Qual era a população brasileira entre 1872 quando foi feito o primeiro recenseamento oficial?

Introdução

No dia 14 de janeiro de 1871, pelo decreto n. 4676, em cumprimento à lei 1.829, foi instalada a Diretoria Geral de Estatística (DGE), o primeiro órgão destinado a coordenar os serviços estatísticos do Império. Suas funções eram muito amplas: dirigir os trabalhos do censo, organizar os quadros anuais de nascimentos, casamentos e óbitos e formular os planos de cada ramo da estatística do Império (IBGE, 1951, p. 1). A par de tais funções, a maior razão de ser da DGE seria a realização do primeiro levantamento nacional da população, previsto para o ano seguinte.

O censo de 1872 constituiu-se na grande obra estatística do Império. É visto, ainda hoje, como um empreendimento de sucesso, especialmente se levarmos em conta as condições de sua realização. O primeiro censo moderno do Brasil orientou-se por preocupações então inéditas, como uma legislação específica, dotação orçamentária própria, data de referência para todo o território nacional – ainda que o desenvolvimento dos trabalhos tenha criado problemas para sua plena satisfação – e definição das áreas geográficas mínimas de coleta das informações demográficas[2] (paróquias). Apesar dos percalços, os resultados deste censo são considerados superiores aos de 1890 e 1900, fazendo-o figurar como o principal levantamento demográfico do século XIX.

A realização do censo refletia a influência do internacionalismo estatístico nos planos de desenvolvimento aspirados pelas iniciativas estatais. O modelo de uma agência central de estatística era uma recomendação que remontava às resoluções dos primeiros Congressos Internacionais de Estatística[3], ainda que a DGE viesse a conhecer vida curta no Império e não tenha logrado justificar sua dispendiosa existência após concluir a apuração dos resultados do censo, publicados em 1876. De toda maneira, o modelo estava posto e suscitava pressões internas pela sua implementação, finalmente bem-sucedida.

Não por outra razão, Francisco Adolfo de Varnhagen, o visconde de Porto Seguro, o celebrado autor de História do Brasil, foi enviado como delegado oficial do governo brasileiro ao Congresso Internacional de Estatística de São Petersburgo, realizado em 1872. Mesmo não havendo tempo hábil para incorporar suas observações pessoais aos questionários do censo e ao tratamento das informações coligidas, a representação no prestigioso certame seria prova da atenção que o país dedicava a um dos temas mais importantes e discutidos do mundo civilizado. Na verdade, delineava-se uma estratégia, pois o país já havia se tornado visível nesse palco, ao enviar como emissário o Barão de Penedo, encarregado de observar as sessões do CIE de Londres, realizado em 1860, obrigando-o a encaminhar suas resoluções, bem como os pontos consensuais e polêmicos aventados[4].

Nas páginas que seguem, abordaremos o primeiro censo geral do Brasil como um experimento híbrido, premido entre a modernidade e a tradição. De um lado, temos as convenções internacionais emanadas dos Congressos, com sua concepção burocrática da estatística e sua visão liberal sobre a população, segundo a qual a personalidade comum e as equivalências entre os grupos humanos são mais significativas do que suas diferenças. De outro lado, a visão atomística de uma sociedade formada por agregados de indivíduos, característica da estatística liberal, esbarraria na estrutura hierárquica do Brasil imperial. Concordamos com Theodore Porter, para quem

não há muito sentido em contar pessoas se sua personalidade comum não é vista como algo mais significativo que as suas diferenças. O Antigo Regime não visualizava pessoas autônomas, mas membros de estados e ordens, que não possuíam direitos individuais, e sim um labirinto de privilégios, historicamente dados, identificados com a natureza e herdados por nascimento. O mundo social era demasiadamente diferenciado para que um censo pudesse dizer muito sobre o que realmente importava. […] uma expansão no escopo da investigação quantitativa dependeria de uma transformação profunda na concepção de seu objeto (Porter, 1986, p. 25-26).

Para formações sociais tradicionais, comparar dessemelhantes afastados por estatutos de origem e nascimento é algo não só indesejável, como impensável, talvez até mesmo uma heresia ou um crime de impiedade. Pobres e ricos, senhores e escravos, nobres e plebeus, homens e mulheres tiveram muito mais a separá-los, por natureza e função, do que a agregá-los. Isto porque a equivalência que sustenta uma tal agregação depende de um trabalho de representação da realidade e da construção da autoridade política. Depende, portanto, das relações entre Estado e sociedade, que definem o que pode ou não ser contado, para qual fim, e com base em que meios políticos e cognitivos. Como afirmou Bruce Curtis (2002, p. 529), existe um elo bastante estreito entre as formas pelas quais as coisas são conhecidas – como a quantificação – e o trabalho empreendido para torná-las conhecidas – como a pacificação, a vigilância e o controle social.

Por tal razão, devemos levar em conta as dinâmicas internas da sociedade imperial, com seu olhar profundamente hierarquizado sobre uma população recortada com base na sua condição de nascimento, e caracterizada pela dependência do Estado em relação às iniciativas particulares da aristocracia rural e da elite política. Tentaremos mostrar como o censo de 1872 pode ser um acontecimento privilegiado para a compreensão das ambiguidades que cercam as décadas finais do Império, especialmente aquelas relacionadas ao problema da confiança nos números públicos e da discricionariedade reservada aos recenseadores, cujo olhar ainda não se encontrava disciplinado por protocolos observacionais.

A tradição estatística do Império: esforço de síntese

Para dimensionar o alcance das inovações trazidas pela realização do censo geral de 1872, a primeira contagem exaustiva do Brasil, e analisá-lo como elemento de transição entre diferentes registros sobre a população, devemos situá-lo em meio à tradição de listas nominativas e contagens indiretas, que dominavam a prática estatística do Brasil desde os tempos coloniais[5].

Como já realçaram diferentes cientistas políticos (Nicolau, 2012) e demógrafos historiadores (Botelho, 1998), o Império brasileiro destacou-se por uma farta produção de estatísticas eleitorais, já em seus primeiros anos de existência. A organização do processo eleitoral se fez à base do controle eclesiástico da organização administrativa e da sua ascendência sobre a vida local. Este fato tornava os párocos os vetores de todas as iniciativas de registro e contagem, inclusive, e sobretudo, para fins eleitorais. Os eleitores eram definidos pelo número de fogos (ou domicílios), determinando a importância política de cada povoação. Decreto de 1824 consagrava que uma paróquia teria tantos eleitores “quantas vezes contiver o número de cem fogos na sua população; não chegando a duzentos, mas passando de cento e cinquenta, dará dois; passando de duzentos e cinquenta, dará três, e assim progressivamente” (Lyra, 1979, p. 6). Era o fogo a unidade básica da contagem.

Ao pároco atribuía-se autoridade essencial, compondo a mesa eleitoral, ao lado do presidente da Câmara e dos vereadores. Segundo o referido decreto, cabia a ele “a fixação de editais nas portas das Igrejas, por onde conste o número de fogos” e a “responsabilidade pela sua exatidão”, sem que houvesse uma listagem de domicílios ou que algo fosse dito sobre como conhecer este número (Senra, 2006, p. 87). Dado que os eleitores de uma povoação eram determinados, em última instância, pelo relato dos párocos, não surpreende que, até 1872, o número de habitantes do país figurasse apenas em estimativas, realizadas por indivíduos notáveis da classe política e letrada. Seu testemunho retirava sua autoridade da familiaridade, da reputação e da participação na vida local. Quer dizer que se situava no polo oposto ao do olhar relativizado e disciplinado por protocolos observacionais, característicos da exaustividade censitária.

Além do alistamento eleitoral, o outro uso fundamental da estatística se encontrava na definição dos limites territoriais. Documentação analisada por Júlio Cesar Paixão Santos revela que o termo “estatística” era frequentemente empregado nas questões de definição de limites entre províncias, cidades e vilas. Havia uma “comissão estatística” semipermanente nas assembleias legislativas provinciais, com o objetivo de emitir pareceres resolutivos sobre a questão dos conflitos de limites entre municipalidades da jurisdição. O mesmo se reproduzia na escala nacional. Comissões de estatística eram frequentemente formadas no Senado e na Câmara dos Deputados[6], encarregadas de receber reclamações de moradores e autoridades públicas quanto à definição de limites, fronteiras, criação e pertencimento de freguesias ou vilas, elevações de status de localidades, criação de leis sobre colonização e aumento da deputação (Santos, 2018, p. 83-85).

Com relação às estatísticas de população, que nos interessam mais de perto, o mais próximo que se chegou a este respeito foram as estimativas elaboradas ao longo do Império. Um rápido olhar sobre elas aponta para uma total descontinuidade de método e que sua pretensão à verdade não passava pela comparação entre duas diferentes cifras, não havendo nada que se assemelhasse à perspectiva de uma série histórica.

Tabela 1.

Estimativas sobre a população do Império, em diversos períodos.

Ano População Autor
1776 1.900.000 Abade Correa da Serra
1808 4.000.000 D. Rodrigo de Souza Coutinho
1810 4.000.000 Alexandre de Humboldt
1815 2.860.525 Conselheiro Velloso de Oliveira
1817 3.300.000 Henry Hill
1819 4.396.132 Conselheiro Velloso de Oliveira
1825 5.000.000 Casado Giraldes
1827 3.758.000 Rugendas
1829 2.617.900 Adrianno Balbi
1830 5.340.000 Malte-Brun
1834 3.800.000 Senador José Saturnino
1851 8.000.000 Senador Candido Baptista
1856 7.677.800 Barão do Bom Retiro
1867 11.780.000 O Império na Exp. Universal de Paris
1868 11.030.000 Candido Mendes
1869 10.415.000 Senador Tomás Pompeu de Souza Brasil

Table 1. Estimates of Brazil´s population at different points in time.

Silva (1986, p. 167).

A obra de Joaquim Norberto Investigações sobre os recenseamentos da população geral do Império e de cada província de per si tentados desde os tempos coloniais até hoje, que compila todos os cálculos sobre a população tentados até 1870, com o objetivo de fornecer subsídios ao censo que então iria se praticar, é a primeira a sequenciar as estimativas e seus autores. Embora liste os empreendimentos realizados, a obra nada nos diz sobre a variedade das grandezas encontradas por iniciativas tão próximas no tempo, reservando o silêncio para tratar de uma modalidade de discurso que, como veremos, ainda tinha autoridade em sua pretensão à verdade, durante os anos que verão nascer a primeira instituição estatística oficial e realizar-se a primeira contagem exaustiva da população. É sintomático a este respeito que Joaquim Norberto posicione as estimativas no mesmo patamar da contagem censitária, igualando-as pelo nome no título (“recenseamentos da população geral do império”), sem atribuir qualquer superioridade à exatidão e à exaustividade, do ponto de vista do seu valor de verdade e da sua correspondência com a realidade.

Aos seus olhos – e não seria ousado pensar que também aos de seus contemporâneos –, não causava estranheza particular o fato de uma estimativa – como a de 1815 – encontrar algarismo bastante inferior tanto à que se realizou cinco anos antes como à que se realizaria dois anos depois, nem mesmo o fato de seu autor revisitar este mesmo número quatro anos mais tarde e dar-se com uma cifra completamente diferente de todas as anteriores, especialmente a sua. Tanto que o trabalho de Velloso de Oliveira é considerado por Joaquim Norberto e outros comentadores a fonte mais fiável sobre a população, no período anterior à Independência. O mesmo pode ser dito sobre as profundas flutuações entre as cinco estimativas realizadas de 1825 a 1834, que, em um curto intervalo de tempo, oscilam entre o dobro e a metade.

A concentração de estimativas em curtos períodos – cinco entre 1808 e 1819, novamente cinco entre 1825 e 1834 e três entre 1867 e 1869 – contrasta com períodos de longas lacunas, quando não se produziu qualquer informação sobre a população do país. Este fato reforça a ideia de que os autores das estimativas, quando sabiam da existência de outras iniciativas do gênero, não as tomavam como parâmetro nem viam necessidade de mencioná-las, e tampouco se sentiam obrigados a defender a validade de seu achado ante os demais, já então fontes de autoridade. Tudo leva a crer que a tradição das estimativas não conformou um circuito de intertextualidade e procedimentos comuns, que se inscrevem em um outro registro sobre a população: o da exaustividade censitária.

O regulamento do que seria o primeiro censo geral do país tinha o dia 15 de julho de 1852 como data de referência. Entretanto, este não chegou a ocorrer, pois o povo reagiu, armado, em repúdio aos registros, obstando a sua realização. Previa-se a transferência do poder de identificar e designar a população das paróquias católicas para as instituições civis, medida que desestabilizava o costume secular de registrar-se nas paróquias, ato que baseava o pertencimento a uma comunidade local e ditava o ritmo da vida social. O regulamento ainda instituiu a obrigatoriedade da declaração de cor, o que lhe rendeu a alcunha de “lei do cativeiro” e resultou na eclosão de revoltas, cujo significado foi estudado pela historiografia (Palácios y Olivares, 2006, p. 9-39; Mattos, 2006, p. 40-46). O regulamento de 1852 seria recuperado quase 20 anos depois, quando, em conjunto com as disposições do censo da Corte, de 1870, serviria de base para o decreto que ordenou a criação da DGE e a realização do primeiro levantamento geral do país.

O censo de 1872 como empresa litúrgica

O censo buscaria conhecer o impacto das baixas provocadas pela recém-terminada Guerra do Paraguai (1864-1870) sobre a capacidade de recrutamento do país. Além disso, visava determinar o contingente e as características da população escrava, em vista da população livre e do afluxo de imigrantes, de modo a reduzir o impacto da transição no regime de trabalho.

Procurou-se seguir os critérios consagrados pela instância internacional, o que era visto, por si só, como um atestado de civilidade e modernidade administrativa. Não se deixou, por conta disso, de ir além delas e investigar quesitos originais de relevância local – como “condição”, “cor” e “frequência escolar”[7] –, não recomendados pelas normas internacionais. Por outro lado, as peculiaridades do Estado brasileiro fizeram com que se lançasse mão de expedientes alheios às convenções e práticas internacionais, como a arregimentação não burocrática da comissão censitária e a utilização de serviços litúrgicos obtidos mediante associação com o poder privado. As características do Estado Territorial, especialmente a dependência da estrutura eclesiástica e do aparato administrativo controlado patrimonialmente pelas elites locais, fizeram-se presentes na composição das comissões censitárias e seu lugar na hierarquia de comando.

No caso dos párocos, manteve-se sua centralidade no acesso, registro e mobilização da população. Atuaram como divulgadores do censo, frequentemente como membros das comissões, especialmente nas regiões longínquas onde eram ínfimos os habitantes alfabetizados e realmente habilitados às operações previstas. Como apontou Tarcísio Botelho, o censo revelou-se uma nova ocasião, em escala e alcance inéditos, para renovar o proveito que a alta burocracia imperial retirava das paróquias situadas nas localidades afastadas dos grandes centros urbanos, onde a presença do braço secular era mais consistente. No entender deste autor, esta foi a principal razão para que o levantamento se baseasse nas paróquias, tanto como área geográfica de contagem quanto como unidade administrativa, em vez de recorrer às delegacias e subdelegacias de polícia ou, ainda, aos distritos de paz (Botelho, 1998, p. 60).

Quanto às comissões, a situação revelou-se mais complexa e imbricada. Seria formada por cinco cidadãos residentes na paróquia, conhecedores dos limites e dos habitantes delas, além de uns poucos – no máximo três – colaboradores burocráticos no plano das províncias (IBGE, 1951, p. 5). A elas caberia dividir o território da paróquia em tantas seções quantas necessárias para a execução das operações censitárias; distribuir o material aos agentes recenseadores; fiscalizar seus trabalhos; recolher as listas e cadernetas preenchidas; corrigir as possíveis falhas e lacunas; impor as multas e as punições previstas em lei. Após o término dos trabalhos, deveriam remeter ao diretor geral do censo todas as listas de famílias, boletins especiais, mapas e quadros. Este material seria acompanhado de um relatório circunstanciado das atividades desenvolvidas, além da indicação dos agentes censitários e dos particulares que houvessem se destacado no processo de realização do censo e que, por isso, se fizessem dignos do “louvor público” e de “recompensas honoríficas” (IBGE, 1951, p. 6).

Nota-se que as comissões foram formadas sem remuneração – contrariando, assim, o disposto nas convenções internacionais – e por uma maioria de (cinco) particulares reputados e conhecedores de suas localidades de origem, sobrepondo-se aos nomes provenientes da burocracia (até três), ou seja, ao braço secular do Estado. Além disso, tinham autoridade para escolher e fiscalizar os recenseadores, que, sem receber soldo a título de seu trabalho, exerciam uma função pública prestando contas a particulares, dos quais poderiam depender por laços de compadrio ou redes de clientela. Diante de tamanha discricionariedade, os integrantes da comissão ainda teriam o direito de indicar os agraciados com retribuição pecuniária e recompensas honoríficas, além de aplicar as multas e punições, uma prerrogativa do aparato policial e judicial do Estado, que aqui se tornava um cargo prebendário. Neste aspecto, a organização do censo potencializava, em escala e alcance, a natureza litúrgica dos serviços prestados gratuitamente pelas elites locais em todo o Império. Nas palavras de Fernando Uricoechea (1978, p. 75), os serviços litúrgicos são “privilégios negativos extorquidos de grupos privilegiados para a satisfação das necessidades administrativas da comunidade política”. Ao mesmo tempo, constituem um monopólio reclamado por parte dos notáveis envolvidos nesta relação. Dessa maneira, a liturgia desses homens para a administração pública seria “um complemento à atividade oficial confiada aos representantes locais do aparato burocrático, tais como magistrados e chefes de polícia”. Segundo aquele autor, teria sido justamente “o estado esquálido e rudimentar desse aparato no cenário local, e não a sua ausência, o que tornou necessárias as contribuições litúrgicas do senhoriato rural” (Uricoechea, 1978, p. 76).

Embora a formulação acima visasse a Guarda Nacional, o caráter de associação litúrgica desta instituição encontra no censo imperial um perfeito contraponto, na delegação de cargos e poderes quase plenipotenciários a particulares e notáveis, sob a forma de prebendas. Trata-se de prerrogativas e tarefas que, nos Estados Unidos e demais países de tradição estatística, já se encontravam destinados a funcionários profissionais, mesmo quando temporários (Anderson, 1988). Ao contar com a presença ativa e supostamente engajada da parcela mais esclarecida e influente de suas localidades, as comissões censitárias colocavam em evidência uma prática fundamental do Estado Territorial, mediante a qual “responsabilidades coletivas eram impostas e cumpridas como resposta aos problemas administrativos de um regime que não possui um aparelho coercitivo suficientemente extenso para implementar a responsabilidade individual dos súditos políticos, atribuindo tal poder de implementação a associações litúrgicas compulsórias” (Bendix, 1986, p. 266).

Em um tal quadro, tudo indica que a adoção da paróquia como área geográfica mínima continuava a tradição dos alistamentos eleitorais e do recrutamento para a Guarda Nacional. Esta é a tese de Tarcísio Botelho, para quem a presença do pároco na comissão censitária servia de referência segura para a população, reproduzindo o mesmo modelo de publicidade daqueles dois momentos da vida nacional, igualmente marcados por reuniões em espaços públicos e pela transformação do recolhimento das listas nominativas em um evento público. Por conseguinte, haveria uma homologia entre a operação censitária e aqueles serviços litúrgicos: os três reafirmavam o poder da elite local “através da sua escolha para realizar tão importante tarefa, da valorização do saber letrado como único capaz de dar conta de um tal empreendimento, e da hierarquização de funções, com os comissionados se sobrepondo aos agentes censitários, os quais, por sua vez, se apresentavam à população local como representantes do poder instituído” (Botelho, 1998, p. 58-59).

Cor e condição: entre a codificação e a observação não-disciplinada

Passemos agora à análise do discurso censitário, isto é, das categorias de classificação – desde a definição até a aplicação – e das imagens que sobressaíram de sua organização expositiva em quadros e tabelas. A data de referência seria o 1º de agosto de 1872. Neste dia, todos os habitantes, nacionais e estrangeiros, livres e escravos, seriam recenseados com base em boletins ou listas de família. Seriam declarados o nome, o sexo, a idade, a cor, o estado civil, a naturalidade, a nacionalidade, a residência, o grau de instrução primária, a religião, as enfermidades aparentes, o grau de parentesco ou de convivência de cada pessoa com o chefe da família e, para as crianças de 6 a 15 anos, a frequência escolar (IBGE, 1951, p. 3).

O conceito de família encontrava-se assim definido:

a pessoa livre que vive só e sobre si, em uma habitação ou parte de habitação, ou um certo número de pessoas que, em razão de relações de parentesco, de subordinação ou de simples dependência, vivem em uma habitação ou parte de habitação, sob o poder, a direção ou a proteção de um chefe, dono ou locatário da habitação e com economia comum (IBGE, 1951, p. 3).

Por um lado, o conceito refletia uma concepção tradicional e patrimonial de família, que congregava não só pessoas casadas e unidas por laços de consanguinidade, como também parentes, agregados e escravos, em uma hierarquia de dependência. Por outro lado, a acuidade da definição aponta para o novo interesse demográfico do Estado na estrutura das relações familiares.

A questão que aqui nos importa é se este conceito de “família” se estendeu à prática dos recenseadores, considerando o contexto marcado pela ascendência da autoridade privada e a consequente dispersão local dos códigos de procedimentos fixados pela DGE, desde o centro do poder político, ou seja, a Corte. Um exame sobre os três questionários preenchidos[8] que se conservaram poderá esclarecer a distância entre o que se queria ver, desde o que Bruno Latour chamou de “centros de cálculo”[9], e o que foi efetivamente capturado como objeto de interesse pelo olhar não treinado e não disciplinado do observador. Mais ainda, este mesmo exame nos permitirá demarcar o significado visado nas inscrições locais e individuais coletadas, e aquele produzido no seu tratamento, ao se transformarem em informações, por meio das formas de apresentação e tabulação dos resultados.

Comecemos pela “condição”, a categoria mais importante do levantamento. Dividindo o espaço do censo em uma tabela relativa aos “livres” seguida por outra referente aos “não livres”, a DGE priorizou este aspecto sobre todos os outros na organização e na análise dos resultados do censo. A proeminência do primeiro grupo foi acentuada pela sua primazia na exposição e pela sua maior visibilidade, decorrente da exclusividade de alguns aspectos investigados, como o estado civil e a instrução, que não importaram no caso dos escravos; a religião, contando-se todos os escravos como católicos; e a nacionalidade brasileira, classificando-se todos os cativos entre os estrangeiros, na rubrica de “africanos”, inclusive aqueles nascidos no país.

Este procedimento, segundo Mara Loveman, permitiu à DGE representar um Brasil composto de duas populações fundamentalmente diferenciadas, segregando visualmente o que se buscava saber sobre os dois grupos, a ponto de isolar sua descrição estatística em tabelas separadas, dispostas em páginas separadas (Loveman, 2009, p. 442). Mesmo as informações relativas à “cor” foram subordinadas aos dados sobre a “condição”, o que, para a autora, indica uma priorização cognitiva e pragmática desta última na produção e na interpretação do censo. De fato, a “cor”, empregada no questionário, assumiu uma posição secundária como chave de análise, porém a mudança de registro para “raça”, utilizada na tabulação dos dados, e algumas agregações que este último termo autorizou na divulgação dos resultados apontam para uma valorização da perspectiva racial ao longo dos anos 1870, que examinaremos adiante.

Primeiro ponto: a contradição entre o flagrante protagonismo da “condição” nos dados tabulados e a sua obliteração nos questionários preenchidos conhecidos. No desenho do questionário, não havia espaço reservado para o registro da condição. Só ficamos sabendo sobre ela com o auxílio da coluna “observações”, campo não estruturado, onde poderiam ser identificados quais dos membros residentes eram escravos, expediente longe de ter sido compulsório, pois não constou das instruções de preenchimento dos boletins[10]. Na amostra formada pelas três unidades familiares conhecidas, os indivíduos são classificados por nome, idade e cor, repetindo-se o padrão de listar hierarquicamente seus membros, começando pelo chefe e continuando pela sua esposa – deduzido do fato de ser uma mulher classificada como “casada” –, seus filhos e eventualmente netos, separados por idade, a contar do primogênito. Abre-se um novo grupo para distinguir os “agregados”, diferenciados pela cor, sendo a condição de “libertos” e de “escravos” citada apenas na coluna “observações”. A condição dos livres é, ao fim, subentendida por exclusão e pela ordem em que os indivíduos foram enumerados.

Embora a divisão escravo-livre tenha sido a clivagem elementar na exposição dos dados, ela ficou inteiramente fora das listas de família, ao mesmo tempo que ganhavam destaque a ordenação e a hierarquização dos indivíduos, segundo cisões e redes de compadrio que não seriam levadas em conta na apuração: “libertos”, “agregados”, “criados”, “hóspedes” foram termos recorrentes na descrição das relações entre os membros dos grupos familiares, no campo “observações”. Como apontou Diego Bissigo, em minuciosa análise sobre os boletins de família,

a coluna de “observações” abriu uma grande margem no preenchimento dos formulários entregues às famílias. Além das observações regulamentares, ela foi apropriada também para registrar laços interpessoais que não ficavam claros nas demais colunas, indicando parentesco, filiação ou o pertencimento a outro senhor. Em conjunto à coluna dos nomes e sobrenomes, foi o local utilizado para indicar a condição dos indivíduos, especialmente os escravos, visto que, nas três listas utilizadas como amostra, os livres são identificados apenas por exclusão dos escravos – no caso das famílias Galvão e Gravatá – ou pela presunção de liberdade em uma família em que ninguém foi identificado em contrário – como na casa de João Batista Paulínio (Bissigo, 2014, p. 113).

Neste aspecto, o censo continuava a tradição das listas nominativas e dos mapas estatísticos dos relatórios de presidentes de Província, em que a referência à cor e ao lugar na hierarquia familiar limitava o que se podia saber a respeito de cada indivíduo, permanecendo a associação entre a cor branca e a condição livre. Estudos de historiadores da demografia e da escravidão apontam na mesma direção. Examinando fontes paroquiais de freguesias da região de Porto Alegre, entre 1772 e 1835, Ana Scott mostrou que as atas matrimoniais somente descriminavam a cor dos não livres, reforçando que os casamentos apenas se davam entre iguais (entre forros e entre escravos). Do total de 2.869 matrimônios realizados no período, em 90% dos casos a cor dos nubentes não foi declarada, proporção que se eleva a 91,6% entre os noivos. Os restantes estavam divididos entre 5,7% de noivos declarados “pretos”, 2,2% dados como “pardos” e 0,5% identificados como “índios” (Scott, 2013, p. 117).

A associação exclusiva entre status e o que se pode saber quanto à posição na estrutura ocupacional se repete na pesquisa de Carlos Bacellar sobre as listas nominativas da Capitania (depois, Província) de São Paulo, durante o mesmo intervalo. No que diz respeito à atividade econômica dos domicílios, quase sempre a informação prestada esteve relacionada à atividade desenvolvida pelo chefe de família, sendo bastante raras as indicações de ocupação de filhos adultos, agregados e mesmo escravos, o centro de gravidade da economia colonial e imperial (Bacellar, 2008, p. 119).

Analisando as listas nominativas e os quadros estatísticos constantes dos relatórios dos presidentes de Província, Ivana Stolze Lima verificou descontinuidades importantes no ato de nomeação. Ora algumas listas tratavam apenas da população livre, como a do Rio Grande do Norte, que, em 1849, classificava a população em “brancos”, “pardos” e “pretos”, e cada uma dessas categorias em sexo, estado, civil e idade, ora omitia-se a “qualidade” “índio”, ou mesmo o contingente escravo, como no mapa sobre 14 municípios da Província da Bahia, de 1848. Para a autora, o exame da referida documentação aponta “uma intrínseca participação da cor e da condição na classificação, de forma que certas cores limitam o que pode ser inquirido sobre os grupos a que se referem” (Lima, 2003, p. 101).

Os relatórios provinciais reunidos por Joaquim Norberto de Souza e Silva reforçam esta perspectiva. Há dados sobre instrução apenas para a população livre do Rio Grande do Norte (Silva, 1986, p. 47). Sobre a mortalidade, constam somente informações relativas à população de Alagoas, mesmo assim para os anos de 1855 a 1857, período marcado por uma forte epidemia de cólera na região (Silva, 1986, p. 69-70). Várias províncias documentaram a idade apenas para os livres, não raro dividindo-os entre “menores” e “maiores”, sem nada reportarem sobre os escravos.

Voltando ao censo, não deixa de ser paradoxal a continuidade da associação entre cor e condição no nível da observação direta, tendo em vista que, na agregação dos dados, o censo foi o primeiro documento oficial a desautorizá-la, ao diluir o contingente de libertos, portanto, dos “pretos” e “pardos” que conquistaram sua liberdade, entre a população que até então era “livre” por condição de nascimento.

Este fato nos leva ao segundo ponto. Para uma visão contemporânea sobre a produção de estatísticas oficiais, afeita ao que Nelson Senra chamou de “postulado do olhar delegado”[11], é preciso controlar ao máximo as colunas abertas e semiabertas, estruturando em perguntas fechadas tudo o que se quer saber sobre as unidades pesquisadas, aumentando a precisão conceitual das categorias e destinando o espaço das “observações” ao que é estritamente visado pelo desenho do questionário, mas que este não pode captar em significado. Para esta visão da prática estatística, a variação expressiva na amostra de apenas três boletins parece indicar um grande potencial de confusão na hora de se compilar as condições e expressar as mais variadas formas de pertencimento e agregação às famílias.

O problema de tal entendimento é que, mesmo sem ser equivocado, obscurece justamente a singularidade que queremos evidenciar: a inseparabilidade entre o conhecimento ou a vivência da realidade local e o valor de verdade do registro. Em vez de limitar o olhar do recenseador, parece que o campo das observações foi pensado, ao contrário, para potencializá-lo, de modo a extrair de suas anotações justamente aquilo a que se atribuía maior relevância, como a condição dos habitantes, transformada em verdadeira chave de leitura do censo de 1872.

As instruções de preenchimento das “observações” não mencionam a condição de livre e escravo, mas indicam este espaço como pertinente para o registro da situação de dependência, se “hóspede”, “agregado”, “criado”, etc. Ora, é justamente em associação a esta hierarquia de dependência que são assinaladas as condições de “escravo” e “liberto”, revelando que elas não eram pensadas em separado do lugar ocupado na unidade doméstica, mais uma vez refletindo a sobrevivência de uma concepção patrimonial de família, em meio às inovações implementadas pelo censo. Corrobora esta hipótese o fato de tanto a “cor” quanto a “condição” serem aspectos singularmente brasileiros, frente ao internacionalismo estatístico. Nos países europeus os censos começavam a costurar a etnização a partir da língua, recomendada no Congresso de São Petersburgo; nos Estados Unidos, constituíam um laboratório para as teorias raciais que segregavam a população de cor, definindo identidades e efeitos legais a partir da linhagem de sangue.

No Brasil, ao contrário, tanto a condição quanto o esquema de cores empregados pelo censo consistiam em elementos não apenas fundamentais como tradicionais, recriando ou atualizando a hierarquia fundada na dependência, no parentesco e no compadrio, na qual a cor e a condição ganhavam ou completavam o seu sentido. Diferentemente da política de população do tipo norte-americano, que estabelecia uma linha de distinção isolável pelo sangue e pela progenitura, cor e condição misturavam-se a outros signos que construíam a posição social, como as redes familiares, o capital cultural e a riqueza. À exceção do último, parcialmente visualizável pela ordenação dos nomes e pela hierarquização da família, o campo “observações” foi pensado para capturar exatamente estes aspectos, através da indicação da relação com o chefe da casa (se “hóspede”, “criado”, “agregado”, etc.) e da frequência escolar das crianças de 6 a 15 anos. Já a “instrução” (“sabe ler?”, “sabe escrever?”) aparecia no questionário como o campo fechado imediatamente anterior à coluna das observações.

Assim, explica-se por que a condição de “libertos” e “escravos”, mesmo sem constar das instruções, tenha sido lembrada e registrada nos três questionários que formam a amostra, em associação àquelas variáveis relativas ao status, enquanto que os “livres” foram identificados por exclusão. Explica-se, ainda, desse mesmo modo, como a condição pode ser alçada à categoria central na apuração e tabulação dos resultados, momento em que os qualificativos que indicavam dependência foram desprezados e descartados.

Assim compreendidos, os quesitos “cor” e “condição” não encontravam amparo conceitual nas resoluções do internacionalismo, consistindo em uma singularidade que remontava à tradição de estimativas populacionais, alistamentos e contagens parciais que o Império havia realizado. Chegavam à modernidade censitária eivadas do tradicionalismo que justificava sua centralidade no levantamento, razão pela qual, assim nos parece, foram inseridas nele sem qualquer preocupação com a fundamentação de sua importância ou cuidado com sua definição prévia. De um lado, não havia como recorrer ao repertório internacional; de outro, sua relevância era pressuposta e convalidada pela tradição.

Os documentos oficiais são reveladores a este respeito. Os 23 volumes que compunham a publicação original do censo limitam-se aos dados brutos. Não possuem introdução ou conclusão, nem comentários ou apresentações, nem notas de rodapé, nem indicação de tipografia ou do ano de impressão. Os únicos aportes interpretativos existentes encontram-se em relatório de 1876 (publicado em 1877) – pouco conhecido do público especializado –, o primeiro e único da DGE a comentar e resumir os resultados do censo. O relatório nada afirma sobre a necessidade de se pesquisar a “cor” e a “condição”, mas é o primeiro documento a transmutar a primeira em “raça” e a diluir os libertos, identificados nos boletins de família, no conjunto da população livre, mesmo procedimento adotado nos volumes oficiais dos resultados. A racialização se estabelece pela simples associação de cada um dos grupos de cor a uma raça correspondente, tomando-se os “pardos” como “classe mestiça”, resultante “do cruzamento da raça africana com as outras”, enquanto os “indígenas” são transfigurados em “caboclos” (Brasil, 1877, p. 13-14). Como nada mais nos é dito, não fica claro se a DGE estava realmente propondo a divisão da população em três raças puras e uma mestiça, pois não se infere um retrato da população a partir destas informações.

O que se nota é um grande hibridismo em relação à racialização, por diferentes motivos, corretamente apontados por Diego Bissigo: (i) nenhum outro relatório da DGE na década de 1870 (foram seis, entre 1872 e 1878) faz uso dessa linguagem; (ii) os “indígenas”, que assim figuram na tabulação dos resultados, somente aqui serão igualados a “caboclos”, procedimento repetido na divulgação dos resultados; (iii) a imprecisão e a variação terminológica são extremas, mesclando-se a “cor preta” indicada no boletim de família à “raça africana” apresentada no relatório, sequenciado por tabelas que listam uma “raça negra”; (iv) embora o texto do relatório pareça atribuir um caráter definido às “raças”, como que se reportando às teorias do racismo científico, a variação de termos como “negro”, “preto” e “africano”, inclusive nas tabelas, demonstra uma fluidez que obscurece a distinção mais clara entre “cor” e “raça” (Bissigo, 2014, p. 153-154). Ademais, parece-nos que esta distinção ainda era bastante ambígua, talvez sequer se apresentasse como problema. A inconsistência da terminologia empregada e a ausência de uma estratégia discursiva de racialização da população e do que se poderia inferir da perspectiva racial com base nos resultados do censo apontam nessa direção. Na década que assistiu ao início da difusão de ideias racialistas, e das elaborações que elas receberiam de parte da geração de 1870, a atribuição da raça/cor mostrou-se ancorada no costume, não nos suportes teóricos e conceituais do racismo científico, de resto desconsiderados pelas convenções do internacionalismo estatístico.

Do mesmo modo, a diluição dos libertos também articula e opõe a classificação tradicional às inovações censitárias. O tratamento secundário da população escrava na disposição das tabelas e no volume dos quesitos que se referiam a ela atribuía uma clara ênfase aos livres, tanto os nacionais quanto os estrangeiros. Se, em contagens anteriores, a existência dos libertos indicava gradação, trânsito e transformação, sua supressão torna a divisão entre livres e não livres muito mais visível e vital; binária e irreconciliável. Ou se era livre, ou se era escravo, e a segunda dessas possibilidades estava em extinção. Este fato nos permite afirmar que, em que pese a introdução difusa da terminologia racialista no relatório de 1877 e na publicação oficial dos resultados, não apenas a condição teve primazia sobre a cor/raça, como a imaginação da nação não passava pela representação de uma população prioritariamente mais branca, e sim mais “livre” e menos “escrava”.

Língua, religião e profissão: uma população homogênea e hierarquizada

Se a cor e a condição construíam uma população hierarquizada, outros aspectos produziriam a homogeneidade de uma nação tutelada pela ação civilizadora do Império. A religião e a língua foram emblemáticas a este respeito. Assumindo-se que eram católicos todos os nacionais e os estrangeiros arrolados como “africanos” – contingente que reunia, indiscriminadamente, todos os escravos, além dos libertos não nascidos no Brasil –, reservou-se apenas ao imigrante, branco, presumivelmente europeu, a possibilidade de ser classificado como “acatólico”, categoria que diluía protestantes, judeus e outros credos religiosos. Assim, o referido relatório de 1877 pode apontar uma população 99,72% católica, apresentando o catolicismo como uma característica praticamente naturalizada dos brasileiros. Tal expediente só foi possível ao se desconsiderar os casamentos indígenas e as uniões conjugais dos escravos – oficialmente solteiros –, que não se conformavam aos preceitos da Igreja (Brasil, 1877, p. 14).

A língua foi o segundo aspecto determinante para a representação de uma população homogênea. No momento em que o Congresso de São Petersburgo recomendava que ela fizesse parte do inquérito censitário, por permitir captar – e produzir – as diferenças internas entre os grupos étnico-linguísticos constitutivos das comunidades nacionais, o censo de 1872 deu-lhe pouca ou nenhuma importância. Em um cenário crescentemente marcado pela utilização da língua como elemento de definição da nação, justificando anexações territoriais e transferência jurisdicional de populações entre Estados, com base em sua diversidade linguística, o censo de 1872 eliminou as variações de língua e assumiu o português como idioma falado por todos os nacionais. A identificação das tribos indígenas seria aquilo que mais se aproximaria da preocupação com a língua expressa nos Congressos Estatísticos. Sua ausência, ao contrário, apontava para a visão de que o Brasil não conhecia problemas de divisões internas, o que reforçava a convicção de uma identidade estreita entre o regime imperial e a nação brasileira (Botelho, 2005, p. 336).

No internacionalismo estatístico, tanto a língua quanto a religião serviam de base para o monitoramento das diferenças étnicas e culturais da população. No censo de 1872, fizeram-se presentes como matrizes de uma origem ibérica, que permitiram apresentar o português e o catolicismo como características naturais dos brasileiros, restituindo à população sua homogeneidade, que a hierarquia da cor e da condição ameaçava sacrificar.

A prática tradicional de reduzir o que se podia saber em relação a uma determinada condição ou grupo de cor, presente nas contagens e estimativas anteriores, parece ter extrapolado para outros indicadores sobre a população. Ao analisarmos a classificação por profissões, podemos perceber como se evidenciam as exclusões sobre o que se pode perguntar ou saber a respeito de um grupo populacional. E, novamente, como as expectativas de realidade condicionam o olhar não disciplinado do observador. Em primeiro lugar, o censo dispõe as ocupações segundo o seu prestígio, de maneira fortemente hierarquizada. Divide-as entre profissões “liberais”, a maioria dominada pela educação superior, e “manuais ou mecânicas”, estabelecendo um continuum que tem nas manufaturas e atividades comerciais a sua zona intermediária, e no trabalho agrícola, assalariado e doméstico, marcados por diferentes graus de dependência pessoal, a sua base.

A Figura 1 realça os dados de ocupação, constantes da publicação dos resultados. Recortando algumas categorias entre as profissões arroladas pelo censo, podemos visualizar mais claramente certas tendências, como a completa ausência não apenas de escravos e escravas, mas também de mulheres livres, em determinados ofícios. Este fato sugere que certas ocupações eram vistas como exclusivas da condição do gênero. Sintomática a este respeito é a categoria “parteiros”. Como profissão liberal, cujo exercício era reservado por lei aos egressos dos cursos de Medicina e seus auxiliares, a categoria é flexionada no masculino, mesmo contando-se apenas 55 homens livres contra 1.142 mulheres livres em um total de 1.197. Sua prática é negada à totalidade de escravos e escravas.

Embora o contingente de homens livres parteiros fosse relativamente baixo em relação ao de mulheres livres assim classificadas e que a flexão de gênero não desse conta de tal diversidade, há algo mais estrutural aqui: as diferenças que separavam livres e cativos na sociedade escravista, embora em erosão, mantinham-se suficientemente consistentes para importarem mais do que as possíveis equivalências entre eles. Isto se refletiu na exclusividade a priori de determinadas práticas profissionais entre os dois grupos, tornando-as incomensuráveis.

Qual era a população brasileira entre 1872 quando foi feito o primeiro recenseamento oficial?

Figura 1.
Profissões liberais, manuais e mecânicas em 1872, por sexo e condição.

Figure 1. Liberal, manual and mechanical professions in 1872 by sex and condition.

Entre os “cirurgiões”, a situação de exclusividade é ainda mais acentuada, uma vez que somente homens livres foram assim contabilizados em todo o Império. Nos dois casos, a base legal parece ter conferido o conceito para o enquadramento das categorias, deixando-se inteiramente de lado a variedade das práticas populares de cura e os tantos sangradores e barbeiros, muitos deles libertos e antigos escravos de ganho. Sabemos que estes ainda persistiam na sociedade do Segundo Reinado, a despeito da proibição legal, que destinava aos médicos o monopólio da cirurgia. Estudos como o de Tânia Pimenta mostraram como os regulamentos proibitivos da Junta Central de Higiene eram driblados por curandeiros que retiravam sua autoridade da vivência e do exercício acumulado do ofício. Para tanto, curandeiros e parteiras frequentemente se associavam a terapeutas e médicos de formação acadêmica para fazer clientela e anunciar tratamentos em anúncios de jornais (Pimenta, 2004, p. 80). Tais trabalhos mostraram como as autoridades responsáveis pela saúde pública tinham dificuldades em tornar efetivas suas determinações, indicando que não eram plenamente reconhecidas por amplos setores da sociedade, inclusive entre aqueles interessados na oficialização. Nos anos 1850 e 1860, não eram poucos os médicos que buscavam se associar com aqueles que os higienistas chamavam de “charlatães”, tirando proveito financeiro de seu prestígio latente junto às camadas médias e, sobretudo, populares (Pimenta, 2004, p. 83).

Entre as profissões liberais, somente serão contabilizados escravos (e escravas) na rubrica “artistas”, em que estão tolerados porque equiparados a artesãos. Compunham, assim, uma categoria que, na sociedade imperial, ainda não era plenamente identificada ao trabalho intelectual[12]. Já entre as profissões “manuais e mecânicas”, a ocorrência da exclusividade é menos pronunciada. Aparece mais claramente nas “costureiras”, outra categoria flexionada no feminino. Porém se revela melhor quando desagregamos os dados por províncias. No caso do município neutro, brasileiras e escravas são confinadas praticamente às mesmas funções: artesanato, costura, lavoura, serviço doméstico e “sem profissão”. É fácil se ressentir da completa ausência não apenas de escravas, mas também de mulheres livres, em indústrias como as de vestuário e calçados, entre outras. Afora estes ofícios, contam-se ainda algumas poucas mulheres livres apenas na qualidade de parteiras, proprietárias e professoras, rubricas relativas às profissões liberais (Camargo, 2015, p. 81).

Em primeiro lugar, é lícito supor que o olhar do observador, seja ele o coletor ou o codificador, fosse desafiado a classificar como atividade de onde se retira o sustento pessoal exatamente o que, na realidade, ainda se caracterizava como prática bastante difusa, exercida de forma oportuna e pontual por atores que se empregavam em outras atividades. Apoia esta interpretação o fato de que crianças e idosos tenham sido automaticamente listados no grupo “sem profissão”, sem que houvesse uma preocupação em definir o que se considerava como infância e velhice, ou, ao menos, em estipular as idades extremas que caracterizariam o ingresso e a retirada do mundo produtivo. Em um dos três boletins de família preenchidos que nos chegaram, uma menina de 10 anos teve sua ocupação indicada como “do serviço de rua”. Não sabemos se este registro foi considerado ou não na apuração do censo, apenas que a menina continuaria trabalhando, apesar de sua pouca idade. No topo da pirâmide etária, o mesmo questionamento. Como bem colocou Diego Bissigo, uma senhora de 75 anos seria contabilizada como “sem profissão”, como se nada produzisse, nem mesmo enquanto “serviço doméstico” (Bissigo, 2014, p. 161).

Em segundo lugar, o fato de que situações extremamente isoladas fossem mantidas na tabulação dos resultados reforça nossa tese de que o olhar do recenseador foi valorizado e potencializado como testemunho de verdade. Por isso, registros aparentemente anômalos, como a contagem de apenas três homens livres estrangeiros entre os “parteiros”, de três mulheres livres entre os “operários” “couros e peles” e também os “operários” “de chapéus”, entre outros exemplos, não foram corrigidos nem suprimidos na agregação dos resultados. Por outro lado, o fato de serem registros bastante individualizados aponta para a dispersão nas práticas de observação, que se traduziu em ênfases diferentes sobre o que contar e classificar. A centralidade da coluna “observações” nos boletins, desacompanhada de protocolos rígidos que disciplinassem o olhar sobre o que e como ser visto, terminou por atribuir uma discricionariedade bastante grande ao agente censitário e, portanto, ao costume e às tradições locais que condicionavam as associações de sentido de uma visão patrimonial de família. Visão que autorizava vincular um determinado ofício a uma posição ocupada na hierarquia de dependência da unidade doméstica, reduzindo as possibilidades de alocação de um indivíduo à sua sobredeterminação pela condição, pela cor e pelo gênero.

Longe de procurar contornar este olhar, os organizadores do censo parecem tê-lo chancelado, intervindo, porém, na questão decisiva da diluição dos libertos no contingente formado pelos livres por nascimento, que radicalizava a polarização entre livres e escravos. A fase da agregação também parece ter sido vital na identificação dos escravos como estrangeiros, quanto à profissão, e na naturalização da religião católica e do português como base da homogeneidade étnica dos brasileiros. Portanto, a compilação e apresentação dos dados foram feitas de maneira a fabricar uma população homogênea e a reforçar seu caráter intensamente hierarquizado, dando continuidade, assim, aos princípios valorativos mobilizados na observação dos recenseadores.

Considerações finais

Neste artigo, procuramos examinar o levantamento geral do Império como um experimento híbrido em suas condições de possibilidade, premido tanto pelo peso da tradição quanto pelos novos recursos de visualização da população, característicos da internacionalização do conhecimento estatístico. Podemos dizer que o censo representou a utopia estatística de um Império que queria se mostrar externamente poderoso e civilizado, internamente integrado e formado por uma população hierarquizada e homogênea, por meio das clivagens e dos referentes com os quais as elites imperiais se viam e imaginavam o país e sua gente. Desse modo, interligavam-se a centralização política e a unidade nacional. Neste projeto, o serviço litúrgico de religiosos, particulares e lideranças locais forneceu o meio institucional suplementar de um Estado de baixa penetração e capacidade administrativa, que tinha dificuldades imensas em estabilizar suas formas e categorias de nomeação da realidade e de mediação dos conflitos.

Em uma espécie de continuidade cognitiva desta institucionalidade suplementar, o olhar sobre a população mostrou-se inseparável da vivência da realidade local, o que mostramos ser fundamental na rede de produção das informações reveladas pelo censo de 1872. Por esta razão, este pode ser visto como um laboratório político e cognitivo, ao ensaiar a unificação de um discurso administrativo e demográfico sobre a população, desenhando as categorias mediante as quais ela seria esquadrinhada e totalizada, no que fornecia as primeiras equivalências de um conjunto até então fragmentado e pensado por categorias heterônimas e práticas de registro locais e dispersas. Por isso podemos dizer que o censo permitiu justificar e instrumentalizar a expansão para dentro, na linha das reformas modernizantes dos gabinetes conservadores do Segundo Reinado.

A clivagem fundamental entre livres e não livres, verdadeira categoria estruturante do recenseamento; a exclusão por definição de escravos e mulheres de determinados ofícios liberais, intelectuais e mesmo industriais; a fixação de posições segundo o “dever ser”, não apenas jurídico, mas moral, da boa sociedade, ignorando diversas práticas, como as artes curativas difundidas pela sociedade imperial, chamam atenção para o olhar regulamentador e controlador do censo sobre o mundo do trabalho. Parece-nos que a principal contribuição do censo era elaborar e ordenar as categorias estatais que garantiriam a transição ordeira para o mundo do trabalho livre, segundo as expectativas de realidade partilhadas pelas elites do Império. Desse modo, o censo perseguia, sim, objetivos modernos, mas operava com princípios valorativos e classificatórios derivados de uma concepção arcaica e hierarquizada de população, que se justapunha à adoção das convenções recomendadas pelo internacionalismo estatístico (Camargo, 2015, p. 82). Por isso, procuramos abordá-lo como um experimento híbrido entre a tradição de contagens parciais e estimativas e a modernidade da exaustividade censitária voltada para o monitoramento da população.

Talvez seja justamente este hibridismo do censo o que ajuda a explicar por que a DGE não resistiria à sua publicação, sendo extinta pela lei orçamentária n. 2.940, de outubro de 1879. Ao contrário do que se poderia supor, o censo cumpriu uma série de aplicações práticas, especialmente quando considerado o contexto da época.

Primeiro: revelou o algarismo exato da população e sua composição, aferindo o potencial de recrutamento após as baixas da Guerra do Paraguai. Segundo: reuniu as informações que permitiram monitorar o afluxo de imigrantes e a extinção gradual da escravidão, assim como calcular o impacto da Lei do Ventre Livre. Terceiro: atrelado a este propósito, ofereceu subsídios à criação de uma matrícula geral de escravos, que permitiria ao governo regular a posse de cativos, nas décadas finais de sua existência. Quarto: sua simples realização constituía ingresso no seleto círculo das nações civilizadas que haviam produzido um censo moderno, chancelando as pretensões internacionais do Império. Quinto: forneceu indicações mais seguras para o cálculo do número de deputados de cada província, modernizando, assim, a função político-eleitoral das listas nominativas. Sexto: produziu os primeiros indicadores de progresso nacional, com destaque para a instrução, que se fez intensamente presente nos relatórios iniciais da DGE. Isto no momento em que a degradação moral dos ex-escravos e a necessidade de sua educação se colocavam no debate político, antes que a imigração se apresentasse como a solução definitiva para a transição no regime de trabalho. Sétimo: afora estes pontos, de caráter marcadamente pragmático, relembremos que as categorias censitárias ofereciam suporte à unificação das práticas administrativas do regime monárquico, em uma tentativa de formar uma linguagem instrumental sobre a população.

Se aplicações práticas não faltaram e se o censo produziu a mediação simbólica da unidade política, para dentro e para fora, por que, afinal, a DGE terminaria extinta em 1879? Identificamos três razões. A primeira tem a ver com o alto custo material da regularidade censitária para um país que, à diferença do mundo liberal europeu, não governava com números. Enquanto monumento estatístico, espelho do Império e da nação, o censo de 1872 não precisaria ser repetido a cada dez anos. Seus resultados atendiam à projeção da extinção da escravidão, a questão pragmática mais premente que lhe era associada.

A segunda razão remonta ao fim dos Congressos Internacionais de Estatística, em 1878, e ao interregno que se abriu até a fundação do International Statistical Institute, em 1885. Grande parte do apelo que justificava os pesados desembolsos com a repartição central de estatística advinham do trabalho de representação realizado pelo fórum internacional, cujas convenções reforçavam a manutenção de uma agência nacional de estatística como um imperativo para as nações que se queriam civilizadas. Ao se extinguirem os Congressos, perdeu-se, provisoriamente, a fundamentação de uma onerosa estrutura burocrática voltada para a realização de levantamentos exaustivos e regulares. Ela só seria retomada na Primeira República, com a recriação da DGE, em 1890, cujos trabalhos seguiriam, porém, bastante irregulares e claudicantes.

A terceira e última razão é mais estrutural, porém não menos vital: a permanência da tradição das estimativas e contagens parciais no argumento estatístico de parte da elite imperial, não raro empregado para contestar os números do censo. Este seria confrontado com projeções de população, baseadas em cálculos indiretos realizados anos e até décadas antes, por grandes nomes do Império (Camargo, 2016, p. 180-187; p. 224-236). Veja-se o exemplo do parecer de Rui Barbosa sobre a reforma do ensino primário. Escrito em 1882, seis anos após a divulgação dos resultados do censo, o parecer fez uso sistemático das estimativas até mesmo para os períodos em que havia estatísticas oficiais disponíveis. É o caso emblemático do recurso ao cálculo do senador Thomás Pompeu de Souza Brasil, publicado em 1869, às vésperas do censo (ver Tabela 1). Rui Barbosa optou por atualizar a cifra, que estimava em 9.800.000 o total de habitantes livres naquele ano, projetando-o em 10.500.000 para o ano de 1872 (Barbosa, 1947, p. 14). Ainda que se tratando do mesmo ano em que se levantou, pela primeira vez, a população do país, o jurista não sentiu necessidade alguma de contrapor o número revelado pelo censo (8.419.672), o qual reduzia drasticamente, em cerca de 20%, o montante relativo à população livre.

O parecer tinha por fim revelar a medida do atraso da situação do ensino no país. Para tanto, criticava os números do censo fiando-se em projeções de projeções. A DGE é desautorizada não por seus erros técnicos, que não são apontados, mas justamente por sua natureza oficial, que a colocaria a serviço da propaganda governista. O ataque de um liberal como Barbosa à Diretoria, já então rebaixada ao status de seção subordinada na hierarquia ministerial, resvalava no gabinete conservador do Visconde do Rio Branco, que a havia criado, e no principal responsável pelo censo, o senador Manoel Francisco Correa, outra reconhecida liderança daquele partido, o qual esteve à frente do governo durante praticamente todo o período de atuação da DGE.

Mais importante, porém, é o fato de que, em nenhum momento, Rui Barbosa tenha se sentido compelido a justificar a seu público de leitores por que preferia as estimativas tradicionais ao censo, talvez porque seu público estivesse igualmente convencido disso. Afinal, o jurista estava muito bem acompanhado nesta posição. Até mesmo o governo imperial preferiu se fazer representar na Exposição Universal da Filadélfia, em 1876, com painéis que ofereciam uma estimativa sobre a população[13]. Na verdade, tratava-se de número bastante próximo, ligeiramente superior, ao calculado por Thomás Pompeu de Souza Brasil, em 1869. Seriam 10.700.187 habitantes, em 1876, contra o total de 10.500.000 a que chegou o cálculo do senador para o ano de 1872, o que mais parece uma projeção sobre a projeção. Ou seja, a própria DGE produziu uma estimativa que contrariava os resultados de seu censo. Resultados que viriam a lume apenas alguns meses depois. Foi além. Cometeu a impropriedade de afirmar que “com muitos bons fundamentos, na apuração final do censo, a população excederá a 12.000.000 de almas” (Brasil, 1875, p. 100).

Ora, a proximidade entre os valores estimados e a discrepância grosseira entre estes e os números revelados pelo censo, quase em seguida, mostram que nem mesmo a DGE poderia contestar a autoridade das estimativas. Ao contrário, valia-se dela. É sintomático que em nenhum momento, fosse antes ou após a publicação dos resultados, a agência tenha reivindicado a objetividade mecânica e supostamente superior do censo para validar sua obra. Tampouco evocou a exatidão e a exaustividade como valores de verdade em relação ao empreendimento meramente particular que eram as estimativas.

Do ponto de vista do argumento estatístico, as décadas finais do Império conheceriam uma situação de concorrência entre dois registros de verdade: a modernidade censitária, baseada na exigência de precisão e na contagem exaustiva da população, e o cálculo indireto, uma empresa privada que retirava sua respeitabilidade do prestígio pessoal de seu autor. Nem a atualidade, nem a exaustividade, e tampouco a certificação estatal foram, por si, como são hoje, critérios suficientes para autorizar o censo ante o raciocínio por estimativas. Nossa contribuição sobre o censo de 1872 procurou analisá-lo como um experimento híbrido, restituindo-o às suas condições de possibilidade.

Por um lado, aspectos demográficos, como cor e condição ou religião e profissão, foram conhecidos pela primeira vez, dando origem a um discurso inédito sobre o conjunto da população, elaborado de maneira a reforçar a identificação entre o regime imperial e a unidade nacional, uma tendência realçada em estudos como o de Tarcisio Botelho. Por outro lado, ao considerarmos a configuração do discurso estatístico do Império em uma temporalidade mais ampla, oi-nos possível assinalar algumas linhas de continuidade: a precedência da autoridade pessoal, característica das estimativas, no serviço litúrgico que viabilizou a operação censitária; a valorização da observação direta como valor de verdade no modo como os boletins de família foram desenhados, aplicados e processados pela instância de controle da contagem; a restrição sobre o que poderia ser perguntado ou conhecido a partir da identificação de cor e condição, que, assim como nas listas nominativas, delimitavam as expectativas de realidade de um olhar ainda não disciplinado por protocolos observacionais.

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Notas

[2] Segundo Botelho (1998, p. 14), o censo de 1872 foi o primeiro a atender à maioria dos critérios atualmente fixados pelas Nações Unidas para considerar como censo um levantamento de população: respaldo legal; simultaneidade de todo o levantamento, com um tempo de referência predefinido; referência territorial prefixada; universalidade da enumeração dentro deste território; enumeração individual de todas as pessoas. Apenas a manutenção da periodicidade e a disponibilidade dos dados se mostraram problemáticas, embora previstas no planejamento dos censos do Império. Sobre os critérios de definição do censo, cf. Hakkert (1996, p. 15-20).

[3] Nos congressos, pressionava-se pela difusão de uma infraestrutura de contagem; debatiam-se a normalização das classificações, a precisão das categorias, as correlações possíveis entre fenômenos variados a serem tabulados. De igual modo, importava fixar as atribuições dos produtores e das autoridades públicas, definindo uma engenharia que permitisse o repasse ministerial dos registros administrativos, eliminando a duplicação das contagens, sem acentuar eventuais tensões decorrentes da concorrência burocrática. Entre 1853 e 1878, os congressos se realizam em Bruxelas (1853), Paris (1855), Viena (1857), Londres (1860), Berlim (1863), Florença (1867), Haia (1869), São Petersburgo (1872) e Budapeste (1876). Na década de 1870, instalou-se uma comissão permanente em Viena (1873), Estocolmo (1874), São Petersburgo (1876) e Paris (1878). Os congressos não resistiram à morte de seu idealizador e presidente de honra, Adolphe Quetelet, ocorrida em 1874. Mas já haviam germinado o internacionalismo estatístico, que logo seria continuado com a fundação do Instituto Internacional de Estatística, em 1885, ainda hoje atuante (Brian, 1999, p. 17).

[4] A participação brasileira nos congressos internacionais de estatística tem sido objeto de trabalhos recentes. Senra analisou o papel da delegação brasileira no Congresso Internacional de Estatística de 1872 e na reunião da comissão permanente de 1873, ambos com intervenções de Varnhagen (Senra, 2006, p. 335-352). A atuação de Francisco Ignácio de Carvalho Moreira, o Barão de Penedo, no congresso de 1860, em Londres, e a de Varnhagen nas reuniões da comissão permanente (1874) e no Congresso Internacional de Budapeste (1876) foram estudadas por Santos (2018, p. 70-75).

[5] A tradição de realizar mapas e listas nominativas de população remonta à segunda metade do século XVIII, relacionando-se à preocupação da Coroa portuguesa com o conhecimento da população distribuída nos domínios coloniais. Trabalho de Paulo Teodoro de Matos analisou a origem desta prática de contagem para o caso da capitania de São Paulo (2017, p. 635-648).

[6] O caso mais emblemático é o da “Comissão de Estatística Geográfica e Natural, Política e Cívica”, instalada na Corte e criada em 1829, com jurisdição sobre todo o Império, igualmente voltada ao alistamento eleitoral e à definição de limites territoriais.

[7] Alerte-se, todavia, para o fato de que a frequência era confundida com a matrícula, o que tinha implicações sobre a análise do analfabetismo e do movimento escolar da população.

[8] São raras as listas de família preenchidas e disponíveis em arquivos. Três delas, de proveniências distintas e características peculiares, foram examinadas por Diego Bissigo e são valiosas para uma análise sintomatológica, como a que buscamos empreender aqui. A primeira lista pertenceu a uma família chefiada por Antonio Gonçalves Gravatá, domiciliada em Salvador da Bahia, e composta por 14 indivíduos, um casal branco de idade avançada (72 e 74 anos, respectivamente) e vários “pretos”, alguns deles escravos, outros libertos, e outros tantos com status difícil de determinar. Esta lista encontra-se disponível na biblioteca do IBGE. A segunda lista está depositada na Biblioteca Nacional e refere-se à família de João Baptista Paulínio, do “município do Espírito Santo”, província de mesmo nome. Temos aqui um domicílio de cinco indivíduos dados como “pardos” (os pais e três supostos filhos), ele registrado como “lavrador” e provavelmente analfabeto, visto que a lista é assinada duas vezes pelo agente recenseador: tanto no espaço destinado ao próprio agente quanto no espaço destinado ao chefe da família. Já a terceira lista, também parte do acervo da Biblioteca Nacional, é assinada por Rafael Arcanjo Galvão, “empregado público”, domiciliado na Corte. Seu domicílio era também numeroso, contando com 17 indivíduos listados, entre membros da família, “criados” e “hóspedes” (Bissigo, 2014).

[9] Os centros de cálculo permitem superar o perspectivismo da observação de informantes e agentes locais e emergir como o único observador privilegiado. Segundo Latour, “é justamente porque os observadores delegados ao longe perdem seu privilégio – o relativismo – que o observador central pode elaborar seu panóptico – a relatividade – e encontrar-se presente ao mesmo tempo em todos os lugares onde, no entanto, não reside”. Equivalem-se todas as posições do sujeito e todas as posições do objeto, em benefício do transporte estável da informação pela instituição-vetor. Do relativismo dos observadores passamos à relatividade dos centros, condição de mobilidade e de imutabilidade das inscrições (Latour, 2000, p. 39).

[10] A lista de família assim dispõe sobre o campo “observações”: “a respeito dos hóspedes e transeuntes deve-se declarar o lugar de seu domicílio, e dos ausentes o lugar em que se acham, sendo sabido. Se algumas das pessoas da relação forem surdo-mudos, cegos, tortos, aleijados, dementes, alienados, isso será aqui declarado. A respeito das crianças de 6 a 15 anos deve-se declarar se frequentam a escola” (Brasil, 1872).

[11] Trata-se, para Nelson Senra, do fundamento cognitivo que preside todas as instituições produtoras de estatísticas oficiais. Para estabilizar as discrepâncias e as diferentes experiências de objetividade dos agentes censitários no processo de interação e negociação de significados que envolvem as entrevistas e as coletas de informações, tal fundamento assume que as todas as ações locais da rede sejam reduzidas ao que é previamente normatizado pela instância superior de concepção da pesquisa, o centro de cálculo. Supõe-se que os procedimentos rotinizados e uniformizados dos manuais de conduta sejam o único quadro de referência a orientar a percepção dos recenseadores, enquanto atores sociais. Em suma, a determinação da situação de entrevista é aqui um dado previsto e reificado. A visão de Senra é uma leitura pessoal da sociologia das traduções de Bruno Latour. Dado que as inscrições devem ser móveis, estáveis e combináveis, a delegação do olhar serve muito bem a uma sociologia da produção estatística, permitindo a expropriação do relativismo de seus observadores (Senra, 2006, p. 29-42).

[12] Trata-se de fato digno de interesse, pois sinaliza para a heteronomia do campo intelectual e artístico, em conformidade com a tese de Angela Alonso sobre a geração de 1870, que mostrou como os letrados eram inteiramente dependentes da sociedade de Corte e do mecenato do imperador; homens que viviam para a política e que encontravam na escrita um signo de dignificação pessoal em seu próprio meio (Alonso, 2009, p. 83-118).

[13] Seguia-se, assim, a prática de se recorrer às estimativas para apresentar a população do país, que teve início nas exposições universais de Paris (1867) e de Viena (1873), quando a mesma cifra – 11.780.000 de habitantes, sendo 10.380.000 livres e 1.400.000 escravos – foi reutilizada, à falta de estatísticas disponíveis (Brasil, 1867, p. 28).

Autor notes

[1] Universidade Candido Mendes, Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política. Rua da Assembleia, 10, 7º andar, Sala 702, Centro, 20011-901, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Qual era a população brasileira em 1872 quando foi feito o primeiro recen Seamento oficial?

O Censo de 1872 encontrou no país quase 10 milhões de “almas” (mais precisamente, 9.930.478).

Quando foi o primeiro recenseamento oficial da população brasileira?

Neste cenário, foi realizado em 1872 o primeiro Censo do país. A execução do censo havia sido prevista em lei assinada em 1870, que criava um Diretório Geral de Estatística para conduzir a pesquisa.

Qual era a população brasileira em 2010 quando foi feito o primeiro recenseamento oficial?

Em 2010, atingimos a marca de 190.755.799 habitantes. Dados preliminares divulgados pelo IBGE em novembro do ano passado apontavam 190.732.694. Em 1872, quando foi realizado o primeiro recenseamento, éramos 9.930.478. Os dados fazem parte da Sinopse do Censo Demográfico 2010, divulgada nesta sexta-feira (29) pelo IBGE.

Qual era o número de pessoas no Brasil em 1870?

Os resultados finais revelaram que o Brasil tinha 9.930.478 habitantes, sendo 5.123.869 homens e 4.806.609 mulheres. Os homens representavam 51,6%, e as mulheres 48,4% da população total.