A ideia de que "a paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos" faz referência ao caráter pacificador que a própria chuva trouxe ao conflito que estava sendo desenvolvido em Moçambique. Ao afirmar que a paz tem outros governos, o escritor indicou que não é apenas a decisão humana que está associada às continuidades sou rupturas de guerras e conflitos humanos, mas a natureza - ou, para alguns, Deus -, decide também, em certa medida, o desenrolar da história. No caso da Chuva abensonhada, o que ocorreu foi a superação do conflito por intermédio de um fenômeno natural que satisfez as duas partes neste processo, garantindo a instalação de uma certa harmonia que não dependeu diretamente de ações humanas. Ou seja, a “paz” não depende apenas dos políticos, mas para a cidade ficar tranquila a natureza tem que colaborar também. Um exemplo é que com a chuva acontecem as enchentes, deslizamentos etc. CONTO- CHUVA: A ABENSONHADA Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento? Agora, a chuva cai, cantarosa, abençoada. O chão, esse indigente indígena, vai ganhando variedades de belezas. Estou espreitando a rua como se estivesse à janela do meu inteiro país. Enquanto, lá fora, se repletam os charcos a velha Tristereza vai arrumando o quarto. Para Tia Tristereza a chuva não é assunto de clima mas recado dos espíritos. E a velha se atribui amplos sorrisos: desta vez é que eu envergarei o fato que ela tanto me insiste. Indumentária tão exibível e eu envergando mangas e gangas. Tristereza sacode em sua cabeça a minha teimosia: haverá razoável argumento para eu me apresentar assim tão descortinado, sem me sujeitar às devidas aparências? Ela não entende. Enquanto alisa os lençóis, vai puxando outros assuntos. A idosa senhora não tem dúvida: a chuva está a acontecer devido das rezas, cerimónias oferecidas aos antepassados. Em todo o Moçambique a guerra está parar. Sim, agora já as chuvas podem recomeçar. Todos estes anos, os deuses nos castigaram com a seca. Os mortos, mesmo os mais veteranos, já se
ressequiam lá nas profundezas. Tristereza vai escovando o casaco que eu nunca hei-de-usar e profere suas certezas: De mais? Não, a chuva não esqueceu os modos de tombar, diz a velha. E me explica: a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho. Para Tristereza a natureza tem seus serviços, decorridos em simples modos como os dela. As chuvadas foram no justo tempo encomendadas: os deslocados que regressam a seus lugares já encontrarão o chão molhado, conforme o gosto das sementes. A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos. Mas dentro de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será prolongadamente demasiada? Não será que à calamidade de estio se seguirá a punição das cheias? Tristereza olha a encharcada paisagem e me mostra outros entendimentos meteorológicos que minha sabedoria não pode tocar. Um pano sempre se reconhece pelo avesso, ela costuma me dizer. Deus fez os brancos e os pretos para, nas costas de uns e outros, poder decifrar o Homem. E apontando as nuvens gordas me confessa: – Lá em cima, senhor, há peixes e caranguejos. Sim, bichos que sempre acompanham a água. E adianta: tais bichezas sempre caem durante as tempestades. – Não acredita, senhor? Mesmo em minha casa já caíram. – Sim, finjo acreditar. E quais tipos de peixes? Negativo: tais peixes não podem receber nenhum nome. Seriam precisas sagradas palavras e essas não cabem em nossas humanas vozes. De novo, ela lonjeia seus olhos pela janela. Lá fora continua chovendo. O céu devolve o mar que nele se havia alojado em lentas migrações de azul. Mas parece que, desta feita, o céu entende invadir a inteira terra, juntar os rios, ombro a ombro. E volto a interrogar: não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade? A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E acrescenta: – A chuva está limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de Moçambique ... Tristereza ainda me olha, em dúvida. Depois, resignada, pendura o casaco. A roupa parece suspirar. Minha teimosia ficou suspensa num cabide. Espreito a rua, riscos molhados de tristeza vão descendo pelos vidros. Por que motivo eu tanto procuro a evasão? E por que razão a velha tia se aceita interior, toda ela vestida de casa? Talvez por pertencer mais ao mundo, Tristereza não sinta, como eu, a atracção de sair. Ela acredita que acabou o tempo de sofrer, nossa terra se está lavando do passado. Eu tenho dúvidas, preciso olhar a rua. A janela: não é onde a casa sonha ser mundo? A velha acabou o serviço, se despede enquanto vai fechando as portas, com lentos vagares. Entrou uma tristeza na sua alma e eu sou o culpado. Reparo como as plantas despontam lá fora. O verde fala a língua de todas as cores. A Tia já dobrou as despedidas e está a sair quando eu a chamo: – Tristereza, tira o meu casaco. Ela se ilumina de espanto. Enquanto despe o cabide, a chuva vai parando. Apenas uns restantes pingos vão tombando sobre o meu casaco. Tristereza me pede: não sacuda, essa aguinha dá sorte. E de braço dado, saímos os dois pisando charcos, em descuido de meninos que sabem do mundo a alegria de um infinito brinquedo. (COUTO, Mia. Estórias abensonhadas. 7. ed. Lisboa: Caminho, 2003, p. 57-62) http://mia-coutiando.blogspot.com/2011/10/chuva-abensonhada-estou-sentado-junto.html Fonte: Livro - Tecendo Linguagens - Língua Portuguesa: 9º ano/Tania Amaral Oliveira, Lucy Aparecida Melo Araújo - 5.ed. - Barueri(SP): IBEP, 2018 - p.22-25. POR DENTRO DO TEXTO 1. Quem são as personagens do conto? Descreva-as. O narrador-personagem, provavelmente jovem, bastante pensativo e reflexivo, e tia Tristereza, que é idosa e mostra-se sábia e conhecedora das crenças do seu país. 2. Em que lugar ocorre o diálogo entre essas personagens? Elas estão dentro de uma casa. 3. Descreva o assunto sobre o qual as personagens conversam. Elas concordam sobre o assunto que está sendo tratado? As personagens conversam sobre uma festa que ocorrerá em breve e sobre a chuva. Os dois não têm a mesma opinião: ela acredita que a chuva é um recado dos espíritos e ele não. Ela quer que ele se vista bem para ir à festa de Moçambique, mas ele não quer usar a roupa que ela lavou e preparou. 4.Transcreva em seu caderno apenas a alternativa que melhor exprime a opinião da personagem Tristereza sobre a chuva. a) A chuva era um castigo dos deuses, assim como o período de estio que o povo havia enfrentado. b) A chuva serviria para limpar o povo de qualquer pecado e excesso que houvesse cometido durante o período de guerra. c) A chuva estava lavando a terra do triste passado de guerra. 5. Releia este trecho: A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento? a) A alegria que as personagens experimentam refere-se somente à chuva que cai após o período de seca? Não. Na verdade, elas estão alegres porque a guerra está no fim. b) Comprove sua resposta ao item anterior com um trecho do terceiro parágrafo. Transcreva-o em seu caderno. “Em todo o Moçambique a guerra está parar”. 6. Releia este outro trecho: A Paz tem outros governos que não passam pela vontade dos políticos. • Em seu caderno, explique seu significado. De acordo com o trecho, a paz não depende da vontade dos políticos, mas é influenciada por outras razões. No conto, a paz é atribuída à chegada da chuva, ou seja, à ocorrência de um fenômeno da natureza. TEXTO E CONSTRUÇÃO 1. Em sua opinião, que característica mais se destaca no texto? Por quê? Resposta pessoal. Professor, espera-se que os alunos citem o uso criativo da linguagem e a presença de muitas palavras diferentes das que estamos acostumados. 2.Releia o título e o primeiro parágrafo do conto: Chuva: a abensonhada Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento? a) As palavras destacadas podem ser localizadas no dicionário? Não. b) Observando o contexto, é possível definir o significado de “tintintinar”. Explique qual é ele. Barulho intermitente do chuvisco caindo, provavelmente batendo em alguma superfície metálica. c) E quanto à palavra “indaguava”, por que também é possível defini-la? Explique. É muito próxima de outra palavra que usamos: “indagava”, que significa “perguntava/ questionava”. Professor, incentive os alunos a perceberem que há uma junção entre o termo “indagar” com a palavra “aguar”, em uma provável tentativa de se referir à água da chuva. d) As palavras “abensonhada” e “perfumegante” também são criações do autor. Observe-as e indique a partir de que outras palavras foram formadas. Abensonhada – formada por meio da junção de duas palavras: “abençoada” e “sonhada”. Perfumegante – formada por meio da junção de duas palavras: “perfumada” e “fumegante”. e) Agora, explique o significado de “abensonhada” e “perfumegante”, no contexto em que foram utilizadas. Abensonhada – a chuva era abençoada e sonhada (desejada) porque o período de seca fora muito longo. Perfumegante – a terra seca e quente da estiagem, ao ser molhada pela chuva, libera um vapor como o odor agradável de um perfume. 3.No texto de Mia Couto, há outras palavras formadas pela junção de termos existentes, como: “cantarosa”, “Tristereza” e “murmurrindo”. Explique como se deu a formação nesses exemplos. Cantarosa – chuva que “canta” e que é “maravilhosa”, “gostosa” etc. Tristereza – fusão de “triste” com “Tereza”, provavelmente definindo uma característica marcante da personagem. Murmurrindo – rindo em murmúrio, rindo e falando |