Quem é o compositor da música A palo seco?

A Palo Seco é uma canção maravilhosa, lançada em 1974, composta por Belchior. A música chama a atenção pela sinceridade que contém nela e pelo desespero que realmente existe em cada palavra escrita e interpretada pelo cantor. A expressão “Palo Seco” significa “Franco, Direto, Sem Rodeios”, e é título de um poema do pernambucano João Cabral de Melo Neto.

A canção fala muito sobre os tempos sombrios da história da América Latina, uma época onde os jovens se desesperavam diante da falta de perspectivas. Fala sobre o desespero de lidar com a apatia das pessoas, com a falta de oportunidades e a realidade dura em que as pessoas viviam.

Ouvindo essa canção no rádio, eu não pude deixar de me perguntar: será que esses tempos sombrios realmente passaram? Será que algo mudou da década de setenta pra cá? Quando eu paro para analisar a situação atual do país, eu realmente não acredito que algo tenha mudado de verdade. A apatia está entre nós, assim como a falta de oportunidades. Não temos perspectivas, porque não temos dinheiro, e todo mundo sabe que só tem oportunidades boas quem tem dinheiro.

Eu sei que é desesperador viver neste mundo tão cheio de fases difíceis para passar, mas não seria muito mais fácil ter condições de ter uma boa vida? Não seria incrível não precisar se preocupar com as contas no final do mês? Não seria justo que todos nós tivéssemos condições de viver a vida que todos nós sonhamos?

Mas a vida é injusta e muitos de nós estão lutando diariamente para ter acesso pelo menos ao básico, não temos perspectivas, nem sonhamos mais em alcançar grandes sonhos. É triste abandonar certos planos pela falta de grana, enquanto algumas pessoas tem condições de jogar dinheiro fora se quiser.

Então, Belchior, infelizmente esse desespero não foi moda apenas em 76, nós também andamos descontentes, desesperadamente nós gritamos em português.

Quem é o compositor da música A palo seco?

Confira a letra da música A Palo Seco:

Se você vier me perguntar por onde andei
no tempo em que você sonhava.
De olhos abertos lhe direi:
amigo, eu me desesperava.

Sei que assim falando pensas
que esse desespero é moda em 76.

Mas ando mesmo descontente,
desesperadamente eu grito em português.
Mas ando mesmo descontente,
desesperadamente eu grito em português.

Tenho 25 anos de sonho e de sangue
e de américa do sul.
Por força desse destino,
ah, você sabe e eu também sei,
o tango argentino me vai bem melhor que o blues.

Sei que assim falando pensas
que esse desespero é moda em 76.
E eu quero é que esse canto torto
feito faca corte a carne de vocês.
E eu quero é que esse canto torto
feito faca corte a carne de vocês.

Sei que assim falando pensas
que esse desespero é moda em 76.
E eu quero é que esse canto torto
feito faca corte a carne de vocês.
E eu quero é que esse canto torto
feito faca corte a carne de vocês.

Clique aqui para conferir um artigo sobre a música Romaria.

About Renata Lima

Escrevo sobre tudo o que me inspira.

Quem conta é o historiador Luiz Antônio Simas (não é necessariamente sua especialidade, mas o título continua valendo) em sua conta no Twitter:

Medo de avião é uma canção que descreve um flerte adolescente e Medo de Avião 2 é o sexo, uma transa nas alturas. Flertaram na primeira e transaram na segunda. A mais linda descrição de uma trepada da MPB, aliás. A história da música é ótima. Belchior fez a letra de Medo de Avião (a primeira) e mandou para Gilberto Gil. Esqueceu, maluco que era, que tinha mandado para Gil ser parceiro e acabou fazendo uma melodia pra letra enviada. Música pronta. Sucesso. Um belo dia, Gil manda a melodia, bem mais rebuscada que a de Belchior, e com uma segunda parte linda pra Belchior letrar. O bigodudo não teve alternativa. Constrangido pelo esquecimento, fez o Medo de Avião 2 e meteu na melodia de Gil alguns dos mais bonitos versos da MPB. No fim das contas, Medo de Avião abriu o disco Era uma vez um homem e seu tempo e Medo de Avião 2 fechou o LP.

O olhar irônico lançado sobre a juventude é um dos leitmotifs da obra de Belchior, não fosse sua canção mais conhecida, Como nossos pais, inteiramente sobre este tema. Embora Medo de avião seja cantada na primeira pessoa, a ironia é inequívoca. Que coisa adolescente, James Dean!, encerra ele a primeira estrofe, mencionando o astro de Juventude transviada (Rebel without a cause no título original). Os elementos principais da narrativa, inclusos todos no primeiro verso, compõem o retrato: o medo fragilizante, infantilizante, e a tensão de segurar a mão de uma mulher pela primeira vez.

Mas há um outro elemento componente desta ironia e igualmente habitual em Belchior, que é o uso de uma sonoridade folk tipicamente norte-americana por parte deste cearense. A influência de Bob Dylan sobre Belchior é confessa, mas os arranjos folk de suas canções frequentemente parecem zombar desta influência levada ao pé da letra também na sonoridade. Se outros músicos desta leva apelidada de Nordeste 70 como o paraibano Zé Ramalho ajustaram esta influência amalgamando-a com as rimas dos cantadores, Belchior, em vez disso, muitas vezes a traz inteira e, por conseguinte, deslocada, para seu cancioneiro. Assim, ao mesmo tempo que Belchior, ao cantar (em primeira pessoa) o enlevo do rapaz enamorado e assustado ri discretamente dele, parece também se divertir em emular o bardo estadunidense enquanto faz a crítica da própria cópia, como igualmente imatura. O ridículo da cópia se incorpora à crítica metalinguisticamente, e a mordacidade à qual, se não falta um certo carinho, este também não deixa de ser um tanto condescendente, se estende do protagonista da canção ao estilo da própria, ambos identificados afinal com o próprio Belchior.

E então, com Medo de avião composta apenas por Belchior, Gil mandou sua versão.

A visão de Gilberto Gil sobre a letra é radicalmente diferente da do parceiro, simplesmente porque Gil leva a sério o romance sugerido e propõe levá-lo adiante. Sua versão desarma todas as bombas de sarcasmo postas por Belchior. O carinho com que sua melodia envolve a história não tem julgamento e ele trata toda a situação quase com nostalgia, como quem compartilha uma lembrança boa.

Mas Gil não se limita a tomar outra direção na leitura da letra de Belchior. Ao enviar uma segunda parte melódica sugerindo a continuação da letra, ele como que aceita a provocação de Belchior e dobra a aposta, desafiando-o a falar sério e virtualmente induzindo que esta segunda parte seja a consumação do romance, quiçá do próprio ato sexual. Pois a letra de Belchior já estava completa contando uma história com começo, meio e fim, o assunto estava encerrado. A única forma de estender a canção seria estendendo também o flerte… até suas consequências.

Harmonicamente falando: a harmonia de Medo de avião é tonal e direta, sem sequer um empréstimo modal ou dominante secundária. Diria até bastante elementar – como um flerte adolescente. Isto não tira a qualidade da composição, antes se mostra adequado à temática e à abordagem. Não se trata de afirmar que seja uma composição pobre, já que, mesmo com estes poucos elementos, cria-se uma canção com melodia bastante rica e que gruda no ouvido, além de se prestar perfeitamente à ironia pretendida. Por outro lado, a ausência de novidades harmônicas impede um desenvolvimento maior, e faz com que a gravação não chegue a dois minutos e meio, pela exaustão da exposição musical. Tudo o que se pretendia dizer é dito, e não há motivo para se estender em repetições que provocariam o cansaço pela reiteração.

Gil percebe a necessidade de um desenvolvimento melódico-harmônico a partir deste mote de letra proposto por Belchior (tanto em termos estritamente musicais quanto em desenvolvimento do enredo, como vemos acima), e na segunda parte que ele propõe estão então os elementos que faltam na primeira. Interessante notar que, na versão de Gil, a parte de letra inicialmente proposta por Belchior recebe dele um tratamento igualmente tonal, com até mesmo funções similares nos mesmos trechos, particularmente a passagem inicial de tônica para sexto grau, virtualmente a mesma em ambas. Porém, Gil trata na segunda parte de desdobrar este tema, e então começa uma série de dominantes secundárias, fora da tonalidade principal, que dão um passeio bem mais largo que o inicial, como que ampliando o arco e preparando igualmente a ampliação do arco narrativo. É este mote que Belchior aproveitará na construção da segunda parte da letra.

E então, correspondente à mudança de tom trazida por Gil, há também uma mudança de tom na letra que Belchior acrescenta. O discurso totalmente autocentrado é substituído por uma comunhão que se consuma: o eu é substituído pelo nós. Belchior aceita o desafio de Gil e se sai brilhantemente, abandonando nesta segunda parte todo o sarcasmo e trocando-o por um equilíbrio delicado entre a carnalidade sexual e o lirismo.

Mas a adequação da letra de Belchior nesta segunda parte não acontece apenas na passagem da visão mais pueril à mais lírica, mas também em termos de construção dos versos: assim, na primeira das segundas partes novas, a mão vai deslizando da outra mão para sedas, cílios, pêlos – e a própria palavra pelos também sofre um deslizamento de significado, passando de preposição a substantivo e ganhando um acento circunflexo no correr do verso; e na segunda nova estrofe ocorre a menção a corpos desafiando a lei da gravidade, num jogo que envolve tanto a própria ação sexual quanto o fato de ocorrer num avião em pleno voo; e em ambos os casos, a letra corre em perfeita concordância com a harmonia que desliza por dominantes fora da tonalidade, como que afastando-se momentaneamente do chão, para retomá-lo adiante no retorno à primeira parte.

Medo de avião e Medo de Avião 2 têm duas citações de canções dos Beatles, ambas de sua fase inicial, dedicada a romances ingênuos – o que evidentemente se coaduna com a visão de Belchior sobre o espírito juvenil. Tratemos primeiro da menos óbvia She loves you. O trecho que Belchior escolhe é tanto uma menção à canção em si quanto a todo o movimento que ganhou nome a partir desta frase, o iêiêiê, e seus rocks inocentes. A exultação de quem escuta o amigo relatar que ela te ama é usada por Belchior para encerrar Medo de avião como a comemoração do rapaz pelo fato de a moça ter permitido a ele segurar sua mão e, simultaneamente, ao trazer todo o universo do iêiêiê para dentro da canção (ou melhor dizendo, explicitar ainda mais um universo que já estava lá), é mais uma mirada zombeteira de Belchior, já na coda de Medo de avião – e apenas nela.

Já I wanna hold your hand é mencionada nas duas canções – além da descrição do gesto em português, a frase em inglês. Na primeira, apenas em letra, pois a melodia muda em relação à original, e associada ao yeah, yeah, yeah! que a segue. Porém, em Medo de avião 2 a menção, apesar de ainda mais direta, por incluir agora também a melodia, surge recontextualizada pelo ato sexual já descrito antes de chegarmos a ela. Desta vez, letra e melodia originais dos Beatles são trazidas para dentro da canção de Gil e Belchior – e aqui se torna difícil assinalar se a melodia já era de Gil ou se Belchior interferiu nela para ajustar a citação. O fato é que, sem a citação a She loves you, I wanna hold your hand assume o papel de encerramento ao ser cantada pelo coro. E a incorporação total do verso cantado na estrutura da canção, em vez de apenas uma menção na letra ou o encaixe incidental do yeah, yeah, yeah!, acaba correspondendo também como que a um aprofundamento da relação entre as canções das duas duplas – Belchior/Gil e Lennon/McCartney, que antes apenas próximas, passam a efetivamente ter um trecho em comum – uma conjunção carnal, por assim dizer.

Medo de Avião e Medo de avião 2 abrem e fecham o álbum de 1979 de Belchior. A primeira foi um grande sucesso radiofônico, em parte e possivelmente justo por seu ar falsamente adolescente, além da simplicidade de sua forma, capaz de se prestar à assimilação imediata da parte de quem possivelmente nunca notou sua ironia. Medo de Avião 2, menos assobiável (fato raro em Gil, aliás), com seus versos abertamente sexuais, incluindo um dos mais exatos sobre o orgasmo – nós nem pensamos na felicidade – e encerrando o álbum, faz com que a mesma letra inicial ganhe novas cores, até pela escuta das canções que entremeiam as duas, como Comentário a respeito de John e Pequeno perfil de um cidadão comum, permanecendo destinada a quem decidiu prolongar o flerte com a obra de Belchior e acompanhá-lo até aonde ela prometia ir.

Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.

(O poema A Palo Seco, de João Cabral de Melo Neto, do livro Quaderna, de 1960, pode e deve ser lido inteiro aqui.)

Cante – Utilizado como abreviação de “Cante Flamenco”, denomina o conjunto de composições musicais em diferentes estilos que surgiram entre o último terço do séc. XVIIIe a primeira metade do séc. XIX, devido à justaposição de modos musicais e folclóricos existentes na Andaluzia. Palo – Nome que recebe cada estilo de cante. Palo Seco – Estilos de cante sem o acompanhamento da guitarra. (fonte: site Cuadra Flamenca)

Em 1973, no álbum O Romance do Pavão Mysteriozo, Ednardo canta A Palo Seco.

Não literalmente. Ao contrário, Ednardo se faz acompanhar pela guitarra – não flamenca, mas elétrica – de Heraldo do Monte, arranjador do álbum ao lado de Hareton Salvanini e Isidoro Longano. A Palo Seco, a canção, não tem nenhum elemento musical relacionado ao cante flamenco – nem mesmo o violão rasgueado de acompanhamento da primeira parte, nem a harmonia, nada. Nada, a não ser seu espírito. Nada, a não ser a crueza tanto de seus versos quanto de sua interpretação. Nada, a não ser a guitarra de Heraldo dando a primeira nota como uma faca cortando a carne. Ou a virada feroz da bateria para a entrada na segunda estrofe. Nada a não ser a voz rascante de Ednardo (o pássaro araponga / que inventa o próprio ferro, no dizer de João Cabral), sem vibrato, às vezes descalibrada, e que termina a canção no fade out da guitarra (que retorna adiante hendrixiana para o golpe final) cantando à capela, sem acompanhamento. A Palo Seco. 1973. Ednardo canta: Tenho 25 anos de sangue, de sonho e de América do Sul. Em 1973 iniciam-se as ditaduras civil-militar uruguaia (27 de junho e chilena (11 de setembro), esta com o golpe de Augusto Pinochet pondo fim à experiência de socialismo democrático de Salvador Allende. Na ditadura chilena foram torturadas quase 40 mil pessoas. No Brasil, vigoravam os Anos de Chumbo, período mais sangrento da repressão, que só terminaria junto com o governo Médici, em março de 1974. 1973. Ednardo canta: Por conta deste destino, um tango argentino me cai bem melhor que o blues. Em 1973, encerra-se uma das encarnações da ditadura argentina (iniciada em 1966), com a eleição do candidato peronista Hector J. Cámpora (25 de maio). Porém, o percurso da democracia continuaria acidentado. Ele renunciaria logo depois em prol de novas eleições em que Perón, impedido pelos militares na primeira, pudesse concorrer. Perón vence as novas eleições, mas morre menos de um ano depois, sendo sucedido por Isabelita Perón, sua vice. E em 1976 Isabelita é deposta por outro golpe, e um novo período ditatorial se estenderia agora até 1983. E em 1976, Belchior apresenta sua versão para A Palo Seco no álbum Alucinação.

Diante da contundência da gravação de Ednardo, o canto de Belchior soa suave, quase melancólico. O grito áspero e a guitarra distorcida são substituidos por uma cama de teclados e a voz anasalada que em alguns momentos parece sequer levar a sério o que ela própria diz. Aqui cabe uma curta análise melódica: se os versos citados nos parágrafos anteriores são os de notas mais agudas da canção, externando claramente os momentos de maior tensão (além deles, os versos finais se iniciam na mesma nota aguda – trato deles mais tarde), já os versos intermediários sei que assim falando pensas que esse desespero (expresso nas notas agudas) é moda em 73 (76 para Belchior) recuam para uma região mais grave, como se ditos num aparte ao próprio discurso. Na voz de Ednardo, este verso soa como uma fraca contraposição, em que a hipótese é desvalorizada: mesmo que o ouvinte pense isso, está errado. Já cantado por Belchior, a possibilidade de este desespero ser realmente algo não tão levável a sério se torna mais real, como se ele se permitisse de algum modo zombar do próprio desespero. No próprio verso que compara o tango argentino ao blues americano, que em Ednardo tem ares de luta antiimperialista (a discussão paralela de que o blues, lamento negro tanto quanto o tango, seria também a música do explorado, e assim a dicotomia aqui seria mais sutil, entre os explorados daqui e os de lá, corre paralela), em Belchior a menção ao tango ganha ares dramáticos no limite do kitch. É incrível pensar que estas mudanças de significação não tão sutis ocorrem não apenas por causa das mudanças de arranjo, mas sim de intérprete, e a carga pessoal que eles trazem para a canção. E mais interessante é perceber que tanto Ednardo quanto Belchior têm em suas canções e gravações implicações políticas de teor próximo. Então de onde vem a diferença tão clara entre as duas leituras? Penei até me dar conta. Em Belchior a dimensão existencial se sobrepõe à política. E aqui me ocorre imediatamente a ligação direta que há entre o canto geracional de Belchior, citando diretamente a juventude (e de forma às vezes irônica) ou falando em nome dela em várias canções: que coisa adolescente, James Dean (Medo de avião); Nunca mais meu pai falou: “She’s leaving home” e meteu o pé na estrada, “Like a Rolling Stone…” (Velha roupa colorida); Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida (Comentário a respeito de John); mas mais que todas, Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais (Como nossos pais). Em todas elas, a crônica de uma juventude belíssima e libertária, porém desperdiçada ou em vias de sê-lo. Uma geração perdida, entre outras coisas, na luta armada. Mas algo de caráter eminentemente político como este fato, sem que lhe seja negada esta dimensão, tem seu efeito individual, sua vivência pessoal ressaltada antes do caráter coletivo. Outro exemplo, de Galos, noites e quintais:

Eu era alegre como um rio
Um bicho, um bando de pardais
Como um galo, quando havia
Quando havia galos, noites e quintais
Mas veio o tempo negro e, à força, fez comigo
O mal que a força sempre faz
Não sou feliz, mas não sou mudo
Hoje eu canto muito mais

A referência ao golpe militar aí é óbvia. Mas por incrível que pareça, não é o foco. Não se trata da típica linguagem cifrada da MPB de oposição à ditadura e às voltas com a censura, mas a descrição do efeito destes acontecimentos sobre o eu lírico – ainda que não deixando de lado a ação política e a luta, como os versos finais deixam claro. Esta característica de Belchior imprime sobre toda sua leitura de A Palo Seco seu viés particular. Seu desespero não é tanto pelos rumos do país ou mesmo da América do Sul, mas da própria vida e de sua geração neste cenário de incompreensão. Esta leitura pode a princípio parecer desengajada ou mesmo alienada, e portanto de pouco alcance poético. Ledo engano. Cantar a juventude e sua trajetória, criticamente inclusive, é uma das armas de longo alcance artístico do rock’nroll. Quero uma balada nova falando de brotos, de coisas assim, diz Belchior (em Todo sujo de batom). Smells like teen spirit, diria Kurt Cobain anos depois. Mas no Brasil, a banda que mais se aproximou da capacidade de leitura geracional de Belchior, inclusive com a característica de sua crítica política eventualmente ficar encoberta por ela, foi a Legião Urbana, que não por acaso é responsável pela verdadeira atualização de Como nossos pais que é Pais e Filhos. Muitos paralelos poderiam ser feitos aqui entre Belchior e Renato Russo, incluindo as múltiplas referências literárias espalhadas por suas canções (Belchior, além de dialogar diretamente com Beatles e outras bandas, cita Hemingway, Edgard Allan Poe, Olavo Bilac, e por aí vai. Já o próprio título Pais e Filhos é o da obra prima do escritor russo Ivan Turgenyev). Mas o que mais importa aqui é a visão de juventude de ambos, mesmo algo romântica, e uma forma de cantar seus dilemas que no caso da Legião contribuiu decisivamente para a formação de um público fiel e que se renova, mesmo anos depois da morte de Renato. Pois, como a vida dá voltas, mais adiante uma banda com características próximas – talvez devamos dizer herdadas – da Legião veio interferir novamente na leitura de A Palo Seco.

A característica herdada de Legião pelos Los Hermanos não é tanto a poética ou a forma musical (sim, ambos bandas de rock, mas de características diversas – já tratei um pouco destes aqui), mas a legião (com trocadilho) de seguidores que se identificaram com sua poética… geracional. E são os Hermanos que vão resgatar (palavra que detesto, aliás, que ninguém a tinha sequestrado) A Palo Seco – e segundo eles próprios, partiram da gravação de Belchior, o que faz todo o sentido. A primeira vez que a apresentam em público é num programa chamado Sarau MTV, com um arranjo acústico aproximado do reggae que torna a canção surpreendentemente leve, em contraposição com sua letra densa. Mas a versão acima, apresentada no programa Altas Horas em 11 de maio de 2003 com o próprio Belchior, é surpreendente por outros e melhores motivos. Porque nela, além da visão existencialista que motivou a retomada, a característica crítica e a voz rascante da versão de Ednardo é novamente ouvida, e o desespero existencial é Belchior é respondido. Ednardo é ouvido na voz leve de Marcelo Camelo e em sua guitarra que volta e meia abandona a levada do reggae para se desabrir em peso. E os metais do arranjo ressoam a melancolia da gravação de 1976 no espírito dos fãs dos Hermanos e Legião, que cantaram ironicamente: Deixa eu brincar de ser feliz / Deixa eu pintar o meu nariz (Todo carnaval tem seu fim). Mas a exultação contagiante de Belchior no palco não deixa dúvidas: a geração seguinte sempre redime a anterior, ainda que para incorrer nos mesmos erros mais tarde. Mas há ainda algo, que não é da voz de Ednardo nem de Belchior, que se impõe nesta versão renovada. É o retorno do Palo Seco, o cante. Não o cante em si, sem acompanhamento da guitarra, à capela. Mas a contundência invocada por João Cabral de Melo Neto nos últimos versos de seu poema. Pois João Cabral, o poeta que diziam não gostar de música (e que no entanto descreve tão magnificamente uma forma musical, ainda que nela a expressividade venha paradoxalmente do silêncio que a acompanha), já ao final de cuida de estender o conceito do que descreve:

A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

E é esta contundência, força estética capaz de sobrepujar interpretações em busca de algo mais profundo, que retorna no coro que encerra esta versão conjunta – ou que se faz mais potente, mas na verdade nunca deixou a canção. Pois a frase final de A Palo Seco, com sua melodia iniciada logo na nota mais alta, em três intervalos ascendentes seguidos como facadas – E eu quero é que esse canto – para logo depois descer uma quarta, porém permanecendo suspenso na harmonia – torto feito faca corte – até o fim da frase, até cravar-se finalmente na carne de vocês, este último e quilométrico porém lacônico verso, que vai sendo atrasado ritmicamente em relação ao acompanhamento – este verso, que remete a outros poemas de João Cabral como Uma faca só lâmina, ele por si só contém em si a definição de a palo seco. E esta se faz ouvir, para além de questões políticas ou existenciais. Para além de compreensões ou anállises, como João Cabral gostaria, a pura sensação. O cante. O canto.