Por que o escritor francês se refere aos indígenas chamando os de nossos tupinambá

Compreender as práticas antropofágicas e atribuir-lhes uma lógica dentro do sistema sócio-cultural, libertando-as, deste modo, de qualquer preconceito, social e religioso, que dimensiona o índio, promíscuo, violento e antropófago, conduz este trabalho, numa primeira parte, a reflectir sobre o “Outro”. Numa segunda parte, reflecte-se sobre a análise dos testemunhos dos viajantes – como Pêro Vaz de Caminha –, missionários – Azpilcueta Navarro, Manuel da Nóbrega, Rui Pereira – e exploradores – André Thevet, Claude D’Abbeville, Jean de Léry, José de Anchieta e Hans Staden. Analisam-se, igualmente, várias leituras literárias que o tema suscitou nos intelectuais do “Século das Luzes”, convocando escritores portugueses, brasileiros e estrangeiros – entre os quais este estudo dá um ênfase especial a Pinheiro Chagas, Gonçalves Dias, José de Alencar e Bernardo Guimarães. Através da consideração de questões como o etnocentrismo e a exterioridade, causa do estranhamento e diferença com que nos deparamos ao direcionarmos a nossa atenção para a construção estética e mítica do índio, avançamos para o entendimento e compreensão da antropofagia sob o olhar dos escritores brasileiros. Alguns autores, numa atitude moderna de recusa dos mitos criados pelos exploradores, missionários e viajantes europeus, demonstram que os ‘selvagens americanos’ são detentores de uma civilização e História próprias, com um sistema de valores, costumes e crenças, que escaparam a quem primeiro os encontrou. Finalmente, através da releitura dos textos históricos, cartas e obras de literatura de viagem, redescobrimos o índio e assistimos à recriação da imagem do nativo ameríndio, na qual o “Outro”, que apresenta uma antropofagia altamente ritualizada, é considerado e tratado literariamente como digno de ser a génese da nação moderna que é o Brasil. Palavras-Chave: antropofagia, índio, literatura, identidade, rito, mito.

Em geral, os nossos tupinambás ficam bem admirados ao ver os franceses e os outros dos países longínquos terem tanto trabalho para buscar o seu arabotã, isto é, pau-brasil. Houve uma vez um ancião da tribo que me fez esta pergunta: “Por que vindes vós outros, mairs e perós (franceses e portugueses), buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra?”

LÉRY, J. Viagem à Terra do Brasil. In: FERNANDES, F. Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1974.

O viajante francês Jean de Léry (1534-1611) reproduz um diálogo travado, em 1557, com um ancião tupinambá, o qual demonstra uma diferença entre a sociedade europeia e a indígena no sentido

O texto de Jean Lery demonstra a diferença da cultura indígena para a europeia em que determinam diferentes usos para produtos, força de trabalho e economia. Enquanto para os indígenas a madeira do pau-brasil só poderia servir para subsistência, na Europa era um artigo de luxo que se transformaria no primeiro produto de exploração em larga escala pelos portugueses que impulsionou a colonização brasileira.

Por que o escritor francês se refere aos indígenas chamando os de nossos tupinambá
Jean de Léry,
Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil, autrement dite Amerique.

De tempos em tempos, tenho a oportunidade de rever Alfred Siemens, professor emérito da Universidade da Columbia Britânica no Canadá (apesar de viver a maior parte do ano no México). Conversar com ele é ter acesso às histórias de um geógrafo apaixonado pela América Latina e às andanças de um indivíduo sempre aberto, na tradição de seu mestre Carl Sauer, à riqueza surpreendente das formas culturais estabelecidas pelos seres humanos em sua peregrinação pelos diferentes biomas do planeta. Humanismo e sensibilidade ecológica são não coisas tão opostas quanto alguns imaginam.

Numa ocasião, por exemplo, Siemens resolveu, sem qualquer planejamento prévio, viajar para o ponto mais distante da Amazônia brasileira aonde chegasse algum avião comercial. Pousando em Cruzeiro do Sul, na fronteira do Acre com o Peru, dirigiu-se imediatamente para uma escola secundária, onde imaginava ser capaz de encontrar alguém que falasse inglês ou espanhol. No dia seguinte, já acompanhado de um tradutor, saiu em busca de conhecer as terras e gentes do Vale do Juruá…

Por que o escritor francês se refere aos indígenas chamando os de nossos tupinambá

Por que o escritor francês se refere aos indígenas chamando os de nossos tupinambá

Faço esta introdução para falar de uma bela fórmula elaborada por meu amigo canadense. No título de um dos seus artigos, ele indicou a necessidade de “extrair ecologia” de antigos documentos do México colonial. Uma proposta que, em sua aparente simplicidade, representa um verdadeiro achado metodológico.

Seria anacrônico ler os documentos antigos como se eles estivessem expressando o que hoje chamaríamos de questões e preocupações ecológicas. O enfoque ecológico é essencialmente moderno, apesar de temas, problemas e percepções da relação com a natureza estarem presentes na cultura humana desde os primórdios de nossa trajetória como espécie. É perfeitamente possível, no entanto, ler documentos antigos na chave da compreensão ecológica contemporânea, garimpando informações e insights que possam ser úteis à nossa reflexão atual. Trata-se de uma dupla busca: pelo significado destes documentos para aqueles que os elaboraram, em seu momento histórico específico, e também para nós, que hoje podemos lê-los com o objetivo de extrair dados que iluminem nossos dilemas e nossas perguntas. Este jogo entre o entendimento do passado e as perguntas do presente, aliás, está no coração da prática historiográfica.

“O enfoque ecológico é essencialmente moderno, apesar de temas, problemas e percepções da relação com a natureza estarem presentes na cultura humana desde os primórdios de nossa trajetória como espécie.”

A literatura brasileira colonial é riquíssima em materiais que estimulam a reflexão ecológica. Podemos extrair inúmeras informações sobre ecossistemas, biodiversidade, padrões de exploração de recursos e ocupação do território, etc. Em determinados momentos, além disso, é possível encontrar abordagens que ajudam a iluminar questões essenciais da contemporaneidade. Ou seja, que fazem o observador atual, no contexto de sua leitura a posteriori, meditar sobre os dilemas do mundo moderno, cuja constituição está diretamente ligada à expansão colonial dos europeus pelos diversos continentes.

Impasse cultural

Encontramos um exemplo desse tipo no capítulo XIII do magnífico livro “Viagem à Terra do Brasil”, de Jean de Léry, publicado na França em 1578. Léry (1534-1611), como se sabe, fez parte do grupo de 14 calvinistas que vieram de Genebra para participar da tentativa de criar uma colônia francesa na Baía da Guanabara (a famosa “França Antártica” dirigida por Villegagnon). Esteve aqui entre fevereiro de 1557 e janeiro de 1558, revelando-se depois um notável observador da natureza local e dos costumes indígenas.

Em determinado momento do capítulo XIII, que trata “Das árvores, ervas, raízes e frutos deliciosos que a terra do Brasil produz”, Léry transcreve um formidável diálogo entre ele e um personagem que identificou apenas como sendo “um velho” do grupo Tupinambá, com o qual os franceses estabeleceram boas relações de intercâmbio. No contexto desta conversa, estabeleceu-se um instante de profundo estranhamento e impasse cultural. Um instante de surpresa, onde a fala de dois indivíduos pertencentes a culturas completamente distintas, que estavam se chocando em um momento pontual do Grande Choque humano e ecológico que marcou a gênese da chamada “globalização”, tornou possível a emergência de perguntas cruciais sobre o sentido último de tudo aquilo: a expansão dos europeus e a formação da economia-mundo capitalista.

Falando com base na sua própria visão “econômica”, que hoje chamaríamos “de subsistência”, onde o vínculo entre produção e consumo possui uma visibilidade imediata, o Velho Tupinambá começa a levantar perguntas que, no limite, chegam a balançar as certezas civilizadas e soberbas de Léry. Agindo como uma espécie de “Eremildo, o idiota” do século XVI, o Velho coloca perguntas simplórias e objetivas, que começam com o seguinte questionamento: “por que vindes vós outros, franceses e portugueses, buscar lenha de tão longe para vos aquecer? Não tendes madeira em vossa terra?”. Léry responde que certamente tinham madeiras, mas não daquela qualidade, já que as usavam para fazer tinta e não para queimar. Ao que o Velho retruca: “E porventura precisais de muito?”.

Por que o escritor francês se refere aos indígenas chamando os de nossos tupinambá
Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry.

Vale observar que os europeus, na segunda fase do seu escambo com os índios do litoral, optaram por pedir que estes últimos cortassem pau-brasil de maneira regular, de modo que, quando os barcos chegassem, já houvesse um grande estoque para ser embarcado com rapidez. Podemos imaginar que a visão daqueles estoques representava algo de verdadeiramente exótico no contexto da economia Tupi, baseada no consumo imediato do que é produzido. Tal excentricidade econômica por parte dos brancos, de toda forma, era tolerada na expectativa de trocar aquele monte de madeira por instrumentos de ferro, estes sim altamente valorizados pelos nativos por sua novidade e eficácia.

Léry explica ao Velho que em sua terra existiam homens que comercializavam mais bens do que os índios podiam imaginar, e que “um só deles compra todo pau-brasil que muitos navios voltam carregados”. Tal discurso surpreende o Velho Tupinambá, que responde com duas perguntas ainda mais surpreendente: “Mas esse homem tão rico de que me falas não morre?” e “quando morrem para quem fica o que deixam”. Léry, um pouco irritado, comenta que “os selvagens são grandes discursadores e costumam ir em qualquer assunto até o fim”. Mas é obrigado a explicar que os comerciantes deixam seus bens para os filhos ou para parentes próximos.

O Velho, não suportando mais escutar notícias de um comportamento tão estranho e exótico, responde com ainda maior irritação: “vejo que vós outros franceses sois grandes loucos, pois atravessais o mar e sofreis grandes incômodos, como dizeis quando aqui chegais, e trabalhais para amontoar riquezas para vossos filhos e para aqueles que vos sobrevivem! Não será a terra que vos nutris suficiente para alimentá-los também? Temos pais, mães e filhos a quem amamos; mas estamos certos de que depois de nossa morte a terra que nos nutriu também os nutrirá, por isso descansamos sem maiores cuidados”.

Duas perguntas

É claro que o campo de possibilidades de compreensão histórica do Velho Tupinambá não era capaz de visualizar a gênese daquilo que hoje se tornou tão normal aos nossos olhos modernos: a acumulação capitalista; a constituição de mercados com cada vez maior dimensão, nos quais qualquer visão do fluxo direto de recursos, bens e serviços se torna impossível; a formação de empresas cada vez mais impessoais (onde na verdade a própria ideia de filhos e netos tende a desaparecer em benefício de um crescimento auto referido e auto-alimentado); o uso dos recursos da terra para muito além da satisfação imediata das necessidades humanas, rompendo, através do domínio da moeda abstrata, com o sentido doméstico que os antigos gregos atribuíam ao conceito de “oikonomia”.

“Seria saudável, por outro lado, que o sentido das perguntas simplórias feitas pelo Velho Tupinambá aparecesse de quando em vez nas mentes contemporâneas.”

Seria saudável, por outro lado, que o sentido das perguntas simplórias feitas pelo Velho Tupinambá aparecesse de quando em vez nas mentes contemporâneas. Bastaria, de início, duas delas:

– Se vamos todos morrer, por que acumular bens de maneira ilimitada?

– Se a terra é fértil (e deveria continuar sendo fértil) – apesar de que Velho não podia imaginar o estrago que seria feito no litoral onde vivia, para não falar do planeta como um todo, nos séculos subsequentes – por que não retirar de maneira comedida os seus recursos, deixando que cada geração possa retirar também o seu quinhão?

Jean de Léry, ao contrário do que podemos imaginar, foi tocado em algum nível pelo que o Velho estava dizendo, reconhecendo que ele “não era nenhum tolo” e que os índios odiavam os avarentos. Mais ainda, permitindo-se uma autorreflexão crítica sobre a própria aventura dos europeus, termina o parágrafo de maneira algo melancólica, lembrando de um escritor que dizia terem os índios do Peru temido fortemente que os europeus corrompessem seus costumes, por serem como “espuma do mar, isto é, gente sem país, homens sem descanso, que não param em parte alguma para cultivar a terra”.

*Editado às 21h22, do dia 01/04/2019, para melhoria da diagramação e recorte de fotografias. O texto não foi alterado.

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representa o mito de origem do mundo na tradição do povo Tupi-Guarani, narra que um poderoso Criador tinha como coração o Sol. O tataravô desse Sol soprou uma fumaça do cachimbo sagrado e a Mãe Terra surgiu. Ela, então chamou sete anciões e disse que desejava criar uma humanidade.