O que significa Maracatu de Baque Solto?

O objetivo do presente artigo � descrever e apresentar o maracatu de baque solto e seu reconhecimento como Patrim�nio Cultural do Brasil nos termos do Decreto n� 3.551/2000. Nesse sentido, faremos uma discuss�o acerca do maracatu tanto como express�o cultural, quanto como manifesta��o que opera outras for�as da vida social, aspectos que o reconhecimento como patrim�nio revela, para al�m de sua expressividade cultural conforme apreendida pelo p�blico durante o carnaval, per�odo do ano em que o bem cultural melhor se expressa para a sociedade. O artigo � resultado de pesquisas bibliogr�ficas e de campo realizadas para a elabora��o da disserta��o de Mestrado “O que eu ganho com isso? Desafios da sustentabilidade econ�mica do patrim�nio imaterial a partir do Maracatu de Baque Solto”, defendida pelo autor no �mbito do Mestrado Profissional em Preserva��o do Patrim�nio Cultural do IPHAN em 2020 ().

O Maracatu de Baque Solto, tamb�m conhecido como “maracatu rural”, “maracatu de orquestra”, “maracatu de caboclo”, ou simplesmente “maracatu” e “baque solto”, � uma manifesta��o cultural popular origin�ria da Zona da Mata Norte de Pernambuco. � um bem cultural que chama a aten��o por sua plasticidade, sua m�sica e sua singularidade. Tem sido objeto de estudo de v�rias �reas das ci�ncias humanas e das artes – como a antropologia, a hist�ria, o servi�o social e as artes c�nicas –, o que demonstra seu car�ter poliss�mico, a ponto de despertar interesses cient�ficos e art�sticos de pesquisadores de diversos campos do saber acad�mico. Na antropologia e na hist�ria, notadamente, foram investigados aspectos etnogr�ficos (religiosidades, caracter�sticas culturais, significados simb�licos), trajet�rias hist�ricas e as rela��es com pol�ticas p�blicas de grupos espec�ficos (; ; ; ); nas artes c�nicas deu-se aten��o �s articula��es entre particularidades culturais e aspectos c�nicos, art�sticos e est�ticos (Martins, 2013). O que aproxima muito esses estudos e pesquisas � o fato de concentrarem suas an�lises em determinados grupos, determinadas trajet�rias e experi�ncia de vida de mestres e folgaz�es. Al�m desses, o invent�rio realizado para a elabora��o do Dossi� de Registro do Maracatu de Baque Solto com vistas ao seu reconhecimento como Patrim�nio Cultural do Brasil em �mbito federal (nos termos do Decreto n� 3.551/2000) consiste em fonte das mais v�lidas, tendo em vista a amplitude de grupos pesquisados e as quest�es levantadas, que v�o desde caracter�sticas socioecon�micas das localidades onde est�o situados os grupos, a peculiaridades culturais e problemas e desafios para a sua sustentabilidade e salvaguarda, inserindo e discutindo recomenda��es de a��es importantes para a garantia da continuidade das pr�ticas culturais do maracatu, contemplando propostas de solu��o de problemas que os grupos de baque solto enfrentam. � a partir da descri��o e das recomenda��es do Dossi� que o Iphan e o Estado brasileiro obt�m o conhecimento necess�rio para a atua��o administrativa e jur�dica quanto � preserva��o do Maracatu de Baque Solto.

Focando nos estudos mais recentes, eles analisam, dentro de sua matriz acad�mica, o baque solto como um todo, mesmo que partindo do caso de um grupo em particular, como o Maracatu Estrela de Ouro de Condado (), o Maracatu Rural Cambinda Brasileira (; ), o Maracatu Cruzeiro do Forte () dentre outros trabalhos. H� tamb�m os que analisam o maracatu de modo geral, em contextos mais amplos, como a situa��o dos maracatuzeiros – e da brincadeira – no contexto da luta de classes da regi�o da Zona da Mata Norte de Pernambuco () e as rela��es entre o maracatu de baque solto e o Estado ().

Em finais do s�culo XIX e in�cios do XX, os Caboclos de Lan�a j� eram figuras presentes nos canaviais da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Vers�es sobre origens, por mais relevantes que sejam, n�o substituem o sentido que o bem cultural e a sua for�a simb�lica t�m para os detentores do presente. Sabe-se que, conforme acertadamente aponta , as express�es da cultura popular “s�o, na maioria das vezes, o resultado de m�ltiplas interlocu��es, tens�es e disputas hist�ricas evolvendo (sic) os diversos atores sociais” (p. 2). Assim, o que se convencionou chamar de “Maracatu Rural”, “Maracatu de Baque Solto”, ou simplesmente “maracatu” – como se referem muitos de seus brincantes – “parte mais da observa��o das pr�ticas de seus integrantes e demais elementos que pareciam mais facilmente vis�veis, do que propriamente dos m�ltiplos sentidos e da experi�ncia de seus participantes” (Idem, ibidem).

Juntamente com esses estudos, figura aquele que tentou reunir, de maneira sistem�tica e com foco na poss�vel patrimonializa��o daquele bem, quest�es hist�ricas, culturais, territoriais e documentais acerca do maracatu de baque solto. O Invent�rio Nacional de Refer�ncias Culturais do Maracatu de Baque Solto[5] foi uma pesquisa que durou mais de dois anos; promoveu a reuni�o dos estudos cl�ssicos do tema com vasto levantamento bibliogr�fico, com a atualidade da pesquisa etnogr�fica mediante entrevistas, visitas de campo, debates com detentores e produ��o de consider�vel material fotogr�fico e audiovisual. Teve como objetivos – os de praxe para o INRC – reunir informa��es que possibilitassem formar um discurso patrimonial, a ser analisado pelos t�cnicos do Iphan – em Pernambuco e em Bras�lia – e posteriormente pelos membros do Conselho Consultivo do Patrim�nio Cultural no sentido de torn�-lo Patrim�nio Cultural do Brasil.

2. O baque solto patrim�nio cultural: processos de reconhecimento

A patrimonializa��o de um bem cultural de natureza imaterial �, tecnicamente, instru�da no �mbito do IPHAN, quando se trata de reconhecimento de patrim�nio cultural em n�vel federal. As regras que norteiam tal processo est�o estabelecidas no Decreto federal n� 3.551/2000, que institui o Registro desses bens culturais e cria o Programa Nacional do Patrim�nio Imaterial – PNPI, instrumento de pol�tica p�blica para pesquisa, reconhecimento e apoio e fomento ao patrim�nio imaterial. Os bens culturais de natureza imaterial sofrem, nesse processo, uma classifica��o te�rica, com vistas � defini��o do bem cultural e inscri��o em um dos Livros de Registro. S�o quatro livros: Celebra��es, Formas de Express�o, Saberes e Lugares (). Assim, o processo de pesquisa e identifica��o, bem como de descri��o de aspectos culturais e constru��o de uma narrativa patrimonial buscam a classifica��o do bem cultural em uma das categorias com vistas � inscri��o no Livro de Registro. Tal categoriza��o em geral escapa as defini��es e aos valores sobre os bens atribu�dos pelas pr�prias comunidades detentores, o que instaura uma constru��o de sentido oficial, com o objetivo de reconhecimento patrimonial no �mbito do Estado.

Assim, entendemos o processo de patrimonializa��o a partir da defini��o de patrim�nio cultural da Constitui��o Federal de 1988, segundo o qual:

Constituem patrim�nio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de refer�ncia � identidade, � a��o, � mem�ria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira ().

Compreendemos a patrimonializa��o tamb�m como um projeto de valoriza��o da diversidade cultural, capaz de fomentar, por meio do reconhecimento de elementos e refer�ncias culturais de determinadas comunidades e grupos sociais, desenvolvimento e cidadania (; ).

O processo de Registro do Maracatu de Baque Solto foi aberto no �mbito do Iphan em 2008, com o t�tulo “Encaminha/documenta��o para abertura do processo de Registro no Livro Formas de Express�o do Maracatu Rural/ como Bem Cultural do Brasil de natureza imaterial”. Logo de in�cio percebe-se que a inten��o foi reconhecer o maracatu de baque solto como Forma de Express�o, inscrevendo-o no Livro de Registro de mesmo nome. Conforme o Decreto n� 3.551/2000, em seu Artigo 1�, ser�o inscritos nesse livro “manifesta��es liter�rias, musicais, pl�sticas, c�nicas e l�dicas”. Assim, logo se depreende que os aspectos expressivos do bem cultural foram ressaltados, em detrimento de seus aspectos celebrativos – visto que o bem cultural possui, tamb�m, a nosso ver, uma caracter�stica festiva muito presente.

O primeiro pedido de reconhecimento do baque solto foi promovido pelo ent�o Governador de Pernambuco, Eduardo Campos, em of�cio enviado ao ent�o Ministro da Cultura, Gilberto Gil, no qual menciona, al�m do maracatu rural, o maracatu na��o, o caboclinho e o cavalo marinho como “marco da dan�a popular pernambucana e brasileira”. Em avalia��o t�cnica preliminar sobre a documenta��o entregue pelo Governo de Pernambuco para o pedido de Registro do Maracatu Rural, a equipe t�cnica da Superintend�ncia do Iphan em Pernambuco enfatiza o car�ter h�brido do maracatu de baque solto, resultado da fus�o de diversos elementos da cultura popular da regi�o. O Departamento de Patrim�nio Imaterial do IPHAN (DPI/IPHAN), por sua vez, endossa a vis�o do Maracatu de Baque Solto como Forma de Express�o, embasado na argumenta��o segundo a qual os elementos que se sobressaem no bem s�o aqueles c�nicos, musicais, po�ticos.

Assim, a brincadeira Maracatu de Baque Solto tornou-se patrim�nio cultural. De acordo com o Decreto federal n� 3.551/2000, inscrever um bem cultural nesse livro de Registro implica reconhecer seus aspectos expressivos, c�nicos, l�dicos, que se refletem, no caso do Baque Solto, em seus aspectos pl�sticos – fantasias, cores, manobras, cortejo etc. –, musicais, po�ticos. No entanto, embora tais aspectos s�o os que mais saltem aos olhos do grande p�blico, sobretudo no carnaval, eles se referem a uma parte apenas do que consiste de fato esse bem cultural. Baque Solto � mais que isso: � sentimento de comunidade, � religi�o, s�o rela��es sociais. E tais aspectos s�o revelados no pr�prio processo de patrimonializa��o: o Dossi� que resulta do invent�rio produzido para instru��o t�cnica do processo de Registro traz quest�es que v�o para al�m do maracatu como forma de express�o, as quais est�o enraizadas no cotidiano das comunidades que det�m o bem cultural – os detentores, no jarg�o utilizado no �mbito do Iphan. Tais aspectos ser�o descritos neste artigo.

3. “Botar o maracatu na rua”: caracter�sticas socioculturais do Maracatu de Baque Solto

Essa express�o cultural, resultado de encontros e interpreta��es m�ltiplas, re�ne elementos de m�sica, dan�a, arte, religiosidade, comunidade, sociabilidade, poesia. Brinquedo s�rio dos trabalhadores e trabalhadoras da Zona da Mata Norte de Pernambuco e de bairros perif�ricos de cidades da Regi�o Metropolitana do Recife.

Para os folgaz�es, maracatu de baque solto � brincadeira, folguedo, brinquedo. Tem presen�a marcante na paisagem dos latif�ndios de cana-de-a��car da Zona da Mata Norte de Pernambuco e na Regi�o Metropolitana do Recife, por for�a da imigra��o que o fen�meno do �xodo rural legou para essa regi�o. Apresenta-se durante boa parte do ano, de diversas maneiras: no carnaval, com o cortejo completo, no Concurso de Agremia��es Carnavalescas do carnaval do Recife, e no circuito de polos do Governo de Pernambuco; nas sambadas e nos ensaios, evolui nos terreiros de origem dos grupos e dos detentores, a maioria cortadores de cana.

Historicamente, o maracatu de baque solto surgiu nos momentos de festa dos trabalhadores da cana-de-a��car dos engenhos pernambucanos. Para dan�ar, festejar e sambar, os canavieiros improvisaram ritmos a partir dos pr�prios instrumentos de trabalho. Improvisaram tamb�m poesia, arte que persiste at� os dias atuais. Segundo :

Inicialmente, o maracatu era brincado apenas nos engenhos e – de engenho em engenho – os deslocamentos eram feitos a p�. Seus componentes, durante o carnaval, eram alimentados pelos pr�prios moradores e posseiros, que os recebiam, acomodando a brincadeira nas casas coletivas de farinha. Em suas apresenta��es originais, eles levavam consigo a identidade de pertencimento a uma na��o, uma tribo, perfigurada na bandeira (hoje chamada estandarte), s�mbolo identit�rio do grupo. Essa manifesta��o cultural – simplesmente chamada maracatu (...) – somente come�a a ser enxergada na “rua” (ou seja, pelos moradores das cidades interioranas da Mata Norte de Pernambuco) no in�cio do s�culo XX (p. 3).

Personagens do maracatu como o Caboclo de Lan�a s�o encontrados em relatos j� no final do s�culo XIX. Conforme mem�rias, eles teriam sido conhecidos pelo nome de “mulungus”, isto �, “coisa de caboclo”. Os Caboclos de Lan�a geralmente causavam medo quando apareciam nos povoados e cidades, sozinhos ou em duplas, e n�o raro provocavam arrua�as e brigas entre si – cabe ressaltar que o termo “maracatu” tamb�m significava bagun�a, confus�o ().

Segundo o Dossi� do INRC do Maracatu de Baque Solto, existem cerca de 115 grupos atuantes, espalhados por vinte e quatro cidades, sendo dezesseis na Mata Norte. Com as referidas correntes migrat�rias, que levaram trabalhadores para as cidades da Regi�o Metropolitana do Recife em meados do s�culo XX, o maracatu de baque solto tamb�m passa a se fazer presente em cidades como Camaragibe e Olinda (idem, p. 35-36).

O maracatu de baque solto chegou ao Recife e sua Regi�o Metropolitana devido ao �xodo rural da popula��o dos engenhos canavieiros, a partir dos anos 1930. Bairros como Torr�es (em Recife) e Cidade Tabajara (em Olinda) passaram a abrigar grupos de maracatu. Conforme bem observa , esses bairros, juntamente com outros das periferias de Recife, Olinda e outros munic�pios da RMR abrigam um grande n�mero de maracatus provenientes do interior de Pernambuco. Grupos como o Maracatu Cruzeiro do Forte (Recife) e Maracatu Piaba de Ouro (Olinda) s�o exemplos dessa transforma��o – e resili�ncia – cultural ap�s a migra��o de trabalhadores do contexto da cana.

Na brincadeira do maracatu rural, os participantes ou integram a parte musical/po�tica – Mestre do Apito, Contramestre, Terno e m�sicos de sopro –, ou “vestem figura”, isto �, encarnam um personagem do folguedo. “Figura” � o termo dado pelos folgaz�es aos personagens que comp�em o baque solto, de modo que “vestir figura” � encarnar – palavra que a nosso ver expressa melhor o que eles fazem do que “encenar” – o personagem. Assim, cada integrante possui uma fun��o espec�fica a contribuir com sua figura para a harmonia do brinquedo, a fim de que as apresenta��es ocorram sem “desmantelo”, em absoluta paz ().

Na hierarquia desse bem cultural, quem comanda a brincadeira � o Mestre do Apito: porta-voz do grupo, � a figura que deve dominar o of�cio de poeta. � ele quem ordena as manobras e evolu��es dos demais personagens no cortejo e quem, nas apresenta��es de carnaval, executa as tradicionais marchas de abertura, marchas de sa�da e marchas de chegada. De acordo com , o mestre “ao entoar suas loas instaura o sil�ncio na festividade” (p. 15). Com seu apito e sua batuta – bengala decorada com an�is – ele rege o maracatu, determinando o momento de os folgaz�es e m�sicos pararem para ouvir seus versos, assim como o de retorno da m�sica e das manobras. Fora do per�odo carnavalesco, comanda as outras celebra��es que fazem parte do calend�rio do Maracatu de Baque Solto: � o mestre do apito quem d� as ordens nas festas dos ensaios e das sambadas.

O Caboclo de Lan�a – ou Caboclo de Vara, ou ainda Caboclo de Guiada – � a figura mais ic�nica do maracatu de baque solto; a que representa o bem cultural no imagin�rio popular e nas propagandas tur�sticas – simboliza a identidade do povo pernambucano e seu carnaval multicultural. �, de fato, uma figura exuberante. Tem por fun��o proteger o seu grupo nas apresenta��es, delimitando o espa�o entre o maracatu que representa e o p�blico. � ricamente vestido, em termos visuais: um chap�u alto feito de palha e coberto de papel celofane de diversas cores, de acordo com seu guia espiritual; um len�o que lhe envolve a cabe�a, e no qual � costurado o chap�u; o rosto pintado de vermelho (com uso do urucum); uma gola, desenhada com diversos motivos – de desenhos sim�tricos a bras�es de clubes de futebol, animais, o que a imagina��o mandar fazer, tudo feito com lantejoulas coloridas costuradas em tecido de veludo – que vai do pesco�o at� os joelhos, de largura que ultrapassa os ombros do folgaz�o, decorada nas bordas com franjas coloridas; cal�as chamadas de fofa, que ficam por cima do ceroul�o e s�o feitas de chita com el�stico nas pernas at� a altura dos joelhos, tamb�m decoradas com franjas; mei�es esticados at� a barra da cal�a e sapatos; o surr�o, impressionante aparato de madeira e coberto de l� que fica amarrado pelos ombros e pela cintura �s costas do caboclo e no qual s�o presos chocalhos de boi, em quantidade vari�vel (sempre �mpar, para n�o atrair azar), podendo pesar at� quinze quilos e atingindo a altura das n�degas. Toda a roupa � pensada para as manobras do maracatu, sua beleza, sua sonoridade e o destaque do caboclo de lan�a como guerreiro ().

O Caboclo porta a sua guiada, ou vara, ou lan�a, que � feita de madeira firme (que pode ser de imbiriba ou de quiri), medindo cerca de dois metros de altura, levemente pontuda na extremidade que fica para cima, e decorada em toda a sua extens�o com fitas de pano coloridas. Importante observa��o sobre o caboclo de lan�a � feita por observa��o essa que destaca a apropria��o da figura do caboclo de lan�a para al�m da brincadeira:

[...] na �ltima d�cada, o caboclo de lan�a transcendeu o ambiente origin�rio de sua cultura (ou subcultura) perif�rica e ganhou o palco central das representa��es sociais “t�picas” do imagin�rio pernambucano. Esse fen�meno s� tem raz�o de ser – por hip�tese – em fun��o do largo incentivo motivado pelas pol�ticas p�blicas e pela m�dia local: imprensa escrita, televisiva, publicidade e propaganda oficial (p. 1).

Nesse contexto, o caboclo de lan�a � convertido em �cone da pernambucanidade, juntamente com o passista de frevo, ou o batuqueiro e a rainha do maracatu na��o, em um processo que revela o contato m�tuo entre a cultura popular, a cultura “oficial” – aquela valorizada pelas pol�ticas p�blicas como s�mbolo de identidade territorial – e a cultura de massa. A patrimonializa��o desse bem cultural – e, mais precisamente, a leitura que a pol�tica p�blica federal de salvaguarda desse patrim�nio faz do bem a partir de quando ele se torna oficialmente protegido – coloca um ponto a mais nesse universo intrincado, que se expande para al�m dos momentos da performance da brincadeira e do contexto territorial da maioria dos grupos de maracatu – a regi�o canavieira da Zona da Mata Norte de Pernambuco –, embora se tenha sempre que voltar a ele quando da an�lise do que acomete ao maracatu em termos de pol�tica p�blica. O fato � que, sendo secular, o caboclo de lan�a – e junto com ele o maracatu de baque solto – foi convertido nos �ltimos 30 anos de um personagem marginal da cultura popular para “s�mbolo maior do nosso carnaval que, por extens�o, carregaria em si os tra�os ancestrais de uma alma/cultura genuinamente pernambucana” ().

Os Caboclos de um maracatu representam os guerreiros, e nas apresenta��es ocupam posi��es como se formassem uma tropa. E eles t�m um chefe: � o mestre caboclo. Ele comanda seus guerreiros indo no centro da fila de Caboclos que abre caminho para o maracatu passar: s�o quatro caboclos dispostos nessa fila; em cada lateral, seguem tamb�m filas de Caboclos de Lan�a, protegendo os demais membros do grupo, formando “uma cerca humana de prote��o”, nas palavras de Silva (). O Mestre Caboclo tem a fun��o de comandar a evolu��o dos lanceiros durante a apresenta��o do maracatu: seus movimentos devem ser seguidos por outros caboclos enquanto o grupo manobra. Nas extremidades dos cord�es ficam os Caboclos-Guias, e dando-lhes cobertura, os Caboclos Boca de Trincheira. Em alguns grupos, dois Caboclos de lan�a aparecem ao final do cortejo, fora de linha, aparentemente soltos, mas que na verdade est�o oferecendo cobertura simb�lica para eventuais ataques pela retaguarda (, idem).

No maracatu de baque solto h� um personagem Caboclo, mas que n�o usa lan�a: em seu lugar, um machado; e seu chap�u � um cocar frondoso coberto de penas de pav�o. � o Caboclo Arreiam�, ou Caboclo de Pena. Representa os �ndios no maracatu, a liga��o com as for�as sagradas da natureza.

Fala-se em cortejo para o maracatu porque, assim como seu irm�o maracatu na��o, tem uma corte real. At� os anos 1930, 1940, os maracatus de baque solto n�o possu�am corte: essa tradi��o sempre esteve historicamente ligada ao maracatu na��o, cuja representa��o c�nica � da coroa��o de reis e rainhas de Congo. Mas a partir de exig�ncias da Federa��o Carnavalesca de Pernambuco – FECAPE para participar do concurso de agremia��es do carnaval do Recife, o maracatu da zona da mata, o rural, teve de adotar esse cortejo, nos mesmos moldes do maracatu de baque virado. Os maracatus, com menos visibilidade social � �poca e ainda bastante associados a “coisas de arruaceiros”, de “vagabundos”, necessitando de legitimidade social e pol�tica perante as autoridades, intelectuais e demais apreciadores do carnaval da capital de seu estado, aceitaram essa imposi��o e se adaptaram � nova regra (; ; ). Desse modo, os personagens cortes�os foram sendo consolidados na tradi��o do bem cultural, e alguns de seus componentes passaram a possuir relev�ncia significativa para os sentidos e significados religiosos, espirituais e simb�licos do baque solto, de maneira que sem eles de modo algum um grupo de maracatu pode sair para o carnaval.

Essa corte remete ao imagin�rio do cortejo real franc�s: possui um Rei e uma Rainha; o Pr�ncipe, a Princesa e o Pajem; a Dama do Buqu� e seu Cavaleiro, o Valete, a Dama do Pa�o, os Carregadores do lampi�o e do s�mbolo do maracatu (na maioria das vezes, o objeto ou animal que d� nome ao seu grupo – estrela, chuva, cruzeiro; le�o, cambinda, carneiro, pav�o, pantera, �guia, piaba (peixe de �gua doce), beija-flor, burra, pinguim, gavi�o, camelo) ().

A Dama do Pa�o � encarnada por uma mulher, que deve estar “pura”, ou seja, sem rela��es sexuais e outros interditos religiosos por determinado per�odo. � ela a respons�vel por cuidar da calunga – a boneca sagrada, que representa entidades espirituais protetoras, e est� presente tanto no maracatu de baque solto quanto no maracatu na��o – e por isso tamb�m � conhecida como “Dama de Boneca”. Somente a ela � dada permiss�o – e autoridade – para ter acesso � boneca nos per�odos de apresenta��o. Nessas ocasi�es, a Dama do Pa�o carrega e desfila com a boneca. Por ser a portadora de um elemento importante de prote��o espiritual e religiosidade no maracatu de baque solto, a dama do pa�o � fun��o de grande responsabilidade. Sabe-se que a calunga – boneca que pode ser feita de madeira, ou cera, ou outros materiais – “concentra o poder espiritual do grupo” de maracatu (). Assim, ela contribui para proteger os folgaz�es e impedir mandingas e malfeitos de outros grupos, ou dificuldades que possam ser encontradas no longo trajeto de tr�s dias de viagem durante o carnaval. Por carregar tamanha responsabilidade, a Dama do Pa�o deve ser, portanto, iniciada na Jurema ().

Tamb�m integra o contexto a ala de Baianas. Inicialmente, como eram proibidas mulheres nos maracatus, homens vestiam essa fantasia. Com o passar do tempo, por volta dos anos 1950, mulheres puderam integrar os grupos, e foram naturalmente assumindo esse personagem, assim como o de Rainha (). Essa quest�o levantou, ao longo do tempo, reflex�es e debates em torno da quest�o de g�nero e da participa��o da mulher no baque solto.

O Bandeirista, ou Porta-Estandarte ocupa, tamb�m, posi��o destacada no maracatu de baque solto. � que apresenta o grupo, com seu pend�o, para o p�blico. A bandeira � objeto que carrega intenso significado, pois representa toda a na��o do maracatu: � nela que est�o inscritos o nome, o s�mbolo, o ano e o local de funda��o. � aos seus p�s que os caboclos de lan�a se ajoelham e prestam rever�ncia quando chegam para se juntar ao seu grupo.

Um personagem importante para se pensar sobre os aspectos econ�micos de sustento e sustentabilidade do maracatu de baque solto � a Catita. Geralmente homem vestido de mulher, porta uma cesta e graceja de diversas formas perante o p�blico, na rua, durante as apresenta��es. Vem � frente do grupo, acompanhando a Burrinha, que abre espa�o na multid�o com seu chicote para que o maracatu possa fazer suas manobras. A Catita tem o rosto pintado de preto, sua roupa � simples, leve: vestido. Ela tem por fun��o, junto com o Mateusconseguir os meios materiais – dinheiro, comida e bebida – com os quais os folgaz�es v�o garantir a saciedade de fome e sede no per�odo carnavalesco, sempre marcado por longas viagens. Ela, antigamente, segundo contam com alegria e gra�a os folgaz�es, chegava a roubar as casas dos terreiros onde o maracatu brincava. Pudemos colher relatos que d�o conta de que as catitas iam fazendo gra�a para a multid�o, chamando a aten��o para si; quando o maracatu entrava e come�avam as manobras e m�sicas, ela aproveitava que o povo estava concentrado na apresenta��o, dirigia-se at� os fundos das casas, que geralmente tinham as portas destrancadas – eram tempos de pouca ou nenhuma precis�o de chave, grades ou cadeados para seguran�a do lar – e aproveitava para sair com punhados de farinha, carnes, frutas, tudo o que pudesse encontrar de f�cil alcance. E guardava na cesta, para depois os demais folgaz�es poderem comer, fortalecendo-se depois de um dia de festejos pelos engenhos e ruas, e tamb�m para suportarem mais viagens que o dia seguinte guardava. Atualmente, al�m das brincadeiras e intera��es com a plateia – piadas, abra�os, cantadas em homens acompanhados de suas respectivas, beijos – a Catita pede dinheiro, um gole de cacha�a, uma comida – qualquer coisa que seja de f�cil alcance para o prov�vel doador.

Outros personagens populares tamb�m fazem parte de grupos de baque solto, como a Burrinha, o Mateus, o Bicheiro e o Ca�ador. Figuras que comp�em a realidade sociocultural das popula��es da zona canavieira da Mata Norte de Pernambuco ().

As hist�rias dos indiv�duos e dos grupos de maracatu de baque solto guardam estreita rela��o com o ambiente sociocultural da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Essa mesma rela��o � mantida pelos folguedos populares da regi�o; assim, o maracatu rural est� fortemente vinculado a outras manifesta��es como o coco de roda, a ciranda, o cavalo marinho, bens culturais dos ciclos junino e natalino. Uma explica��o para tal rela��o reside no fato de que a regi�o da Mata Norte, fortemente rural, guardou por bastante tempo certo isolamento social em rela��o � Regi�o Metropolitana do Recife, de modo que essas express�es da cultura popular eram talvez as �nicas formas de lazer e entretenimento das popula��es locais. Os engenhos canavieiros seguiam a conven��o social de reservar lotes de terras para que fam�lias de trabalhadores vivessem no latif�ndio, pr�tica que surgiu com o fim da escravid�o no Brasil. Esse contexto permitiu que se constru�sse e se desenvolvesse uma rela��o t�o visceral dos indiv�duos com a brincadeira do maracatu que, mesmo em contextos fora da Mata Norte e em meio urbano, ela se mant�m viva.

Assim, embora surjam nuances, modifica��es no modo de organizar-se e exibir-se, os maracatus de baque solto oferecem repert�rios culturais identific�veis ao longo do tempo, corroborando a necessidade, at�, de adapta��es, a fim de que se mantenha a vivacidade do folguedo e, consequentemente, persista o car�ter de mem�ria longa desta forma de express�o. � nessa din�mica, portanto, que personagens, e respectivos figurinos, mant�m-se conforme pede o apre�o de folgaz�es pelos conte�dos tradicionais [...] ().

Quanto � composi��o musical, os instrumentos que formam o conjunto do maracatu de baque solto, denominado terno, s�o basicamente os mesmos catalogados pelo pesquisador Guerra Peixe na d�cada de 1950: de percuss�o, gongu�, ganz�, tarol, cu�ca (ou poica, no linguajar local dos detentores), bombo ou surdo; e de sopro, trombone, trompete, saxofone e clarinete. Em alguns poucos grupos, ainda se encontra o instrumento chamado buzina, feito de flandres e que antigamente era tocado pelo mestre tirador de loas; atualmente, � tocado por um dos m�sicos do terno. O terno preenche de m�sica uma po�tica rica e em constante alimenta��o.

A poesia do maracatu de baque solto � feita de improvisos. Claro que existem os sambas antigos, que s�o repetidos por diversos mestres. Mas � visto como um valor dentro do maracatu o fato de os mestres improvisarem o versejar. Nesse sentido, a po�tica do baque solto est� em estreito di�logo com a de outras tradi��es culturais, como o coco, o repente, o cordel e o cavalo marinho (). Uma po�tica, popular, anima a outra. Ali�s, a sintonia entre o baque solto e o cavalo marinho � evidente: muitos brincantes de um folguedo participam do outro; alguns mestres de cavalo marinho s�o lideran�as de maracatus de baque solto, fato notado em pesquisas acad�micas (). A import�ncia da poesia para o baque solto se reflete na exist�ncia de encontros de mestres para desafios po�ticos; como nas sambadas, descritas mais adiante.

O maracatu de baque solto � um folguedo do ano todo. Mas sua culmin�ncia, digamos, ritual�stica � o carnaval. Embora alguns maracatuzeiros afirmem que no carnaval o que os foli�es e turistas veem corresponde a uma amostra pequena do que � o maracatu – e as observa��es de campo mostram que a afirma��o � procedente– � nele que os grupos se apresentam de maneira completa, ou seja, com todas as fantasias, com cortejo, com personagens. Os rituais que perfazem o calend�rio anual do brinquedo s�o, principalmente, a meu ver, a sambada, o carnaval e o carnaval de P�scoa.

A sambada � realizada nos meses que antecedem o carnaval. S�o eventos onde se apresentam “� paisana” os personagens dos maracatus; geralmente abertos ao p�blico, ocorrem tanto nos seus espa�os pr�prios – os terreiros – quanto nas cidades. Consiste, em s�ntese, em um momento onde as habilidades dos mestres de maracatu de caboclos de lan�a s�o postas � prova. Um grupo de maracatu, geralmente o promotor do evento, convida outro grupo para a sambada. Esse convite pode ser compreendido como um desafio, cuja sambada � o palco. Todos os ritos da festa – que, de costume, dura a madrugada inteira – est�o eivados de desafio entre os dois (ou mais) grupos participantes. Em conversas informais que tive com folgaz�es em ocasi�es de sambadas, fui informado que se o grupo convidado chega ao local da festa primeiro do que aquele que a est� organizando, este j� come�a “perdendo”.

Assim se inicia o ritual da sambada: o mestre do maracatu organizador come�a os versos, cantados em marchas, de improviso, incitando os caboclos e demais presentes para que aproveitem a festa e que n�o haja viol�ncia entre os brincantes e folgaz�es. Posteriormente, passa, tamb�m em versos cantados de improviso, a pedir que a plateia e demais presentes forne�am bebida e comida aos integrantes do maracatu. O mesmo faz, posteriormente, o mestre do grupo de maracatu convidado. Cada grupo a seu tempo, ent�o, para a fim de beber e comer, enquanto o outro passa a cantar de improviso, sempre acompanhado pelo terno da brincadeira. Ap�s esses ritos, que duram talvez mais de uma hora, come�am os desafios mais expl�citos. Como sempre, o mestre do grupo organizador n�o pode permitir que o mestre do grupo convidado inicie o desafio, porque sen�o novamente sai “perdendo”. Nesse momento, os versos passam a ser cantados em samba curto, samba comprido, samba de dez ou em galope, e o conte�do passa a ser mais voraz, podendo envolver inclusive insultos pessoais ao mestre “advers�rio”. Acompanhados cada um de seu terno, os mestres seguem improvisando durante toda a madrugada, e os caboclos de lan�a e demais personagens dan�am livremente, executando pernadas, rasteiras, volteios, manobras que nem sempre conseguem executar durante as apresenta��es de carnaval, dado o peso e o tamanho das fantasias, bem como o curto tempo que geralmente t�m as apresenta��es. Essas festas ocorrem sob clima de provoca��es e chistes, onde desafio e camaradagem convivem e configuram o sentido desse complexo ritual. Sobre a din�mica das sambadas, Esteves esclarece ():

Nos dias de sambada, percebe-se que os demais integrantes do maracatu costumam participar gratuitamente e chegar acompanhados de suas fam�lias. Nestas ocasi�es, se re�nem pr�ximo ao botequim montado pelo dono do maracatu ou mesmo em determinados espa�os do terreiro para rever os amigos e conhecidos e sambar maracatu. Antes de serem iniciadas as atividades, observa-se que em alguma sedes h� o costume de serem executadas cirandas, cocos e outros ritmos. Na oportunidade, ocorre tamb�m o recrutamento de novos membros, bem como a inicia��o de algumas crian�as no universo do maracatu, por meio da observa��o dos mais velhos.

As sambadas s�o ocasi�es importantes de repasse de saber e manuten��o e atualiza��o das tradi��es do Maracatu de Baque Solto. Ainda com Esteves ():

Passado certo tempo de samba, sobretudo nos esquentes de terno que antecedem os dias de carnaval (tamb�m chamados de ensaio de carnaval), por vezes, o mestre caboclo passa a conduzir as manobras dos folgaz�es, fazendo com que os caboclos mais experientes tomem � frente dos cord�es e os mais jovens e crian�as sigam seus movimentos, observando e aprendendo a sambar a partir da pr�tica. Nestas ocasi�es, as baianas passam a formar um cord�o interno paralelo ao dos caboclos e os integrantes da corte ocupam uma posi��o central, protegidos pelos dois cord�es.

Conforme esse pesquisador (), quando a festa � promovida no terreiro do maracatu que est� organizando o evento, � o pr�prio dono do maracatu que deve arcar com as despesas para a sua realiza��o, as quais envolvem principalmente bebidas, comidas e pagamento aos folgaz�es. Quando a sambada ocorre no terreiro ou sede de outro maracatu, existe uma esp�cie de “acordo t�cito”, segundo o qual o grupo que est� organizando o encontro deve arcar com parte das despesas tamb�m da agremia��o convidada. A sambada tem um car�ter de competi��o: os grupos competem, por meio dos versos improvisados dos mestres com o desejo de vencer o oponente na sambada. Nessa poesia, acompanhada com entusiasmo pelos folgaz�es, que reagem com gritos de alegria a cada estrofe entoada por seu mestre, h� provoca��es, chistes, perguntas que o oponente dever� responder, revidar, superar.

Em certas situa��es, o dono do maracatu que promove a festa recebe apoio de prefeituras, de pol�ticos como vereadores e deputados, do governo estadual e de outros �rg�os p�blicos. Essa din�mica revela certo car�ter de espetaculariza��o que tem ocorrido em algumas sambadas, fato que coloca um vi�s de empreendedorismo ao evento (). Em sambada realizada em novembro de 2017 em Nazar� da Mata, observamos que havia, inclusive, um locutor que anunciava, em tom triunfal, as chegadas dos maracatus, fazia agradecimentos e interagia com a plateia. Fogos de artif�cio, cobertura policial e banheiros qu�micos tamb�m faziam parte da estrutura da festa, o que geralmente n�o costuma haver quando se trata de um evento mais tradicional. De fato, essa sambada a que me refiro contou com o apoio da prefeitura municipal e da Secretaria de Cultura do governo do estado.

O poder p�blico por vezes contribui financeiramente com o encontro. O governo estadual, a prefeitura ou mesmo pol�ticos prometem, por exemplo, apoio financeiro para contrata��o de �nibus para levar e trazer os folgaz�es, para pagamento ao mestre, ao terno e aos m�sicos, contrata��o de carro de som ou aluguel de amplificadores ou, simplesmente, garantem uma melhor ilumina��o com gambiarras no terreiro, limpeza e capina��o no local onde ser� realizada a sambada ().

Em geral, o dono do maracatu organizador da sambada costuma montar uma venda para arrecada��o de dinheiro por meio da comercializa��o de comidas e bebidas. Parte desse dinheiro vai para pagamento das despesas do evento. Outra forma de arrecadar dinheiro nas sambadas � por meio de homenagens e men��es que os mestres fazem, de forma po�tica improvisada a certas pessoas presentes, as quais devem retribuir, segundo o costume, com dinheiro, ou bebidas, ou comidas para os folgaz�es.

As sambadas terminam, via de regra, ao raiar do dia seguinte, quando o mestre “bate o terno”.

Como uma esp�cie de rito de passagem, a sambada s� se encerra quando o mestre pede para “bater o terno” pela �ltima vez no in�cio da manh� e os folgaz�es retornam todos ao terreiro para a realiza��o das �ltimas manobras. At� que, por fim, podem retornar �s suas casas, prontos para brincar o carnaval ().

No carnaval os grupos costumam desfilar pelos munic�pios da zona da Mata Norte, no Concurso de Agremia��es do Recife e no Encontro Estadual dos Maracatus de Baque Solto de Pernambuco. Nessa ocasi�o os grupos v�o, como dito anteriormente, paramentados, apresentam seu cortejo e suas manobras – nome dado aos passos e movimentos dos personagens – e concorrem entre si por pr�mios. Essa concorr�ncia se d�, especificamente, no Concurso do carnaval do Recife, onde, divididos por Grupos – Especial, Acesso etc. – os grupos desfilam no percurso estabelecido pela Prefeitura do Recife, e recebem notas de jurados que medem o cumprimento de regras espec�ficas, em geral discutidas antes do carnaval por diversas inst�ncias, com participa��o de representantes dos grupos. Os pr�mios s�o em dinheiro, e al�m disso os grupos recebem uma subven��o para participar do Concurso. Nem todos os grupos atualmente existentes dele participam.

Nas cidades do interior, os grupos que desfilam tamb�m recebem subven��o das prefeituras que os convidam. A principal cidade � Nazar� da Mata, onde o encontro de maracatus de baque solto � evento tradicional do carnaval local, e apreciado por numerosa quantidade de pessoas – moradoras da �rea urbana, da zona rural, de cidades vizinhas e turistas.

O carnaval de P�scoa � o evento, o rito, que mostra a vincula��o do bem cultural � f� cat�lica. Segundo o Dossi� do INRC do Maracatu de Baque Solto ():

O Carnaval de P�scoa � uma celebra��o que se d� com almo�o festivo, no domingo de p�scoa, e simboliza o encerramento das comemora��es do ciclo carnavalesco. A principal motiva��o � reunir os folgaz�es, na pr�pria sede ou em algum outro espa�o coletivo, para interagir, confraternizar, celebrar a tradi��o, inclusive a tradi��o crist�.

Trata-se de uma celebra��o de fundo simultaneamente religioso e profano, na qual a m�sica, a dan�a e a poesia do maracatu s�o executadas em agradecimento pelo per�odo carnavalesco, e tamb�m em respeito a uma das datas mais importantes do Cristianismo: a ressurrei��o de Jesus Cristo. A poesia de improviso mais uma vez se faz presente, ao som tradicional das marchas e dos sambas de maracatu. Alguns grupos saem percorrendo ruas e logradouros cujo percurso atende � necessidade de se prestar rever�ncia frente a algum templo cat�lico nas proximidades onde se faz a festa. J� outros festejam no local sem esse percorrer. A festa do carnaval de P�scoa se assemelha � das sambadas, visto que os folgaz�es n�o saem paramentados como no carnaval. Mais uma vez, o carnaval de P�scoa tamb�m � elemento relevante a ser considerado na sustentabilidade do bem cultural. Conforme o Dossi� ():

Caboclos, baianas, catitas, mateus, burra, arreiam� s�o convocados e se integram � comemora��o, o que, por vezes, gera cach� e custos de deslocamento a serem pagos pela agremia��o. E justamente os gastos com a festividade � que t�m sido motivo para a diminui��o da ocorr�ncia. Alguns grupos [...] n�o t�m conseguido recursos para a celebra��o pascal, a n�o ser dos brincantes e de um e outro comerciante.

Quanto ao aspecto religioso, tem-se, nos rituais e nas atividades cotidianas, o respeito e a venera��o ao culto da Jurema, ou Jurema Sagrada, ao Candombl�, e o sincretismo com o catolicismo popular, o que se reflete em diversos aspectos da brincadeira, desde alguns personagens – como o Caboclo de Lan�a e o Caboclo de Pena – �s bonecas, ou Calungas, que s�o revestidas de poder espiritual e s� podem ser carregadas nas apresenta��es pelas Damas do pa�o, �s casas de mestres e brincantes, que apresentam refer�ncias a esses cultos religiosos. Cada grupo de maracatu de baque solto se relaciona de maneira peculiar com a religiosidade, sobretudo a Jurema, e este ponto tem muito de segredo – algumas quest�es n�o s�o expostas para a sociedade em geral, estrategicamente. Certo � que todo grupo deve se proteger espiritualmente, ou estar “cal�ado”, conforme � dito no falar nativo. E isso se faz por meio de rituais da Jurema, do Candombl� (em terreiros que geralmente fa�am tamb�m culto sincr�tico aos mestres e caboclos) ou da Umbanda.

Nas interlocu��es com os detentores do baque solto, o assunto religi�o sempre � mencionado, tratado com defer�ncia, seriedade e orgulho. O respeito aos ritos e obriga��es religiosas � capital para se ter paz e harmonia, para ficar protegido. Ouvimos hist�rias de �nibus que se quebraram em deslocamento para apresenta��es no Recife por causa de um “cal�o” mal feito. Interditos religiosos e o cal�o tamb�m atingem membros folgaz�es, antes e durante o carnaval. Embora se fale bastante no assunto, essa quest�o tem v�rios aspectos e nuances nunca revelados para n�o folgaz�es, ou mesmo para brincantes que n�o se interessem muito por seguir tais rituais. A rela��o com as entidades espirituais faz parte do segredo do maracatu.

Trata-se do preparo religioso que antecede e sucede as apresenta��es, inclusive as sambadas e o per�odo carnavalesco. Essas prepara��es geralmente s�o realizadas por pessoas espec�ficas: o padrinho ou madrinha espiritual da brincadeira, e impedem o “desmantelo” da mesma, ou seja, funcionam como uma prote��o para que n�o ocorram incidentes, brigas ou outros imprevistos durante as festividades. O dono/presidente do maracatu � o respons�vel por intermediar a rela��o entre os folgaz�es e os padrinhos espirituais. O preparo inclui resguardo sexual, banhos � base de ervas, ora��es, agua��es, fuma�as de cachimbo e charuto, matan�a de animais, velas, etc. ().

Al�m das pessoas, a prote��o espiritual se destina tamb�m a determinados objetos, notadamente a bengala do mestre do apito, o cravo que vai na boca do caboclo de lan�a e a Calunga (boneca) da Dama do Pa�o. Detalhes sobre rituais de “cal�o” desses objetos n�o s�o revelados. Na verdade, observa-se que apenas o interdito sexual � assunto tornado mais corrente. Ele consiste na proibi��o que os folgaz�es t�m de manterem rela��es sexuais alguns dias antes e durante o carnaval ().

Nesse aspecto religioso, conv�m que todo grupo de maracatu tenha seu padrinho ou madrinha, que pode ser um pai-de-santo ou uma m�e-de-santo, ou outra autoridade religiosa. Eles � que executam os “trabalhos” religiosos, em locais que variam da sede do maracatu � casa do dono/presidente do grupo, em terreiros (diante dos pejis) e tamb�m em lugares abertos, como encruzilhadas. Tanto o local quanto o trabalho a ser feito vai depender da finalidade do servi�o, do objetivo que se quer buscar (). N�o existe per�odo do ano certo para a realiza��o dos rituais, embora o m�s preferencial para muitas seja o de agosto, conforme o INRC do Maracatu de Baque Solto (idem, 2013, p. 82). Isso envolve tamb�m a rivalidade dos grupos, que se expressa religiosamente em rituais das “linhas de esquerda”. Conforme Maria Alice Amorim ():

Os rituais realizados em cemit�rios, ou encruzilhadas, s�o aqueles chamados pelos adeptos das religi�es afro-brasileiras de “rituais de esquerda”. Podem ser oferendas a orix�s como Exu, Pomba-Gira (Exu f�mea), Ians� de Bal� (Ians� de Cemit�rio) ou a Mestres como, por exemplo, Vira Mundo e Malunguinho. Os preparos de cemit�rio podem indicar a rivalidade existente entre grupos.

4. Considera��es finais

O processo de patrimonializa��o do Maracatu de Baque Solto, em seu objetivo de classific�-lo como Forma de Express�o para fins de reconhecimento patrimonial, revela, por outro lado, que o bem opera aspectos culturais diversificados em uma consolidada rede de sentidos. O bem cultural, como realizado pelos detentores, possui muito mais nuances e sentidos, articulando uma complexa rede de rela��es sociais n�o percebidas pelo p�blico que o vislumbra nas apresenta��es do carnaval. Visto por eles como “brincadeira”, “folguedo”, “brinquedo”, ap�s o processo de Registro – com suas etapas de pesquisa, mobiliza��o social, e todo o rito burocr�tico e pol�tico para o reconhecimento por parte do Estado – o maracatu torna-se “patrim�nio cultural imaterial”, mediante o t�tulo de Patrim�nio Cultural do Brasil conferido pelo IPHAN com base no Decreto n� 3.551/2000.

Para botar um maracatu na rua, � necess�rio sacrif�cio: seja de tempo, diante da temporalidade e das obriga��es do labor do dia a dia, formal ou n�o; seja da renda, diante das necessidades de sustento pr�prio e da fam�lia; seja do trabalho, diante da din�mica de manuten��o do bem cultural. Botar um maracatu na rua envolve paix�o. Esta � sentida desde a inf�ncia, e acompanha a vida dos sujeitos no espa�o e no tempo. Agora, o Estado ao reconhecer o maracatu como parte constitutiva do patrim�nio cultural brasileiro, soma-se a esses esfor�os e, tamb�m, ao amor dos detentores para a manuten��o da tradi��o.

O que significa baque solto?

Brincadeira popular que ocorre durante as comemorações do Carnaval e no período da Páscoa, tem como personagem central o Caboclo de Lança e compõe-se por dança, música e poesia, e está associado ao ciclo canavieiro da Zona da Mata Norte de Pernambuco, especialmente, e às áreas sob sua influência cultural.

Qual a origem do Maracatu de Baque Solto?

O maracatu rural, também chamado de baque solto, teve início em meados do século XIX. A dança é mais influente no município de Nazaré da Mata, situada na zona da mata de Pernambuco. O ritmo foi desenvolvido por agricultores e atualmente homenageia a luta dos trabalhadores rurais.

Qual é a proposta do Maracatu de Baque Solto?

É um movimento ritual para inibir a reação de um possível inimigo. No entanto, no Maracatu de Baque Solto, há um caboclo que não usa lança. Em suas mãos, um machado, e sua cabeça é ornada com um grande cocar de penas. É o caboclo Arreiamá, também chamado de Tuxau.

O que simboliza o Maracatu?

[Brasil: Pernambuco] [ Etnografia ] Dança folclórica de origem afro-brasileira, em que um cortejo carnavalesco, representando personagens históricas (rei, rainha, embaixadores, ministros, vassalos, escravos, cortesãos), bailam ao som de percussão.