O texto nos apresenta novas possibilidades de compreendermos a relação da arte com a ciência

Resumo:

O artigo analisa o desenvolvimento da relação existente entre arte, ciência e filosofia no pensamento do jovem Nietzsche. Para tanto, recorre-se especialmente à consulta dosFragmentos Póstumosentre os anos de 1872 a 1875, possibilitando destacar os seguintes pontos: primeiro, a descoberta da filosofia pré-platônica como exemplo de conciliação das forças artística e científica e, segundo, a contribuição desses escritos para observância emHumano, demasiado humano(1878) da tipologia do “médico da cultura”, cuja função, similar a dos filósofos jônicos, será a de restaurar no mundo moderno a harmonia das mesmas pulsões, garantindo a manutenção de uma cultura elevada.

Palavras-chave:
Arte; Ciência; Médico; Nietzsche; Pré-platônicos

Abstract:

The article analyzes the development of the relationship between art, science and philosophy in the thinking of young Nietzsche. Therefore, it is especially necessary to consult thePosthumous Fragmentsbetween the years 1872 to 1875, making it possible to highlight the following points: first, the discovery of pre-Platonic philosophy for example conciliation of artistic and scientific forces and, second, the contribution of these writings to observance inHuman, all too human(1878) of the typology of the “doctor of culture”, whose function, similar to that of the Ionian philosophers, will be to restore in the modern world the harmony of the same drives, ensuring the maintenance of a high culture.

Keywords:
Art; Science; Medical; Nietzsche; Pre-Platonic

Introdução

Embora notemos nos Fragmentos PóstumosNIETZSCHE, F. W. Fragmentos póstumos (1875-1882). Tradução de Luis E. de Santiago Guervós. v. I. 2. ed. Madrid: Tecnos, 2010. a vasta quantidade de registros por vezes soltos e aparentemente herméticos, de toda forma possuem inegável auxílio no entendimento das origens do pensamento nietzschiano. Identificamos a existência de variações contidas nesses escritos póstumos, dificultando assim apontarmos uma linha interpretativa que nos ofereça o seguro entendimento das muitas passagens existentes nos cadernos. Contudo, apesar das dificuldades, esses fragmentos resultam no recomendável instrumento que pode nos levar ao esclarecimento de alguns pontos-chave da filosofia do jovem Nietzsche, como a trajetória do seu pensamento, desde as obras mais recentes, demonstrando, portanto, a transitoriedade das ideias outrora vinculadas à arte e metafísica trágicas e aquelas dos anos posteriores, quando começam a dar sinais do seu vínculo maior com as ciências.

Para entendermos melhor esse percurso, é importante voltarmos aos primeiros anos de Nietzsche, quando era professor de filologia na Universidade da Basileia. Como explica Santiago Guervós (2010GUERVÓS, Luís E. de Santiago. Ciencia y creatividad enfrentadas. Las posibilidades del arte. In: NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos (1869-1874), V. 1. Trad.: Luis E. de Santiago Guérvos. Madri: Tecnos, 2010, p. 39-55., p. 35-36), durante aquele período, o filósofo e também filólogo alemão passou a reconhecer as debilidades da ciência filológica, incapaz de assentar novas bases à cultura e à formação por ele pretendidas. Diante disso, ao longo dos seus estudos, a tentativa de precisar a correlação entre arte, filosofia e ciência era então de buscar o suporte suficiente para as pesquisas filológicas. Desde o começo da sua atividade professoral, Nietzsche esteve convicto de que os estudos clássicos do seu tempo traziam problemas de incompatibilidade frente à realidade da cultura moderna em que estava inserido. Apesar de a ciência trazer as contribuições da história e das ciências naturais, de toda forma restava a carência da contribuição estética, responsável pela apreensão daquilo que as características objetiva e sistemática da racionalidade ou das experimentações científicas não davam conta. A força libertadora da arte e da poesia moviam o estilo de vida na Antiguidade grega, tornando-se modelo e interesse de reinserção na cultura alemã, conforme defendido por Nietzsche e também outros pensadores como Goethe, Schiller e Winckelmann.1 1 A passagem que bem comprova isso está em o NT. Nela, Nietzsche nos conta que “conviria que alguma vez se pesasse, diante dos olhos de um juiz insubornável, em que tempo e em que homens o espírito alemão se esforçou mais vigorosamente por aprender dos gregos; e se admitirmos com confiança que esse louvor único deveria ser atribuído à nobilíssima luta de Goethe, Schiller e Winckelmann pela cultura, haveria em todo caso que acrescentar que, desde aquele tempo e depois das influências imediatas daquela luta, tornou-se cada vez mais fraca, de maneira incompreensível, a aspiração de chegar por uma mesma via à cultura e aos gregos. Para não precisarmos duvidar inteiramente do espírito alemão, não deveríamos extrair daí a conclusão de que, em algum ponto capital, tampouco aqueles lutadores conseguiram penetrar no âmago do ser helênico nem estabelecer uma duradoura união amorosa entre a cultura alemã e a helênica?” (GT/NT, 20, KSA 1.129-132)

Diante da inconsistência percebida entre a arte e a ciência, persistia a seguinte pergunta: como pensar um novo sentido de formação [Bildung] em condições de promover a revitalização da cultura? Apesar das contradições da ciência filológica junto às inquietudes existenciais, Nietzsche sustenta sua convicção de que a arte trágica é o único modo possível de iluminar as partes mais obscuras da ciência. Mas como fazer ao mesmo tempo arte e ciência? De início, o filósofo declara, desde os primeiros escritos, a relevância da postura artística diante daquilo que mantém os limites rigorosos da postura científica (GUERVÓS, 2010GUERVÓS, Luís E. de Santiago. Ciencia y creatividad enfrentadas. Las posibilidades del arte. In: NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos (1869-1874), V. 1. Trad.: Luis E. de Santiago Guérvos. Madri: Tecnos, 2010, p. 39-55., p. 40). Logo, a alternativa encontrada capaz de contrapor os excessos de uma ciência excessivamente acadêmica não podia ser outra senão a via estética. E, desse modo, vemos os primeiros esboços metafísicos contidos em alguns dos fragmentos póstumos darem início uma nova articulação entre arte, ciência e filosofia disposta a decifrar a força responsável pelo espírito criativo do homem, ou melhor, o tratamento aos impulsos que brotam da vida. Nietzsche (GUERVÓS, 2010GUERVÓS, Luís E. de Santiago. Ciencia y creatividad enfrentadas. Las posibilidades del arte. In: NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos (1869-1874), V. 1. Trad.: Luis E. de Santiago Guérvos. Madri: Tecnos, 2010, p. 39-55., p. 40) defende haver nesses impulsos algo anterior a qualquer consideração científica e lógica da realidade - são como uma espécie de guia do comportamento humano e das tendências, levando-nos à ideia daquilo que rotulamos como conhecimento e verdade. Trata-se de pulsões alojadas no interior do indivíduo, adquirindo valor especial antecedente, portanto, à razão e à ciência - não sendo, por isso, estranho pensarmos no uso do sentido estético como meio adjacente para entendermos esses impulsos e sua tarefa de conciliar o homem com a natureza

A ciência leva ao conhecimento sistêmico e metódico enquanto a arte é a expressão da vida com o poder de superar as limitações do saber científico, descobrindo a multiformidade desta vida através do drama escondido sob a aparência das formas racionalizadas da filosofia socrático-platônica. No entanto, é preciso salientar sobre o risco de qualquer equívoco na falsa semelhança da pulsão apolíena com a filosofia de Sócrates, responsável unicamente pelo exacerbamento da racionalidade e a culminância da ciência moderna. Outrossim, conciliar a frieza da razão e da lógica, pertencentes ao apolíneo, que alimenta a ciência objetiva junto à tendência irracional e artística do dionisíaco, é a tarefa titânica assumida pelo filósofo quando anunciou a possibilidade deste movimento científico-artístico, conforme veremos nas próximas linhas.

Arte, ciência na filosofia pré-platônica

Nos fragmentos póstumosNIETZSCHE, F. W. Fragmentos póstumos (1869-1874). Tradução de Manuel Barrios e Jaime Aspiunza. v. II. 2. ed. Madrid: Tecnos 2008. de 1872 e 1873, Nietzsche apresenta sua reavaliação sobre a relação entre filosofia e cultura. Embora nessa época ainda preservasse a tese da cultura grega enquanto modelo de força [Kraft] revitalizadora para a cultura alemã, o filósofo acabaria se dando conta do privilégio destinado à arte em prejuízo da ciência. Em vista dessa constatação, havia a necessidade de repensar o lugar da filosofia, agora na função de mediadora, o que o levou às influências materialistas de Friedrich Albert Lange. O contato de Nietzsche com A história do materialismo de Lange nos leva a crer na sua crescente proximidade com as ciências naturais e o positivismo. Podemos mensurar o poder desta influência através do gradativo abandono do filósofo da metafísica schopenhauriana e da metafísica de artista vinculada ao pensamento wagneriano. Desse modo, entramos numa nova fase da filosofia nietzschiana, disposta a revisar a difícil conciliação da arte com a ciência. Assim, “a filosofia nunca pode ter, em relação com uma cultura, uma importância fundamental, mas unicamente uma importância secundária” (NF/FP 23[14] 1872-1874, KSA 7.544-545). Ora, isso significa vermos a filosofia como forma de saber secundária diante da cultura, levando os indivíduos a questionarem a função do filósofo no âmbito da própria cultura.

Dispostos a entender isso melhor, notamos nos escritos póstumos o reforço de Nietzsche à cultura grega enquanto sua fonte inspiradora. É nesse intuito que vemos a filosofia pré-platônica assumir o papel incontestável na elaboração de uma variedade de interesses e de possibilidades filosóficas diferenciadas. Em alguns momentos, os sistemas filosóficos contidos na Filosofia jônica parecem estar de acordo entre si, já durante outros, aparentam enorme contradição - isso de certa maneira nos permitiria aproximá-los em alguns aspectos da filosofia nietzschiana. Tanto o estilo nietzschiano quanto o pré-platônico possuiriam demasiada complexidade, tornando-se formas de contraponto ao dogmatismo em suas diferentes épocas, sendo, inclusive, admitido pelo filósofo alemão que a ordem cronológica dos gregos pudesse ser entendida por sistemas e não subdivididos em escolas, conforme a ideia tradicional como os mesmos costumam ser estudados (NF/FP 23[14] 1872-1874, KSA 7.544-545).

Além dos estilos plurais e eventualmente contraditórios, destacamos ainda a similaridade encontrada em Nietzsche e nos pré-platônicos acerca do embate entre as forças antagônicas da arte e da ciência. Semelhante a Tales de Mileto e Demócrito, os demais filósofos da natureza tiveram a preocupação de conter o poder imagético da consciência mítica recorrendo à abordagem natural, conforme encontrada no jônico Tales e no atomista Demócrito. De outra maneira, os filósofos Anaximandro, Empédocles e Heráclito se esforçaram em conter o instinto do saber científico contra o mito realizando, então, uma filosofia de caráter artístico. É nesse sentido que visualizamos o ambiente agonístico dos pré-platônicos: de um lado, o uso da ciência e, do outro, o uso da arte, tornando-se forças díspares e ao mesmo tempo mútuas - algo que precisamente possibilitou interditar a metafísica e suas consequências sobre a cultura grega.

Reforçando um pouco mais o argumento nietzschiano, o filósofo deve ser aquele com o poder de colocar-se tanto a serviço da ciência quanto da arte. Alguém que, sendo capaz deste poder, aprende então a conter o instinto do conhecimento da verdade, comumente expresso pelo saber científico, e também de dominar o instinto artístico mediante o uso dos conceitos da própria ciência - motivo este pelo qual Nietzsche considerava os pré-platônicos como os precursores de uma reforma dos gregos (NF/FP 6 [18] verão de 1875, KSA 8.104-105). Vale mencionar o quanto o pensador alemão via no estilo desses antigos filósofos gregos as condições necessárias para engendrar o “filósofo do futuro”, segundo ele um protetor da cultura ou uma espécie de guardião contra todas as transgressões.

Ao retomarmos a afirmação referente a irrelevância da filosofia enquanto fundamento para a cultura, devemos entender que, mesmo não estando diretamente ligada ao povo, esse conhecimento não deixa de ter o seu valor [Wert] no momento em que se coloca “contra o dogmatismo das ciências; contra a confusão de imagens e religiões míticas na natureza; contra a confusão ética devido às religiões” (NF/FP 23[45] 1872-1874, KSA 7.558-559). Fundamentalmente antidogmático, o conhecimento filosófico não pode gerar uma cultura, por isso resta apenas ao filósofo a tarefa de “prepará-la; ou conservá-la; ou moderá-la” (NF/FP 23[14] 1872-1874, KSA 7.544-545). Portanto, embora a filosofia não constitua o fundamento último da cultura, não há como negar a sua tarefa essencial de estabilizar as forças artísticas e científicas.

Outra prova da admiração de Nietzsche pelo estilo pré-platônico é encontrado em A filosofia na época trágica dos gregosNIETZSCHE, F. W. A Filosofia na época trágica dos gregos. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 2005. . Percebemos a precisa correlação entre a arte, a ciência e a filosofia quando o filósofo alemão apresenta:

A filosofia grega parece começar com uma ideia absurda, com a proposição: a água é a origem e a matriz de todas as coisas. Será mesmo necessário determo-nos nela e levá-la a sério? Sim, e por três razões: em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas; em segundo lugar, porque o faz sem imagem e fabulação; e, enfim, em terceiro lugar, porque nela, embora apenas em estado de crisálida, está contido o pensamento: “tudo é um”. A razão citada em primeiro lugar deixa Tales ainda em comunidade com os religiosos e supersticiosos (arte), a segunda o tira dessa sociedade e no-la mostra como investigador da natureza (ciência), mas em virtude da terceira, Tales se torna o primeiro filósofo grego. (PHG/FTG 3, KSA 1.813)

“A essência [Wesen] da filosofia está de acordo com o seu fim” (NF/FP 23[45] 1872-1874, KSA 7.558-559). Isso significa entendê-la como uma forma de conhecimento com o poder de variar sempre de acordo com a necessidade, estando em alguns momentos mais próxima da arte ou, em outros momentos, mais próxima da ciência. Pois, “não há um elemento comum, ora é ciência, ora é arte” (NF/FP 23 [8] 1872-1873, KSA 7.540), uma vez que a intermediação filosófica situada entre os dois termos não pretende dar nenhuma satisfação ao instinto do conhecimento, mas sim o de portar-se perante aquilo que esteja sempre a favor da vida, tornando-se uma força superior de existência. Podemos atribuir a esse caráter antidogmático a capacidade especial do conhecimento filosófico de se apresentar às vezes de maneira estética ou de maneira sistemática, de forma que aquilo responsável por determinar a sua forma será a sua finalidade. A filosofia precisará atuar mais próxima da ciência sempre quando precisar conter os avanços dogmáticos da consciência mítico-religiosa, a exemplo das filosofias de Tales e de Demócrito. Porém, numa outra situação, poderá atuar mais próxima da arte, contendo, por conseguinte, os avanços do dogmatismo científico, a exemplo das filosofias de Heráclito, de Empédocles e de Anaximandro.

Ao assumir diferentes formas dispostas a entender as exigências da cultura, a filosofia torna-se ao mesmo tempo uma forma de saber da qual não existe em si mesma. Num sentido estrito, a tarefa do filósofo consiste em preparar e preservar os elementos mais preciosos da cultura, já que “a filosofia, que não tem de modo algum existência em si mesma, é parte destes elementos. Colorida e preenchida conforme a época” (NF/FP 23[9] 1872-1874, KSA 7.541). Dessa maneira, entendemos o motivo da filosofia pré-platônica conseguir se apresentar para os gregos algumas vezes sendo arte e outras sendo ciência. Nietzsche confessa a existência de ambiguidade quando nota “grande embaraço, se a filosofia é uma arte ou uma ciência. É uma arte em seus fins e em sua produção. Mas ela tem em comum com a ciência o meio, a representação em conceitos. É uma forma de arte poética. - Não se pode classificá-la: por isso devemos inventar uma nova espécie e caracterizá-la” (NF/FP 19[62] 1872-1874, KSA 7.439).

Nessa ocasião, o filósofo alemão considera fundamental para o advento de uma cultura superior [höhere Cultur] a repressão contra o instinto do conhecimento. Na realização desse feito, era preciso pensar nos meios adequados capazes de permitir a um povo dominar o desenfreado instinto do conhecimento através da imaginação. Mas, afinal, por qual motivo dominar o instinto do conhecimento? É fundamental recordarmos o propósito nietzschiano em O Nascimento da TragédiaNIETZSCHE, F. W. O Nascimento da Tragédia, o Helenismo ou Pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. de, grosso modo, subverter a imagem tradicional usualmente vista na história da filosofia sobre a passagem da consciência mítica para a consciência filosófico-científica. Ao nos aprofundarmos nessa análise, notamos a acusação de Nietzsche a respeito da perda da pulsão dionisíaca provocada pelo fortalecimento da racionalidade argumentativa e científica, ocasionando o enfraquecimento da força vital, outrora contida nos rituais dionisíacos e na filosofia pré-platônica. Há no jovem filósofo alemão o interesse em revelar as causas do adoecimento da cultura moderna juntamente com o ambicioso propósito de recuperá-la mediante a instauração de uma nova filosofia que, além da ciência, soubesse agora combinar a energia vital e criadora manifesta dentro da força artística.

Até o momento, o nosso propósito tem sido mostrar pelos fragmentos póstumos o quanto a ideia de formação [Bildung] e da cultura no pensamento nietzschiano souberam alterar a mudança dos pesos entre arte, ciência e filosofia. Todavia, assimilarmos de maneira assertiva as motivações dessa alteração depende do prévio entendimento acerca do caráter híbrido pelo qual a filosofia nietzschiana se apropria na intenção de atuar enquanto arte ou de atuar enquanto ciência. Embora a volatilidade da filosofia permitisse a Nietzsche transitar entre essas duas formas de saber, é preciso vê-la distinta da ciência naquilo que concerne à sua forma e à sua finalidade. É quando essa diferença em relação à ciência se acentua que a filosofia deixa de estar próxima dela para então estar próxima da arte. Embora os conhecimentos filosófico e científico possuam semelhanças no tocante à utilização dos meios e dos conceitos para diferenciação entre as formas e os fins, é mister compreendermos que a posição da filosofia sobre o tema da verdade e do conhecimento é o que de fato deve determinar o propósito do discurso, o que, à vista disso, implicará na sua forma. Em suma, vale reiterar que “a ciência aprofunda o curso natural das coisas, mas não pode nunca comandar o homem. Simpatia, amor, prazer, desprazer, elevação, esgotamento, tudo isso é ignorado pela ciência. O que o homem vive e experimenta deve ser explicado de alguma maneira; e com isso avaliá-lo” (NF/FP 6 [34] verão de 1875, KSA 8.111-112).

Contrariando o viés dogmático do cientificismo acadêmico, obcecado pelo impulso de conhecimento [Trieb des Wissens], a filosofia nietzschiana persegue outra forma de verdade, obtida através da produção artística de uma visão de mundo [Weltanschauung], considerando a criação de conceitos no começo desse procedimento. Tal como os antigos filósofos, o discurso filosófico, quando devidamente vinculado ao discurso científico, se desfaz do interesse pela busca do instinto de verdade, pois, para o filósofo, o interesse maior torna-se a construção de mundo [Weltconstruktion] pela ajuda da arte, ao invés da perseguição da forma de conhecimento puro e verdadeiro expresso no dogmatismo da ciência. Dentre os diversos exemplos, insistimos na filosofia antiga, manifesta em pensamentos como o de Tales de Mileto. Se, por ora, as ideias do filósofo jônico conseguem propor dentro de um caráter natural a água como a arché, percebemos, no mesmo instante, a existência de um poder imagético, aparentemente contrário, com o poder suficiente de conter o exagerado instinto do saber pelo uso da tendência artística também característica do seu pensamento.

A partir da filosofia pré-platônica, o parágrafo anterior pode nos revelar a perspectiva de um embate identificado nas forças antagônicas da arte e da ciência. Devido a esse jogo de forças, notamos a precisa matriz grega servindo como parâmetro para a elaboração dos conceitos filosóficos do pensador alemão. Nada tão exemplar quanto os pré-platônicos, que superaram o dogmatismo científico e religioso ao recorrerem a um plano estético capaz de conceber uma nova interpretação à realidade. Nesse sentido, ciência e arte, embora antagônicas, estariam unidas a serviço da vida quando mediadas pela filosofia, pois estão a serviço do homem para conhecer e também para criar. Os pré-platôncos podiam “sentir de maneira mais intensa a dor universal: da mesma maneira que cada um dos antigos gregos expressa uma necessidade: aí, nesta falha, introduz o seu sistema. Constrói o mundo dentro dessa falha” (NF/FP 19[23] 1872-1874, KSA 7.423). Apesar da ambiguidade da filosofia e da arte, Nietzsche deixa clara as atribuições competentes a cada uma: ao filósofo, conhecer as necessidades e, ao artista, a produção daquilo que precisa.

Para Nietzsche, as forças do conhecimento e da criação precisam estar combinadas numa mesma pessoa, a exemplo dos antigos pensadores gregos. Isso significa um novo tipo de pensador, cuja função será a de reunir as características estéticas e científicas, permitindo identificar na filosofia pré-platônica uma relação agonística no período trágico grego. No entanto, quais seriam as vantagens deste novo estilo de pensamento? Semelhante ao exemplo anterior do filósofo de Mileto, caso agora comparássemos a filosofia de Demócrito com a física contemporânea, obviamente seria preciso destituir todo o valor científico do filósofo atomista. Não obstante, a validez filosófica ainda estaria preservada uma vez creditado, não o valor científico, mas unicamente o profundo valor estético da sua criação. Sabiamente, Demócrito e os demais filósofos anteriores a Platão souberam construir um pensamento atemporal graças à pulsão do saber orientado não apenas pelo parâmetro científico, mas também pelo impulso artístico.

“Não existe nenhuma filosofia especial, separada da ciência: em um caso como em outro se pensa do mesmo modo” (NF/FP 19[76] 1872-1874, KSA 7.444). Interpretando essa citação, isso demonstra que tanto o conhecimento filosófico quanto o científico apresentam impulsos similares, tornando-os em verdade pouco diferentes no modo de pensar. Ainda assim, há uma certa diferença entre eles, considerando que a filosofia mostra seu rigor ao selecionar aquilo que para ela é merecedor de tornar-se conhecido, ou seja, “o pensamento filosófico é especificamente da mesma natureza que o pensamento científico, mas se referindo em especial a coisas e a assuntos grandes” (NF/FP 19[83] 1872-1874, KSA 7.447). Dessa forma, o filósofo consegue através da pulsão estética conter o instinto de verdade da ciência, conduzindo-a para outras finalidades que estejam em melhor consonância com a vida.

A crítica de Nietzsche a respeito do problema da cultura moderna encontra seu remédio na arte. Trata-se de dominar o impulso de verdade irrefreável da ciência pelo poder da pulsão artística. Todavia, cabe a respeito desse entendimento certa prudência no interesse de compreendermos adequadamente essa consideração, não como uma sentença responsável por erradicar de vez a ciência, porém, apenas mantê-la submissa aos desígnios da filosofia: “não se trata de destruir a ciência, mas de dominá-la” (NF/FP 19 [36] 1872-1874, KSA 7.428-429), afirma Nietzsche. Tal noção retoma a filosofia pré-platônica quando, de maneira habilidosa, utiliza a ciência para reprimir o dogmatismo dos mitos e, ao mesmo tempo, utiliza a arte para reprimir os impulsos da verdade científica - eis o remédio contra o problema da modernidade:

O domínio da ciência já não se produz mais senão pela arte. Trata-se de juízos de valor sobre o saber muito. Tarefa imensa e dignidade da arte nessa tarefa! Ela deve recriar tudo e recolocar totalmente sozinha a vida no mundo. Do que é capaz, são os gregos que o mostram: se não os tivéssemos tido, nossa fé seria quimérica. (NF/FP 19 [36] verão de 1872 KSA 7.428-429).

Nietzsche atribui ao filósofo a missão de conduzir, com rigor, o seu saber aos temas de natureza estética e moral do ser humano. Havendo o descumprimento dessa funcionalidade, essa filosofia cairia no propósito desenfreado pela verdade, tornando-se “uma ciência cega” por pretender o saber a todo custo. A ciência sem qualquer orientação do saber filosófico resulta numa perseguição tola e desmedida da verdade. Porém, estando junto da filosofia, a ciência garantiria a salvação graças à intervenção do impulso artístico, revelado em seu “pathos da verdade”, quando concebida através da arte uma verdade eterna. Razão pela qual é preciso entender que “lutar por uma verdade e lutar pela verdade são coisas completamente distintas” (NF/FP 19[106] 1872-1874, KSA 7.454). Uma coisa é o desejo de alcançar de maneira determinada a verdade; outra coisa é criar uma verdade de modo permanente: “O filósofo busca também agora, no âmbito em que dominam as religiões, o efetivo, o que permanece, no sentimento do eterno jogo mítico da mentira. Ele quer uma verdade que permaneça. Para tanto, estende a novos âmbitos a necessidade de convenções sólidas de verdade” (NF/FP 19[230] 1872-1874, KSA 7.492).

Semelhante à consciência mítico-religiosa, a consciência filosófica almeja um tipo de verdade resistente ao tempo, sendo autoconstruída sob a constante dinâmica da ilusão e da mentira. Isso demonstra o quanto a tarefa filosófica procura dar novos rumos ao sentido da verdade, tendo o apoio da arte ao invés de eliminá-la. É nesse aspecto que podemos visualizar outro tipo de característica pertencente à filosofia nietzschiana, concernente à capacidade de acolher a multiplicidade das coisas sobre a ideia de unidade. Portanto, durante o impulso artístico, o filósofo obtém a capacidade de abarcar a multiplicidade do vir-a-ser, enxergando-a dentro do princípio da totalidade. O mundo enquanto criação filosófica é também uma verdade que irradia e enobrece tanto os sentimentos artísticos como morais do homem, tornando-se um tipo de verdade da qual o filósofo acredita ser digna de eternizá-la. Assim, diante desta multiplicidade do vir-a-ser [Werden], os homens passam a depender da crença numa verdade permanente, precisando então da ajuda do filósofo, haja vista ser este o único com o poder [Vermögen] de combinar a racionalidade e o impulso artístico capazes de eternizar a verdade.

A verdade resultante das combinações da razão e do impulso artístico em nada se assemelha ao desejo desenfreado da verdade puramente científica. A partir dessa revelação, a filosofia torna-se algo de suma relevância para a cultura, já que ao definir seus feitos de modo grande [Große], o filósofo revela sua habilidade de converter a pluralidade das ações humanas a uma unidade coesa. Desta feita, qualquer coisa considerada como grande será também eternizada em cada manifestação humana quando elevada moralmente. Sob esse prisma, Nietzsche define o filósofo como um legislador quando cria novos valores e fornece as contribuições necessárias ao desempenho da cultura. Em suas próprias palavras, “a cultura só pode partir da significação central de uma arte ou de uma obra de arte. A filosofia preparará involuntariamente a visão de mundo dessa obra de arte” (NF/FP 23[14] 1872-1874, KSA 7.544-545).

Porém, o que leva o homem a esse desejo desenfreado pela verdade? Como em Verdade e mentira no sentido extra moral, Nietzsche, no fragmento 29 [7] no verão-outono de 1873 (KSA 7.623), explica a verdade como algo de bom e belo, mas que carece constantemente da ilusão. Em síntese, representa a combinação de realizações humanas supervalorizadas pelo poder das palavras, dando, nesse interim, a impressão de ser um produto derivado de alguma força transcendente e universal. A origem do instinto de verdade humana é incerta, mas isso não importa, contanto que exista o cumprimento da obrigação de segui-la fielmente, ainda que seja uma mentira forjada tendo somente a vontade de atender aos interesses dos costumes enraizados numa cultura há longo tempo. Surge então um sentimento que, apesar da origem mentirosa, acabou sendo internalizado dentro dos homens a ponto de os fazerem achar todos os seus juízos e valores como certos e verdadeiros.

A ciência trabalha na tarefa de armazenar todos os conceitos por ela elaborados - essa é a forma como consegue explicar os aspectos essenciais da realidade pertencentes a um povo e a sua cultura. Isso depreende o esforço em promover a inteligente junção da criatividade artística com a inventividade e a circunspecção do saber científico. Tarefa bem difícil a de conciliar essas forças, considerando o ser humano possuir a irrefreável tendência de permitir-se enganar, quer seja pelos excessos do mito ou da ciência, acreditando cegamente nas diferentes narrativas que normalmente lhe convencem a aceitá-las enquanto realidade. Nesse caso, quem poderia hoje manusear essas forças aparentemente díspares, tal como fizeram os pré-platônicos? Após seguirmos pela trilha dos fragmentos póstumos, encontramos, em Humano, demasiado humano, o tipo do “médico da cultura” [Kulturarzt], empenhado em evitar os delírios da metafísica, bem como o ceticismo desencadeado pelos exageros da ciência.

O médico da cultura

A inserção do tema o “futuro do médico”2 2 Esclarecemos que o tipo do “médico da cultura” já se apresenta em obras anteriores a 1878, embora vejamos maiores explicações sobre o seu papel de revitalização da cultura especialmente em Humano, demasiado humano. revela a urgência de ascenderem homens superiores, a fim de diagnosticar e remediar a cultura, aprendendo a reconhecer suas diferentes fases e evitando os males do adoecimento e da depauperação. No aforismo 243 de Humano, demasiado humano, o argumento se inicia com a defesa da superação das crendices e das superstições vindas dos chamados “pastores da alma" [Seelsorger]. Diante do exposto, não parece exagero inferirmos que tais críticas estariam endereçadas à filosofia socrática, bem como toda a corrente metafísica. Resistente a essa tradição, o médico da cultura deve possuir eloquência o bastante para atingir o coração das pessoas; ser alguém cuja virilidade consiga afugentar a covardia, além da flexibilidade e diplomacia empenhadas a conciliar as causas daqueles que precisam ou podem doar alegria. Outra peculiaridade condizente ao seu serviço é o poder de reunir os artifícios e as habilidades de várias classes profissionais, a exemplo da sutileza do agente policial e a discrição e compreensão dos mistérios da alma características do advogado. Em suma, o médico da cultura é o benfeitor da sociedade, o constante estimulador do espírito da alegria e da fecundidade; é o homem que espanta os maus pensamentos, as armadilhas e as más intenções. Essa é a tarefa do filósofo: como curador dos doentes torna-se responsável pelo surgimento de “uma aristocracia do corpo e do espírito, eliminando todos os tormentos espirituais e remorsos da consciência: apenas assim o ‘curandeiro’ se transforma em salvador, sem precisar fazer milagres nem se deixar crucificar” (MAI/HH 243, KSA 2. 203).

Aspirando ao advento da cultura superior, também é fundamental em Humano, demasiado humano a correlação das forças artística e científica, razão pela qual Nietzsche concebe o médico da cultura. A missão desse tipo será a de resistir e combater a falsa erudição do seu tempo, contendo “os efeitos bárbaros do impulso do saber” [Wissenstrieb]. Caso as forças estejam em desarmonia, tornar-se-ia inviável a preservação da cultura por conta de o curso do desenvolvimento humano acabar sofrendo gravíssimos danos relativos à perda do interesse pelo prazer e pela verdade. Se, por um lado, o excesso do saber científico trouxe consequências lastimáveis como o enfraquecimento da pulsão estética, por outro, ignorar de vez a ciência traria problemas relacionados ao erro, às ilusões e às fantasias. Nos primeiros escritos do filósofo, constatamos a relevância artística alinhada ao sentido da formação [Bildung] enquanto modo de estabelecer os limites da ciência. O papel da formação esteve sobreposto ao desse conhecimento, mas sem jamais querer abandoná-lo. Pouco diferente daquilo que os pré-platônicos fizeram, cabe pensarmos o papel do novo filósofo sendo o de alguém cuja função similar ao do médico saiba diagnosticar e combater os problemas do mundo conciliando as forças da arte e da ciência.

No entanto, essa apropriação às ciências apontaria rumo alguma contradição quando Nietzsche estivera próximo de uma arte metafísico-trágica? No contexto de Humano, demasiado humano é possível acreditarmos no abandono da pulsão artística em proveito da supervalorização do método científico? Obedientes ao escopo daquilo que até aqui apresentamos, respondemos que não, pois essa apropriação demonstra unicamente a conveniência de maior inclinação à ciência enquanto modo de superar as visões dogmática e teleológica provenientes da metafísica. Ao seguirmos o aforismo 251, o papel da ciência futura estará ligado ao fundamento da pesquisa - mas, certamente, isso não será tudo. Ciente dos riscos do homem contrair os sentimentos da tristeza ou da desilusão, uma vez lançadas as suspeitas na direção da metafísica e da religião, Nietzsche preocupou-se em elaborar a tese das duas câmaras, ou seja: “Dar ao homem um cérebro duplo, como que duas câmaras cerebrais, uma para perceber a ciência, outra o que não é ciência; uma ao lado da outra, sem se confundirem, separáveis, estanques; isto é uma exigência de saúde” (MAI/HH 251, KSA 2.209). É preciso dominar uma fonte de energia ao passo da existência de outra força disposta a controlá-la. Com base nisso, notamos a continuidade da tese, outrora apresentada nos fragmentos póstumos, acerca do controle do impulso do saber: “as ilusões, parcialidades, paixões, devem ser usadas para aquecer, e mediante o conhecimento científico deve-se evitar as consequências malignas e perigosas de um superaquecimento” (MAI/HH 251, KSA 2.209).

O trabalho realizado pelo médico ou filósofo da cultura [Philosoph der Kultur] só conseguirá prevalecer no momento em que forem superadas de vez as crendices das curas milagrosas. Para tanto, a educação [Erziehung] é a chave para a desconstrução dos falsos preceitos, encalacrados há vários séculos pela tradição metafísico-religiosa. Tendo isso por critério, Nietzsche no aforismo 242 considera que a educação só ganhará força algum dia quando abandonar a crença num deus e na providência divina. O grave são os homens persistirem no credo de uma educação milagrosa, por isso a exigência da acuidade, a fim de examinarmos cuidadosamente os diferentes casos da vida humana, concluindo não haver milagre em nenhuma das nossas descobertas. Em condições parecidas, declara o pensador que vários indivíduos parecem ser perenes, mas a pessoa capaz de ser salva torna-se normalmente mais forte, porque suportou as mais difíceis situações por intermédio de uma inabalável força inata: essa é forma como se explicam os milagres. Porém, uma educação imune às investidas das crenças milagrosas precisa levar em consideração os seguintes questionamentos:

Primeiro, quanta energia é herdada? segundo, de que modo uma nova energia pode ainda ser inflamada? terceiro, como adaptar o indivíduo às exigências extremamente variadas da cultura, sem que elas o incomodem e destruam sua singularidade? - em suma, como integrar o indivíduo ao contraponto de cultura privada e pública, como pode ele ser simultaneamente a melodia e o acompanhamento? (MAI/HH 242, KSA 2.202-203)

Conforme apontado, a resposta parece estar na correlação entre Bildung, cultura e ciência. O equilíbrio das forças artística e científica, tratado na tese das duas câmaras e também desempenhado pelo médico nietzschiano, fornece os cuidados à cultura. Nesse contexto, percebemos quanto o filósofo alemão revela maior atenção à cultura comparada ao indivíduo, conforme demonstrado no Fragmento Póstumo 3 [I] 159 do verão-outono de 1882 (KSA 10.72). Nas palavras de Nietzsche: “nos indivíduos, a loucura é rara - mas nos grupos, partidos, povos, épocas, é a regra: e por isso os historiadores não têm falado da loucura até hoje. Mas chegará o tempo em que os médicos escreverão a história”, levando em consideração a capacidade de dosarem sabiamente as forças do sentimento artístico e do espírito da ciência. Pois, apesar da postura científica ser a guia da fase de Nietzsche em 1878, de modo a distinguirmos a função daquilo que seja ciência daquilo que não o é, já no aforismo 31 de Humano, demasiado humano observamos a necessidade do ilógico, ou melhor, a certeza da ilogicidade enquanto complemento da condição humana. Assim, as paixões e os desejos expressos na linguagem da religião e da arte são também aquilo que empresta valor à vida, de sorte que nenhum homem consegue extirpar tais coisas sem causar dano a si próprio. Afinal, “mesmo o homem mais racional precisa, de tempo em tempo, novamente da natureza, isto é, de sua ilógica relação fundamental com todas as coisas” (MAI/HH 31, KSA 2.51).

Não seria demais supormos a respeito do médico da cultura algum tipo de experimento realizado pelo próprio filósofo. Uma boa evidência para acreditarmos nisso é encontrada nos escritos posteriores como Ecce HomoNIETZSCHE, F. W. Ecce Homo. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. . De maneira autobiográfica, Nietzsche, nessa obra, relata seus problemas de saúde que o obrigaram a deixar a cátedra na Universidade da Basileia. A confissão de sua fraqueza fisiológica, destacando as dores de cabeça e o comprometimento da visão, acompanhada de grande debilidade do sistema gástrico intestinal. Em resumo, problemas que o fizeram autodenominar-se um décadent, assumido por ele mesmo nas seguintes palavras: “da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence - este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso” (EH/EH, Por que sou tão sábio, KSA 6.266). Entretanto, diferentemente, na primeira seção do capítulo “por que sou tão sábio”, está clara a reviravolta ao vê-lo de maneira otimista contrapor-se aos relatos descritos no escrito anterior. As causas dessa extraordinária recuperação estavam na escolha das medicações corretas contra os “estados ruins”, logo obtendo resistência contra qualquer abatimento, tomando a si mesmo em mãos e curando a si igualmente.

Pois atente-se para isso: foi durante os anos de minha menor vitalidade que deixei de ser um pessimista: o instinto de autorrestabelecimento proibiu-me uma filosofia da pobreza e do desânimo... E como se reconhece, no fundo, a vida que vingou? Um homem que vingou faz bem aos nossos sentidos: ele é talhado em madeira dura, delicada e cheirosa ao mesmo tempo. Só encontra sabor no que lhe é salutar; seu agrado, seu prazer cessa, onde a medida do salutar é ultrapassada. Inventa meios de cura para as injúrias, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece. De tudo o que vê, ouve e vive forma instintivamente sua soma: ele é um princípio seletivo, muito deixa de lado. Está sempre em sua companhia, lide com homens, livros ou paisagens: honra na medida em que elege, concede, confia. Reage lentamente a toda sorte de estímulo, com aquela lentidão que uma larga providência e um orgulho conquistado nele cultivaram - interroga o estímulo que se aproxima, está longe de ir ao seu encontro. Descrê de infortúnio como de culpa: acerta contas consigo, com os outros, sabe esquecer - é forte o bastante para que tudo tenha de resultar no melhor para ele. - Pois bem, eu sou o oposto de um décadent: pois acabo de descrever a mim mesmo (EH/EH, Por que sou tão esperto, KSA 6.267).

Na interpretação de Marton (2018MARTON, Scarlett. A morte como instante da vida. Curitiba: Pucpress, 2018., p. 895-896), Nietzsche, ao longo da vida, esteve à procura de ambientes e situações em condições de lhe oferecer maior bem-estar. Essa procura o fez buscar não somente fontes de estudos como juntamente a isso formas de alimentação, lugares e condições climáticas propícias ao seu estado de saúde. Alguém que, devido ao interesse de tornar a própria vida num experimento, acabou transformando seus problemas de saúde em problemas filosóficos. Ainda em Ecce homoNIETZSCHE, F. W. Ecce Homo. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. , no capítulo “Humano, demasiado humano”, seção 4, o filósofo declara nunca ter sido tão feliz como foi nas épocas mais doentias e dolorosas da sua vida, dando, além da fase de Humano, demasiado humano, outros exemplos, como do tempo em que escreveu AuroraNIETZSCHE, F. W. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad.: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2016. e O andarilho e sua sombra. Certamente, não é o caso de analisarmos de maneira contraditória essa declaração, mas de a vermos como a confissão de alguém cujos momentos de maiores dores físicas favoreceram o retorno a si mesmo, conciliando o próprio espírito e, desse modo, alcançando “uma suprema espécie de cura.”

O bom médico é aquele capaz de curar a si mesmo, obtendo condições de curar os demais - “Médico, cura-te a ti mesmo” (NF/FP 29 [213] verão-outono de 1873, KSA 7.714). Praticamente a mesma frase é encontrada em Assim falava Zaratustra, “Da virtude dadivosa, 2” (KSA 4.100) quando Nietzsche escreve “médico, ajuda a ti mesmo: assim ajudarás também teu doente”. Outra passagem sobre o médico está em AuroraNIETZSCHE, F. W. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad.: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2016., no aforismo 134, no qual identificamos a orientação de uma postura para alguém que verdadeiramente queira tornar-se um homem dedicado aos interesses da humanidade. Alguém que, além de aprender a conhecer e a atenuar o sofrimento, também deve ter a tarefa de evitar o sentimento da compaixão, motivo, para Nietzsche, causador das nossas debilidades. Para o filósofo, o médico realmente interessado em “servir à humanidade em qualquer sentido, terá de ser muito cauteloso para com tal sentimento (compaixão) - ele o paralisa em todos os instantes decisivos, atando seu conhecimento e sua mão solícita e sutil” (M/A 134, KSA 3.128).

O interesse na busca desse tipo forte de espírito perpassa as diferentes publicações do filósofo alemão. Se na Terceira Extemporânea e nas Conferências percebemos sua maior inclinação a arte trágica, na fase de Humano isso assume outra perspectiva, de caráter histórico, por isso inteiramente desvinculada dos preceitos metafísicos. Nesse caso, quem seria esse homem de raríssima força? Segundo Nietzsche, trata-se daquele com o poder de pensar de maneira atípica, contrariando o esperado, tendo por base a sua origem, seu meio, sua posição social e função. Alguém desprendido das opiniões alheias, que, no decorrer do curso da própria formação, enxerga o mundo com interesse, aprendendo o lado instrutivo de uma coisa e indicando o ponto em que, utilizando-a, pode completar uma lacuna do seu pensamento ou confirmar uma ideia. Alguém que “anda entre os homens como um naturalista entre as plantas, e percebe a si mesmo como um fenômeno que estimula fortemente o seu impulso de conhecer [Wissenstrieb]” (MA/HH 254, KSA 2.211).

Embora as contribuições do médico-filósofo pareçam valiosas para a preservação da cultura superior [höhere Cultur], Nietzsche chama atenção para os riscos de surgirem no seu lugar os falsos adoradores. Homens superiores são apenas bons exemplos, aqueles capazes de demolirem as superstições e o dogmatismo ao invés de serem cultuados como salvadores do mundo. Muitos enganadores creem saber penetrar na essência do mundo, mesmo destituídos da ciência, presumindo manifestar seu poder de compreensão acerca dos mistérios da humanidade e do mundo. As consequências disso a longo prazo seriam: “o sentimento de irresponsabilidade, a crença de nos estar agraciando com o seu trato, uma raiva insana frente à tentativa de compará-lo a outros, ou de estimá-lo inferior e trazer à luz as falhas de sua obra” (MAI/HH 164, KSA 2.154). Problemas que tendem a abalar as raízes da sua força a ponto de transformá-lo num hipócrita. Nesse sentido, é melhor tomarem consciência da verdadeira origem das suas forças, compreendendo tratar-se de qualidades puramente humanas. Como consegui-las? Através da energia incessante, da dedicação determinada a certos fins, de grande coragem pessoal e também ter a sorte de uma educação em condições de lhe oferecer os melhores mestres, modelos e métodos.

Em síntese, ao desenvolver a noção de médico filósofo, Nietzsche consolida o diagnóstico da vida moderna, objetivando nesse ponto a cura dos males da cultura. Isso viabiliza as chances da construção de pensamentos singulares, atuantes na luta contra o dogmatismo e a metafísica. Homens semelhantes ao médico nietzschiano, eficientes no fortalecimento da cultura quando negam a moralidade dos costumes e todo o resto opressivo da tradição. Para tanto, é necessário dirigir o saber científico, porém, sem nenhuma intenção de dominá-lo, mas de simplesmente invertê-lo de tal forma que seja suficiente de desfazer-se do instinto de “verdade”. Diante desse novo panorama, compete ao filósofo do futuro determinar o valor da ciência de forma que seus resultados estejam sempre a serviço da vida. Mas, para tal feito, ressaltamos a importância do jogo entre as duas forças antagônicas da arte e da ciência, restabelecendo, por corolário, a mesma força [Kraft] da qual os pré-platônicos possuíam no tempo em que combinaram nessa formação agonística os impulsos necessários para elevarem a vida através da construção de uma cultura superior.

Conclusão

Após elucidarmos a nova condição da ciência, depreendemos que o gradativo abandono de Nietzsche em relação à arte metafísico-trágica se fez como previsto ao tratar-se de parte daquilo que denominamos como sendo a sua “filosofia do experimento [Versuch]”. Isso nos leva a uma posição seguramente oposta à ideia de uma simples incoerência superficialmente levantada por qualquer intérprete mais desatento. Nesse aspecto, asseveramos que o caráter experimental do pensamento nietzschiano que nos leva até a fase de Humano, demasiado humanoMEDRADO, Alice. Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano. São Paulo: Cadernos Nietzsche, n. 29, p. 293-308, 2011. é resultado de um processo gradual, maduro e bem elaborado, conforme analisamos através da contextualização dos vários fragmentos de 1872-1875.

É nesse sentido que concluimos a indissociabilidade entre a cultura superior e a Bildung nos escritos nietzschianos. Diante dessa constatação, é improvável admitirmos alguma cultura sem o apoio de um autêntico projeto educativo, disposto a ignorar a concepção cientificista largamente difundida no cultura moderna. Assim sendo, Nietzsche entende os termos da cultura e da educação como sinônimos de “adestramento seletivo” e da “formação de si” [Bildung], mostrando com isso a dependência de uma cultura elevada a partir do cumprimento de uma rigorosa disciplina em condições de viabilizar a autoeducação dos homens. Diante do exposto, seria instaurada uma espécie de contraponto ao modo servil de ensino no qual a cultura moderna acabou ocupando. Mas como desenvolver esse projeto? Conforme vimos, a instrução artística seria o modo de revitalizar a cultura alemã, já que a pulsão artística, aliada à ciência, tornar-se-ia capaz de controlar o “instinto desenfreado de conhecimento”, evitando, destarte, os riscos de uma educação dissociada do interesse pela vida.

No fragmento 5 [25] da primavera/verão de 1875 (KSA 8.46-47), o filósofo afirma que a meticulosidade de um cultivo antecede a necessidade de uma grandeza cultural, precisamente abordada entre os gregos antigos: “Lá onde algo de grande aparece e dura pouco, podemos observar antes uma elevação diligente, por exemplo, nos gregos. Como foi que tantos homens entre eles alcançaram a liberdade?” Isto posto, se a afirmação nietzschiana de início nos remete à perspectiva de uma educação limitada, devemos, em seguida, notar o interesse do alargamento pela concepção de cultivo, levando em consideração as conclusões mais permanentes da história da cultura sobre o corpo humano. Porém, aqui já nos parece suficiente afirmarmos em virtude deste e dos demais fragmentos trabalhados neste artigo, indícios de uma reivindicação acerca de uma nova postura científica somada à arte, à filosofia e à vida enquanto projeto revitalizador do homem e da cultura, que se tornou ainda mais evidenciado em Humano, demasiado humanoMEDRADO, Alice. Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano. São Paulo: Cadernos Nietzsche, n. 29, p. 293-308, 2011. .

Referências

  • GUERVÓS, Luís E. de Santiago. Ciencia y creatividad enfrentadas. Las posibilidades del arte. In: NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos Póstumos (1869-1874), V. 1. Trad.: Luis E. de Santiago Guérvos. Madri: Tecnos, 2010, p. 39-55.

  • MARTON, Scarlett. A morte como instante da vida Curitiba: Pucpress, 2018.

  • MEDRADO, Alice. Ciência como continuação da arte em Humano, demasiado humano São Paulo: Cadernos Nietzsche, n. 29, p. 293-308, 2011.

  • NIETZSCHE, F. W. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe (KSA), 15 vols. (Organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari), Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1988.

  • NIETZSCHE, F. W. A Filosofia na época trágica dos gregos Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 2005.

  • NIETZSCHE, F. W. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad.: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de bolso, 2016.

  • NIETZSCHE, F. W. Cinco prefácios para cinco livros não escritos Tradução de Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2000.

  • NIETZSCHE, F. W. Fragmentos póstumos (1875-1882). Tradução de Luis E. de Santiago Guervós. v. I. 2. ed. Madrid: Tecnos, 2010.

  • NIETZSCHE, F. W. Fragmentos póstumos (1869-1874). Tradução de Manuel Barrios e Jaime Aspiunza. v. II. 2. ed. Madrid: Tecnos 2008.

  • NIETZSCHE, F. W. O Nascimento da Tragédia, o Helenismo ou Pessimismo Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

  • NIETZSCHE, F. W. Ecce Homo Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

O que a ciência tem a ver com a arte?

É preciso uma grande dose de criatividade para fazer descobertas científicas e, frequentemente, a arte é uma expressão (ou um produto) do conhecimento científico. Considere a ciência por trás da mistura das tintas nas proporções corretas, ou a criação de perspectiva em um desenho.

Qual o objetivo central do texto lido?

II. O texto lido tem como principal objetivo persuadir o leitor a adotar um ponto de vista sobre um tema específico.

Qual o motivo de o autor ter optado por escrever o texto utilizando esse tipo de linguagem?

O motivo do autor do texto ter utilizado a variante linguística própria daquele grupo social é a priorização do estabelecimento de uma comunicação efetiva com aquele agrupamento, que faz uso de determinada variação.

Que efeito de sentido o uso da terceira pessoa provoca no texto?

Resposta verificada por especialistas. O uso da terceira pessoa tem como efeito de sentido distanciamento do autor e maior objetividade.