o tipo de cuidado que buscavam.

O projeto recebeu uma certificação ética tendo sido registrado sob o nº 037/2007. Todas as recomendações da Resolução nº 196/96 que regem a pesquisa com seres humanos foram respeitados ao longo do desenvolvimento deste estudo. Estão sendo divulgadas somente as informações dos participantes que estiveram de acordo com tal procedimento.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Necessidades prioritárias segundo as pessoas dependentes de crack

Os resultados deste estudo mostram que, apesar do impacto devastador que o consumo de crack produz na vida das pessoas e da característica aparentemente "incontrolável"de sua dependência, os usuários são capazes de identificar com certa facilidade suas necessidades e os cuidados profissionais que julgam relevantes para sua recuperação, mesmo que estes não sejam realizados na instituição onde se encontram internados.

Os sete entrevistados identificaram como necessidade prioritária no processo de recuperação a existência de uma relação mais humana com os profissionais que permitisse a livre expressão de seus sentimentos e emoções, por meio da qual pudessem receber afeto, cortesia, atenção e respeito como seres humanos. Quatro sujeitos referiram não ter encontrado na instituição esse tipo de relação com a equipe profissional. Entretanto, três entrevistados relataram que alguns técnicos de enfermagem ajudaram no sentido de conversar, dar conselhos. (José, Carlos, Pedro)

Os entrevistados enfatizam a relevância da atenção dos profissionais da saúde para com seus problemas, do ato de conversar, ouvir e discutir, como refere Pedro:

Precisava ter mais gente que conversasse conosco, que pegasse um por um e perguntasse como estás te sentindo e que dessem atenção e mostrassem caminhos diferentes.

Da mesma forma, outro participante ressalta essa importância quando diz:

É bom desabafar com alguém, eu sinto falta disso aqui. (Carlos)

Essas manifestações mostram que as pessoas que participaram deste estudo não recebem os cuidados mais essenciais que se espera de um serviço de saúde, ou seja, o ato de dar atenção. No entanto, todos os profissionais, de qualquer campo de atuação, são alertados, em algum momento de sua formação, quanto à necessidade e a importância de prestar um tipo de assistência que inclua cuidados como ouvir, conhecer as angústias dos pacientes, seus anseios, principalmente em um serviço de saúde mental que requer um ambiente terapêutico aberto à expressão e ao diálogo.

Roberto diz:

Quem me ajuda aqui [no hospital] não é médico nem psicólogo, é o rapaz da cozinha. Ele conversa comigo sobre Deus, família, essas coisas.

Considerando que as práticas de cuidado são da responsabilidade de todos os profissionais que participam do tratamento do usuário, é preocupante a constatação de que o paciente encontra somente no copeiro o cuidado que considera indispensável para sua recuperação, embora este trabalhador não tenha recebido formalmente os conhecimentos específicos sobre saúde mental. Isso em uma instituição de saúde que conta com profissionais técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, os quais compõem a equipe que, teoricamente, deveria estar preparada e é considerada indispensável para o tratamento de um problema como a dependência química.

A literatura da área de enfermagem em saúde mental refere que o relacionamento significativo é função primordial na assistência de enfermagem, pois é por meio dele que o enfermeiro acolhe o paciente e tem a oportunidade de conhecer suas necessidades, seus sentimentos e pensamentos, seus propósitos. Com base nesse conhecimento que adquire, o enfermeiro pode, com mais propriedade, ajudar o paciente a desenvolver a capacidade de gerenciar seus problemas, satisfazer suas próprias necessidades e integrar-se ao processo de recuperação de sua saúde.5 As falas dos sujeitos entrevistados neste estudo evidenciam que são práticas de cuidados básicos que estão sendo requeridas, ou seja, ações que certamente integram o tipo de relacionamento significativo referido e que possibilitaria aos sujeitos deste estudo criar um "espaço" de trocas com os profissionais, traçar metas e desenvolver estratégias para alcançá-las. Enfim, são cuidados elementares, mas valiosos em um tipo de assistência que visa ajudar os dependentes de crack a reconstruir uma trajetória de vida sem a droga.

Outra necessidade apontada por quatro participantes desta pesquisa foi o apoio da família como algo que ameniza o isolamento na instituição. A frequência de visita dos familiares foi referida como determinante para o processo de adaptação à instituição e ao confinamento a que são submetidos durante o período em que estão internados. Roberto afirma:

Minha mãe é tudo para mim, ainda bem que ela sempre vem nas visitas, faz o tempo aqui dentro passar mais rápido e tudo parecer mais fácil.

Os participantes moradores de regiões mais distantes, que não recebem visitas de familiares com frequência, demonstram uma maior fragilidade nesse aspecto. Antonio relata:

Tinha que haver um jeito de distrair quem não recebe visita. Eu sou de fora, sinto uma saudade imensa da minha mãe e nos dias de visita entro em depressão porque vejo todos saindo para receber seus parentes e eu fico sozinho no pavilhão.

Dos quatro sujeitos que identificaram o contato com a família como necessidade prioritária na recuperação, três eram procedentes de outras regiões.

A relação com a família nas situações de dependência química, geralmente, é conflituosa, dentre outras razões, pelo comportamento de irritabilidade dentro de casa, pelos constantes furtos de objetos e de dinheiro dos familiares e pelo envolvimento com a polícia. Apesar disso, a família continua sendo o grande referencial de segurança para o usuário de crack, prevalecendo os vínculos afetivos. Quando obrigados a se distanciarem dos familiares, como geralmente acontece em uma situação de internação hospitalar, essas pessoas perdem um dos poucos referenciais positivos que lhes restaram, surgindo, assim, mais um obstáculo para o processo de sua recuperação. Esse fator é consideravelmente agravado quando se trata de pessoas que residem em regiões afastadas da instituição escolhida para o tratamento, tornando-se esporádica ou até mesmo inviável a realização de visitas. José reclama:

Eu sinto muita falta da minha família e, às vezes, fico muito triste. Minha mãe não vem me ver porque é muito longe e tem que tomar conta da guria, daí fica ruim pra mim.

A importância da família como contexto de recuperação é um consenso entre autores e profissionais que tratam da dependência química. Entretanto, desde que o crack passou a ter prioridade na vida de um de seus membros, a família acumula uma gama de problemas que inclui, além do comprometimento das condições físicas e emocionais, o estigma social que promove sua segregação social, desgastando as relações internamente e fragilizando seus vínculos tanto interna quanto externamente. Assim, é importante que os profissionais tenham clareza de que, para ser capaz de constituir-se em um apoio no tratamento do dependente de crack, a família também precisa ser cuidada para que possa modificar a condição de vulnerabilidade em que geralmente se encontra, em decorrência da dependência de um de seus membros.

Como ponto de partida, é preciso considerar que grande parte das famílias sente-se culpada e envergonhada pela situação que enfrenta, pelo fato demorar muito tempo para admitir o problema que está vivenciando e procurar ajuda externa.6 Apesar disso, a participação dos familiares no tratamento da pessoa dependente é um fator relevante que merece investimento, seja mediante atendimento individual, especialmente com aqueles mais diretamente envolvidos no problema, seja por meio de intervenções no âmbito da comunidade visando promover a integração social da família. Principalmente o encontro de famílias que compartilham da mesma problemática pode ser produtivo, uma vez que se cria um espaço de intercâmbio de experiências, sustentado na solidariedade e ajuda mútua, e no qual as famílias compartilham suas angústias e as informações fundamentais para a melhor compreensão da condição de dependência química.

Ainda, outra necessidade prioritária apontada por três participantes foi a ocupação produtiva do tempo dentro da instituição, com atividades que possam ajudá-los a desviar a atenção, mesmo que temporariamente, da droga e da realidade em que estão inseridos. João diz que esperava um pouco mais de praxiterapia aqui [no hospital]. Eu sei o que é uma pessoa enlouquecer por não ter o que fazer.

É notória a relação entre o excesso de tempo livre, gerado pelo desemprego, pelo êxodo escolar e pelo histórico de dependência química, a qual é evidenciada quando João refere que a falta de distração era um dos motivos que me levava, lá fora, a usar a droga. Portanto, a ocupação produtiva do tempo ocioso dentro da instituição hospitalar deve ser uma preocupação dos profissionais, pois, embora a pessoa esteja isolada do seu ambiente externo, o pensamento ocupado persistentemente com a droga representa um obstáculo no processo de aprender a viver sem o crack. Além disso, a inércia dentro de uma unidade psiquiátrica é um fator que contribui negativamente para a autoestima e a autoimagem da pessoa, as quais geralmente já estão comprometidas quando se trata de portadores de dependência química. Marcos diz que teria que ter uma terapia com atividades como desenhos, para eu botar pra fora o que eu sinto de ruim.

Manter o tempo ocupado com atividades produtivas e prazerosas que possam substituir a droga e reforçar a decisão pessoal de não reincidir no seu consumo foi ressaltado, também, por adolescentes que participaram de outro estudo desenvolvido em 2002, no Rio Grande do Sul,7 no qual se considera que as atividades são produtivas quando fazem parte de uma proposta de redirecionamento de uma trajetória de vida. Assim, o conjunto de atividades planejadas para pacientes internados em uma instituição psiquiátrica precisa, dentre outras coisas, ter o compromisso de articular o sujeito e seu contexto; promover o encontro entre necessidades e recursos em relação ao momento que estão vivendo; criar condições de bem-estar e autonomia; oportunizar o encontro e o diálogo entre os companheiros, respeitando as diversidades.8 As atividades são, portanto, uma oportunidade de convivência, de aquisição de novos conhecimentos, novas linguagens e um tempo para repensar os projetos de vida.8

No caso deste estudo, a inexistência de uma rotina de atividades na instituição onde os dados foram coletados produz nas pessoas que estão internadas um sentimento desanimador de inércia e tédio, que por sua vez intensifica o desejo de consumir o crack em busca de sensações prazerosas.

Somando as queixas referidas, em que os pacientes reivindicam uma relação mais humana com os profissionais, pode-se deduzir que nessa instituição, no período de abrangência deste estudo, tanto a comunicação verbal quanto a não verbal, representada pelas atividades requeridas, constituem fragilidades importantes no serviço.

Razões que determinam a busca de atendimento profissional

O ser humano vivencia no universo dinâmico em que está inserido estados de desequilíbrio gerados de necessidades insatisfeitas.9 Na intenção de recuperar uma condição mais satisfatória, a pessoa busca a satisfação dessas necessidades, mas nem sempre seus recursos pessoais e familiares são suficientes para supri-las9. Então, é a partir desse ponto que se faz necessária a intervenção de pessoas habilitadas. Quando se trata de dependência química, essa busca por auxílio pode não ser uma iniciativa voluntária da própria pessoa, embora essa seja a forma mais efetiva, já que nessas condições o indivíduo torna-se mais cooperativo no seu processo de recuperação.

Neste estudo, evidencia-se que há um considerável distanciamento entre a forma espontânea de procurar um serviço de saúde especializado e a forma passiva de fazê-lo, ou seja, a concordância em aderir a um tratamento, seja por uma decisão da família, seja por qualquer outra razão que não a vontade própria.

A concordância passiva com a internação, verificada neste estudo, foi determinada por necessidades familiares e/ou sociais, como meio de escapar de um ambiente conflituoso e muitas vezes hostil. A pessoa dependente de crack aceita aderir ao tratamento como forma de aliviar essa tensão entre os familiares e os amigos. Com isso, encontra-se internada na instituição uma pessoa que decidiu estar lá, mas sem interesse real na sua recuperação, ou seja, que precisa dessa internação por outras razões.

O desinteresse do paciente pela própria recuperação, em geral, é percebido pela equipe profissional, que acaba absorvendo essa indiferença e, gradativamente, é tomada pelo desânimo e pela desesperança quanto ao prognóstico do paciente. Dentre os sete entrevistados, somente três procuraram atendimento na instituição por vontade própria, em busca de auxílio para voltarem a viver sem a droga. Pedro diz:

Não quero mais essa vida pra mim, sempre fui uma pessoa boa, não quero viver preso nessa droga pra sempre.

Os demais respondentes buscaram a instituição por se sentirem pressionados e, sem outra opção, cederam à insistência de terceiros. Nesses casos, deixaram evidente que não tinham o desejo de abdicar do crack.

As razões que determinaram a concordância passiva com a internação foram diferentes para cada um dos outros quatro sujeitos. João procurou ajuda na instituição por falta de opção. Dependente do crack, já não tinha dinheiro para morar sozinho com a namorada, nem poderia morar com seus pais, pois não tinha coragem de procurá-los depois de decepcioná-los por tantas vezes:

Decidi internar porque o crack só atrasa a minha vida, estou destruindo tudo que eu tenho, não tenho mais nada dentro de casa e meu pai, nem sei se vai voltar a falar comigo. (João)

No caso de José, a iniciativa de buscar ajuda não partiu dele, mas de sua mãe. José apenas concordou em se internar, já que se não o fizesse perderia, além da confiança da mãe, sua liberdade, permanecendo sob supervisão contínua dentro da própria casa:

Minha mãe me trouxe pra cá porque não podia mais me deixar sozinho em casa, quando eu ficava, fumava tudo. Me sentia muito mal com isso, um cara velho que precisa de babá. (José)

Roberto buscou ajuda profissional no hospital porque queria a guarda definitiva da filha e, de acordo com a legislação, ele só poderia obtê-la quando conseguisse provar que não era mais dependente de crack. Já Carlos, sem esperança de recuperação, procurou ajuda na instituição por causa de problemas clínicos causados pelo consumo excessivo do crack. Relata que para ele é uma oportunidade de permanecer um período, mesmo que apenas o de internação, sem consumir a droga:

Eu sei que vou ser um viciado pra sempre, vou ser um dependente para o resto da minha vida, só procurei ajuda porque não conseguia mais dormir. Eu deitava a cabeça no travesseiro e não conseguia dormir pelo arrependimento. O corpo cansa depois de três ou quatro dias sem dormir, só usando, daí eu caía em cansaço e começava a pensar um monte de bobagens. (Carlos)

O sucesso de qualquer tratamento depende da motivação para a mudança e da existência de um contexto de apoio.10 A motivação para a mudança envolve a conjunção entre consciência do problema e desejo de mudar. Sem atender a essa condição, não é possível iniciar um projeto de mudança. As condições contextuais de apoio incluem a família, o acompanhamento apropriado, grupos e redes de amigos, dentre outros. No processo de recuperação espera-se que a pessoa modifique suas escolhas, mas o desafio maior é substituir a rotina centrada na droga por novos hábitos, novos objetivos, restabelecer o convívio familiar, aprender a administrar as situações de risco para recaídas, ou seja, reaprender a viver sem o crack.7

Um aspecto importante que deve ser levado em conta é que as pessoas que chegam para tratamento em virtude de pressões familiares ou por iniciativa de outras instâncias podem ser motivados e aderir ao projeto de redefinir sua trajetória de vida, mas para isso é preciso inserir planos e ações concretas que possam sustentar a abstinência, e estes precisam ser definidos com o usuário de crack e sua família. Planos assistenciais elaborados unicamente do ponto de vista dos profissionais têm grandes possibilidades de não contemplarem as necessidades dos sujeitos a que se destinam e caminhar para o insucesso.

Expectativas dos dependentes de crack em relação às práticas de cuidado

Dos sete entrevistados, quatro declararam que não tinham maiores expectativas quanto ao período em que estariam internados na instituição. Esses quatro pacientes foram os mesmos que referiram em seus relatos ter procurado a instituição por outras razões que não o desejo de livrar-se da dependência. Dois afirmaram que não tinham qualquer expectativa e os outros dois declararam ter as mínimas possíveis, incluindo um curto período de internação e pouca medicação. Carlos diz:

Só não queria ter que ficar chapado de remédios, caindo pelos corredores com tantos comprimidos. Já José afirma: Acho que daqui mais um dia ou dois já estou indo, vou fechar dez dias aqui e já me sinto legal.

Os outros três participantes manifestaram que a expectativa era retomar a vida sem o crack, independentemente da maneira como os cuidados fossem desenvolvidos pelos profissionais. Pedro relata que

não estava preocupado em como iriam me tratar aqui dentro, eu só esperava que saísse curado, sem risco de recaída.

Existe forte relação entre a expectativa quanto à maneira como seriam cuidados durante a internação e a razão pela qual o sujeito procura o serviço de saúde. Ao buscar ajuda de forma espontânea, a pessoa, inevitavelmente, cria expectativas positivas para o período em que permanecerá internada, pois está acreditando que pode livrar-se da dependência e retomar sua vida sem o crack. Por outro lado, aqueles que se internam de forma passiva, em geral, não demonstram grandes anseios, pois o desejo real é de não estarem na instituição, portanto, não planejam seu futuro sem o crack.

A preocupação com a motivação dos pacientes para modificarem seu estilo de vida deve estar presente na organização de qualquer serviço que atende pessoas dependentes químicas, já que esta é determinante para a adesão ao tratamento.10 Especialmente quando o uso da droga está associado às características de vida dos usuários, como é o caso dos sujeitos que participaram deste estudo, é fundamental um tipo de cuidado que leve em conta os valores que orientam a vida do sujeito, pois estes definem os desejos e as escolhas que as pessoas fazem. É preciso, pois, um tipo de cuidado que possa reorientar o desejo no sentido de viver sem a droga.

O processo de recuperação da dependência de uma droga como o crack envolve duas etapas importantes: a abstinência e a manutenção desta. A primeira mobiliza aspectos importantes da dimensão individual da pessoa, ou seja, seu próprio corpo, suas emoções, o enfrentamento com as perdas que acumulou e as responsabilidades negligenciadas. Já a segunda requer profunda revisão do estilo de vida, das condições ambientais, assim como o resgate de vínculos, a reconstrução de relações, a recuperação do trabalho e a ressignificação do cotidiano sem a droga. Assim, para muitas pessoas que se tornaram dependentes do crack, viver sem a droga torna-se algo distante e idealizado, pois já fizeram inúmeras tentativas e conhecem bem as dificuldades e o sofrimento que enfrentam por não conseguirem, além de muitos perderem a esperança e a motivação.11

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desafio de trabalhar com pessoas dependentes de crack tendo por objetivo ajudá-las a recriar uma existência sem droga, conforme orienta a Política de Álcool e Drogas do Ministério da Saúde,12 inclui a definição de estratégias, tendo como parâmetro as necessidades e expectativas de cada paciente. Para tanto, é imprescindível o estabelecimento de vínculo entre os usuários e os profissionais e a transformação dos serviços em locais de acolhimento e enfrentamento das situações individuais daqueles que buscam ajuda. Uma questão importante destacada nos resultados deste estudo é a ausência dos elementos essenciais dos cuidados profissionais ao ser humano que se encontra internado na instituição, justamente o vínculo e o acolhimento.

Os relatos dos sujeitos revelam a carência de atenção, afeto, empatia, comunicação, segurança familiar e o sentimento de ser produtivo. Essa lacuna criada pela ausência desses elementos importantes dos cuidados de enfermagem compromete a autoestima e a autorrealização dessas pessoas, com grande repercussão no processo que estão vivenciando. Revelam, também, que, com exceção das necessidades mais elementares, como alimentação, sono e repouso, as demais demonstram comprometimento. Dessa forma, constata-se que existe uma longa distância entre a realidade do sujeito usuário de crack internado, suas necessidades e anseios e a forma como os profissionais cuidam, possivelmente privilegiando aspectos medicamentosos e disciplinares dentro da instituição.

Os resultados deste estudo apontam fragilidades no processo de recuperação dos pacientes internados por dependência de crack, desde os cuidados mais elementares. No entanto, é preciso destacar que tais aspectos, sozinhos, não garantiriam a resolução desse problema, embora sejam vitais para o ser humano que se encontra sob os cuidados de enfermeiros, médicos, assistentes sociais e psicólogos. Deve-se compreender que a "epidemia"do crack tornou-se um problema muito sério na população, em decorrência da velocidade com que se instala e da sua repercussão no mundo atual, por isso requer uma atenção especial e cuidados complexos, muito além das questões abordadas neste estudo.

Cabe, no entanto, questionar por que, diante de uma situação tão devastadora como a dependência ao crack, as necessidades expressas por essas pessoas mantêmse em níveis de aparente simplicidade - por exemplo, de serem ouvidos. É importante salientar que durante a realização das entrevistas houve a preocupação em deixar os sujeitos com o máximo de liberdade para que pudessem se expressar sem restrições, e assim mesmo nenhum dos sete entrevistados ultrapassou esse nível.

Enfim, os resultados deste estudo mostram que, seja qual for o papel desempenhado por uma instituição hospitalar no tratamento da dependência química, se restrito a desintoxicação ou mais do que isso, essa instituição tem a responsabilidade de acolher o sujeito, protegê-lo e assisti-lo, independentemente de curálo ou não curá-lo.11 Com relação aos profissionais, os resultados evidenciam a necessidade de resgatar os saberes essenciais para uma prática que cuida fundamentada no princípio da sincronicidade com as necessidades dos pacientes, considerando que muitos podem, por vezes, não conseguir assumir a decisão de viver sem o crack, mas, mesmo assim, essas pessoas têm o direito ao cuidado profissional e de ter minimizados os riscos decorrentes do uso da droga.

Para finalizar, considerando que o conhecimento é construído de forma cumulativa e progressiva, acreditamos que os elementos apontados neste trabalho podem contribuir para estudos futuros, servindo como base para sua continuidade.

REFERÊNCIAS

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3. Ferri CP, Laranjeira RR, Silveira DX, Dunn J, Formigoni MLOS. Aumento da procura de tratamento por usuários de crack em dois ambulatórios na cidade de são Paulo, nos anos de 1990 a 1993. Rev Assoc Méd Bras. 1997 jan./fev; 43(1)25-8.

4. Manual de diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais -DSM-IV-TR. Porto Alegre: Artmed; 2002.

5. Stefanelli MC, Fukuda IMK, Arantes EC. Comunicação em enfermagem. In: Stefanelli MC, Fukuda IMK, Arantes EC, organizadores. Enfermagem psiquiátrica em suas dimensões assistenciais. São Paulo: Manole; 2008.

6. Silva MRS. A construção de uma trajetória resiliente durante as primeiras etapas do desenvolvimento da criança: o papel da sensibilidade materna e do suporte social [tese]. Florianópolis (SC): Programa de pós-graduação em Enfermagem/UFSC; 2003.

7. Rigotto SD, Gomes WB. Contextos de abstinência e de recaída na recuperação da dependência química. Psicol Teor Pesqui. 2002 jan./abr; 18(1):95-106.

8. Carlo MMRP, Celina CB. Terapia ocupacional no Brasil: fundamentos e perspectivas. 2ª ed. São Paulo: Plexus; 2001.

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12. Brasil. Ministério da Saúde. Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Brasília: Ministério da Saúde; 2004.

Qual o papel da enfermagem no tratamento da dependência química?

Os enfermeiros atuam no manejo das crises psíquicas e nas crises de abstinência, avaliando o estado mental dos pacientes e a administração de medicamentos. Além disso, são responsáveis pelo planejamento e pelo estabelecimento das ações de cuidado.

Quais os cuidados de enfermagem com drogas?

Cuidados importantes -fazer controle dos visitantes, a fim de evitar que tragam drogas ou outras substâncias; -impedir que os pacientes tenham acesso à sala de medicação; -sempre ter atenção a aspectos de higiene e alimentação.

Quais os principais cuidados de enfermagem com paciente?

Quais são os principais cuidados de enfermagem?.
Monitorar sinais vitais é o básico em cuidados de enfermagem. ... .
Aplicar medicamentos é feito nos cuidados de enfermagem. ... .
Promover a segurança do paciente. ... .
Prevenir complicações de doenças. ... .
Realizar procedimentos básicos são cuidados de enfermagem. ... .
Prevenção de lesões por pressão..

Qual o papel do profissional de enfermagem?

O trabalho dos enfermeiros é feito pela proteção, prevenção, reabilitação e recuperação da saúde, contando com um sentido mais amplo além dos cuidados com a saúde. Estudando doenças, a vida após a morte e a saúde em sua plenitude, o enfermeiro é capaz de desenvolver métodos para restabelecer sua saúde.