Quais processos civilizatórios transformaram as cidades por meio do uso?

Cidades, território e memória na América Latina: um olhar através das suas metrópoles

1. A guisa de introdução

Com o objetivo de formar um novo olhar sobre os territórios das nossas cidades, sejam elas metrópoles ou cidades médias, estamos procurando os conceitos de “civilização” que a relação espaço-tempo trouxe à formação socioespacial que denominamos América Latina.

Buscamos em Norbert Elias (1994), em seu livro O Processo Civilizador, onde procura separar os conceitos de “civilização e cultura”. Para o autor, “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: “ao nível de tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes” (Elias, 1994, p. 23). Menciona também a relação com as habitações, como vivem os casais, as normas do sistema jurídico, tanto ao modo como são preparados os alimentos. Generaliza o autor citado, expressando que, se “não há nada que não possa ser feito de forma ‘civilizada’ ou ‘incivilizada’, por isso é difícil descrever o que é civilizado. (Elias, 1994, p. 23).

Sem dúvidas, ao chegar às terras hoje denominadas de América Latina por espanhóis, portugueses, franceses, e holandeses semearam novas formas que podemos denominar de resultado de um processo civilizatório. Para a sociedade ocidental o que não respondia a suas vivências, a suas experiências, eram rotuladas de incivilizadas ou “mais primitivas”. Esse olhar do colonizador mostrava seu “orgulho” de aquilo que é mais valorizado por eles: “a sua tecnologia, a natureza de suas maneiras, o desenvolvimento de sua cultura científica, ou visão do mundo, e muito mais” (Elias, 1994, p. 24).

Nesse conceito de “civilização” se inclui um processo ou um resultado, diz respeito a um “movimento constante, movendo-se incessantemente ‘para a frente'" (Elias, 1994, p. 25). O conceito de cultura, para Elias, parece ter implicado uma limitação à noção de movimento.

Essa visão de mundo, de um mundo ocidental e cristão, foi produzindo os diversos territórios nas incipientes e, posteriormente, cidades de América Latina. O que em resumo nos interessa é mostrar que o denominado “descobrimento de América Latina” é, antes de mais nada, um processo civilizatório que procurava transformar a cultura existente.

Por outra parte, também vamos a associar os conceitos de território de Milton Santos (1996; 2002), Antonio Carlos Robert Moraes (2006), Rogério Haesbaert (2002), e Manoel Correia de Andrade (1996), com a formação e organização espacial das metrópoles de nosso subcontinente.

Assim, nos conceitos de Andrade (1996), como nos de Moraes (2006), ambos os autores fazem uma relação entre território e a formação do Estado-nação. Este conceito foi muito estudado na geografia política e se refere aos interesses de Frederic Ratzel na Alemanha e de Elisée Reclus na França. Andrade (1996) inclusive afirma que o conceito estava diretamente ligado à Teoria do Estado, que este deveria possuir território, povo e governo. Andrade (1996) continua mostrando que não se deve confundir com o de espaço ou de lugar, estando muito ligado à ideia de domínio ou de gestão de uma determinada área. Esse poder pode se referir ao poder público estatal, local ou das grandes empresas, que não tem preocupação com fronteiras políticas (Andrade, 1996, p. 213).

Moraes (2006), será analisado no momento que escrevermos sobre a formação dos Estado-Nação na América Latina.

Assim, o conceito que mais se adapta ao nosso interesse é o expresso por Santos (2002, p. 13) em seu trabalho O Dinheiro e o Território, onde escreve:

O território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações de sua existência. A geografia passa a ser aquela disciplina tornada mais capaz de mostrar os dramas do mundo, da nação, do lugar.

No mesmo trabalho que acima mencionamos, continua afirmando “O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas; o território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão mais a identidade” Santos (2002, p. 13). O autor ainda nos esclarece um pouco mais o que ele entende com essa afirmação, “a identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O Território é o fundamento do trabalho; o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida” Santos (2002, p. 13). Continua a exposição mostrando que o território usado é uma categoria de análise.

Para Haesbaert (2002) o conceito de território mantém “um diálogo oculto entre a Geografia e as demais Ciências Sociais, preocupadas cada vez mais com a dimensão espacial da sociedade”. Mas faz a observação que se preocupam com o território para enfatizar o desaparecimento do mesmo, especialmente no discurso típico de final do século XX, nas discussões sobre modernidade e pós-modernidade. Haesbaert (2002), com seu amplo conhecimento sobre o tema, cita dois autores que sustentaram essas discussões: o francês Bertrand Badie em O fim dos Territórios (1996) e do historiador Francis Fukuyama sobre o Fim da Historia (1992), associando que, se há um fim do tempo, paralelamente também haveria um fim dos territórios, da geografia e das bases espaciais da sociedade. O autor, depois de fazer um análise das concepções de território nos diferentes momentos dos enfoques teóricos da denominada geografia marxista, geografia crítica, dialética etc., qualquer que seja o rótulo que se denomine, onde território se associa a fonte de recursos dos “meios materiais da existência” ou a simples noção “de apropriação da natureza”. Esta concepção é muito associada à dos antropólogos nos estudos das sociedades mais tradicionais, embora também se possam incluir alguns geógrafos.

Enfim, nos estudos que Haesbaert (2002) realiza sobre território, nos diz que este é o conteúdo de diferentes dimensões do social. Faz um resumo das dimensões biológicas de território por associação aos animais, outra mais presente que é a associação ao poder, a condição política do território, está ligada à formação do Estado-nação. Agora citaremos textualmente o autor quando escreve “autores como Bonnemaison e Cambrèzy, ao privilegiarem a dimensão simbólica-cultural, colocam claramente uma terceira vertente, minoritária, mais com crescente influência num mundo em que as questões culturais voltam à tona com força redobrada” (Haesbaert, 2002, pp. 51-52). Menciona o autor também a dimensão econômica, porém aparece acoplada às discussões ao domínio político do espaço por interesses econômicos.

Para terminar nosso diálogo com Haesbaert (2002), queremos mencionar uma citação que faz de Chivallon (1999, p. 53), define o território como “uma espécie de ‘experiência total’ do espaço que faz conjugar-se num mesmo lugar os diversos componentes da vida social”, e questionando a possibilidade, hoje, desta ‘experiência social’, propõe a sua substituição pela noção de espacialidade (Haesbaert, 2002, p. 53).

A partir dessas concepções teóricas, analisaremos a formação dos territórios das cidades latino-americanas, a concretude do processo civilizatório, que se apresenta até os dias atuais no chamado “novo mundo”.

Assim, faremos uma periodização que nos permita chegar às diferenças territoriais nos espaços urbanos. A noção de tempo se relaciona à ideia de sistema, conjugado com as estruturas que as determinam. Dessa maneira, tentamos utilizar as realidades do passado para explicar o presente, embora nem sempre seja possível. Nosso ponto de partida se define no conceito de Santos (1978, p. 209) em O espaço como acumulação desigual de tempos.

2. Primeiro momento: territórios do passado pré-colonial

As terras desse período eram ocupadas de forma parcial e dispersas, onde existiam núcleos de populações de diversas formações e sob domínio dos mais desevolvidos mencionaremos comunidades originárias com diferentes formas de apropriação e transformação da natureza, de utilização dos recursos naturais e humanos, de organização do trabalho, dos produtos, da organização social e militar, da cultura e da religião, das trocas e ações comerciais, com frequentes lutas internas e guerras pelo controle do território e da população, em especial com a escassez de alimentos ou de homens ou mulheres. Na primeira consciência da formação dos territórios, um anônimo chefe ou talvez o imperador dos povos Astecas (Crónicas Méxica-coyotl) se refere a seu espaço, fazendo o seguinte discurso:

Aqui tecnochcas aprendereis como empezó la renombrada, la gran ciudad, México - Tenochtitlan, en medio del agua, en el tular, en el cañaveral, donde vivimos, donde nacimos nosotros los tenochcas.

Estamos citando, em espanhol, para não perder o sentido das palavras tomadas das Crónicas Méxica-coyotl – escritos astecas anteriores à ocupação espanhola. Este discurso se encontra no Museu de Antropologia da Cidade de México. Na figura 1, podemos observar alguns elementos importantes dessa imagem que é o retrato das palavras do chefe asteca.

1. A consciência de viverem numa grande cidade 500 anos antes da chegada dos espanhóis;

2. Histórica e psicologicamente, a consciência do espaço é a primeira consciência do homem. Antes do tempo, que era medido pelo território percorrido, e antes mesmo da origem, configura-se como uma ordem imanente;

3. A “experiência do espaço” entendida como o “lugar”: “porção de superfície terrestre identificada por um nome” (Lemos, 1996, p. 126). Lugar esse onde se manifesta a realidade da vida cotidiana, lugar que “sua posição privilegiada autoriza a dar-lhe a designação de realidade predominante” (Berger & Luckmann, 1974, p. 39). Essa realidade que se apresenta como um mundo subjetivo, na qual se participa com outros homens e a qual adquire as suas significações.

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Figura 1
Cidade de Tenochtitlán, capital do Imperio Asteca, construída na ilha de Texcoco
Gravura anexada ao relatório do Conquistador Anônimo (BENEVOLO, 1983, p. 477)

Embora a realidade indígena fosse um mundo predominantemente rural, as cidades existentes na chamada América Hispânica, seja Tenochtitlan, Cuzco e várias outras menores, representavam, sobretudo uma enorme visão de mundo das sociedades arcaicas, o espaço da religiosidade do “homus religiosus”. “Nesta concepção de mundo, todas as construções -todas as experiências- se realizam no âmbito do espaço sagrado”. A formação do território se relaciona com a vida religiosa: a caça, a pesca, a construção da casa, a aldeia, todos os atos da vida cotidiana: alimentar-se, dançar, procriar, “são os espaços e atos consagrados ab initio por uma hierofania”. (Lagana, 1985, p. 3).

Nessa visão do mundo das populações populações originárias, há outro valor do espaço que não se

apresenta como homogêneo, mas sofre uma ruptura, em um lugar determinado por ser um espaço sagrado e um espaço profano, uma percepção que divide o Cosmo do Caos. Como podemos observar na figura 2, os territórios estão organizados com uma espacialização onde o sagrado constitui a diferenciação na homogeneidade do espaço. No exemplo de México-Tenochtitlan, ou em Cuzco, por mencionar as mais importantes, nas construções de seus monumentos – os templos a Quetzatcóatl, as pirâmides do sol, da lua, entre outros – há uma hierarquização para os espaços religiosos.

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Figura 2
Cidade de Tenochtitlan México
Imagem extraída do Guia Turístico da Cidade do México (1990)

Neles sempre existiam amplos pátios para a realização dos ritos, das suas liturgias, a instalação dos mercados ao ar livre. Nesses recintos sagrados só tinham acesso os nobres e os governantes com uma orientação seguindo a saída e entrada do sol para completar os aspectos cosmogônicos e agrícolas. Em geral, a pirâmide significava a comunicação com o céu. O núcleo central religioso dessas cidades transforma-se no Axis Mundi, ou seja, o centro do mundo, desse seu mundo construído e produzido a partir de suas práticas sociais.

Bettanini (1982, p. 92) escreve a respeito que “o problema de uma simbologia espacial - que o espaço mítico denota - nasce da necessidade de descobrir, de reconstruir, no interior do mundo contemporâneo, a trama de valores que preenchem o espaço da vida cotidiana”.

Nessa organização do espaço urbano entre o religioso e o profano, entre o puro e o impuro, os territórios estão demarcados para serem ocupados pela nobreza e pelo povo indígena, onde cada

grupo social ocupa os territórios diferenciados. Já existe uma diferenciação social dos territórios.

3. Segundo momento: colonialismo, destruição e os novos territórios implantados

A conquista e colonização pelos espanhóis e portugueses, quando seus países estavam realizando o longo transito do feudalismo para o capitalismo, incluíram nesses processos suas colônias, subordinando-as e fazendo-as participar da acumulação primitiva do capital da metrópole.

Os espanhóis, ao chegarem à América Central e Meridional, encontraram impérios ricos e desenvolvidos, mas incapazes de resistir aos colonizadores. Segundo Moraes (2006, p. 43), “qualquer colônia é o resultado de uma conquista territorial. Um espaço ganho da natureza, de outros povos e de outros estados. É um espaço novo na perspectiva do colonizador”. Cortez no México e Pizarro no Peru ocupam e destroem as grandes cidades que encontram. Fazem as reformas segundo as necessidades e a bagagem cultural dos colonos espanhóis, arrasam os conjuntos habitacionais originais esparsos no território, e obrigam às populações a se estabelecerem nas novas cidades mais compactas. Como coloca Costa (2017, p. 55) “a dinâmica de trabalho imposta para a exploração de riquezas, em territórios latino-americanos, extirpou a cultura (e a vida) de milhares de indígenas e afrodescendentes”. Inicia-se, assim, a essência de toda a relação espaço-temporal da urbanização latino-americana: a contradição, o conflito, o choque entre o europeu e os autóctones. Cortez e Pizarro quando destroem as cidades que encontram, o fazem ante tudo pela significação simbólica que apresentavam seus territórios, porque uma nova concepção do mundo deve ser implantada. Tecnochtitlan devia dar espaço à capital hispânica da Nueva Espanha ou Espanha das Índias.

As novas cidades espanholas deviam ter um modelo uniforme, definido pelo código de Felipe II de 1573, que é a primeira lei urbanística da modernidade europeia implantada e transplantada na América.

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Figura 3
Planta de Buenos Aires
Horácio Difrieri. Atlas de la Ciudad de Buenos Aires, Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires (1982)

O modelo uniforme de tabuleiro de xadrez com as ruas retilíneas que definem os quarteirões iguais, em geral quadrados com 100 metros de lado. Partindo todos da praça principal, que em geral abrange quatro quarteirões unidos, denominada de Praça Maior. Nela se localizavam a igreja, o cabildo (paço municipal), as casas dos mercadores e a dos colonos mais ligados à hierarquia do conquistador primeiro, aos mais ricos ao longo do tempo. As regulamentações do código já traziam todas as exigências de como deviam ser os espaços urbanos. Pouco deixavam para que a população formasse seus próprios territórios. Não detalharemos a Lei de Índias, por considerar que há detalhes em excesso. Podemos observar na figura 3, a planta de Buenos Aires seguindo as normas da Lei de Índias. Embora com dispositivos de ordem real, a maioria das cidades foram implantadas como fortalezas com significantes formas jurídicas e físicas para a prática da conquista. Não há dúvidas pelas formas que existem até hoje, exemplo de Cartagena de Índias, que os territórios que se formavam eram produtos dessas normas. Benevolo (1983, p. 478) escreve a respeito, destacando uniformidade do tabuleiro - muitas vezes decidida na mesa da burocracia espanhola – “que impede de encontrar uma adaptação própria ao caráter dos lugares”.

No México, onde havia uma grande população, nessa época maior que a de Sevilla, centro da conquista espanhola, era necessário catequizar, para o qual a igreja devia possuir um grande pátio de entrada e do lado da fachada uma capela aberta (capilla de índios), para celebrar missa ao ar livre em dias de festas.

Toda sociedade quando chega para conquistar impõe uma nova ordem, resultante de uma hierarquia diferente complexa e imbricada. A própria concepção de conquista tem um significado de práxis, modo de dominação por meio das armas. Há um novo Deus a impor e a Cruz e a Espada farão esse caminho.

Os ibéricos, ao conquistarem as novas terras, se apossaram, em nome de Cristo, dos territórios que pertenciam a outros deuses. A implantação da Cruz consagrava a religião que significava um “novo nascimento através de Cristo terminou a velha ordem, eis que tudo se tornou novo” (São Paulo apóstolo, op cit Romero (1974)). As novas cidades – símbolo da conquista e ocupação – seriam renovadas, recriadas por meio da Cruz.

A organização do espaço desse período, os territórios existentes, representam a nova hierarquia social. A catedral – a igreja – integra nas suas dimensões os elementos cosmogónicos que substituiriam os dos monumentos anteriores. Agora elas são o centro do mundo e por elas se estabelece o caminho para o céu.

A cidade colonial da América Ibérica se apresenta com todos os rasgos das bases culturais e ideológicas que as construíram. Nos centros, do plano de tabuleiro, onde se concentram o poder religioso, o poder político e o econômico, apresentam uma arquitetura clássica transformada pela arte nativa. Nas áreas de antiga tradição artística, México, América Central, Perú, Bolivia, possuem magníficas mostras desta mistura, onde o clássico está integrado à interpretação livre dos seus construtores.

As moradias, em geral de casas térreas, são amplas e simples feitas com o material que se dispõe e onde também está presente a formação cultural da população autóctone.

Sobre os antigos sítios urbanos, de bem escolhida localização geográfica, os conquistadores com frequência se instalaram e reconstroem “novas-velhas” cidades sob os parâmetros da dominação: Tlaxcala, Cholula, Bogotá, Huamanga, Quito e especialmente México e Cuzco.

Sob o signo da Cruz e da Espada apagaram os conquistadores os vestígios das antigas culturas urbanas, convencidos como estavam que era justo fazê-lo com os infiéis. Em algumas áreas, como na região leste, Brasil, Rio de la Plata, não tiveram grandes obstáculos para destruir; nas outras, o “alto nível” das culturas com que se defrontaram os deixaram assombrados. De todas as maneiras, agiram como se encontrassem com uma terra deserta, sem vestígios, culturalmente vazia; na qual deviam implantar suas exigências e necessidades, “reduzi-la a seu sistema cultural pela via da catequese religiosa” (Romero, 1974, p. 12).

Embora os desígnios do Império Português não respondessem fielmente ao paradigma traçado para a América hispânica, em muitos momentos podemos afirmar que se encontraram. No processo de urbanização que estamos analisando, a rede de cidades devia criar um espaço urbano europeu, católico, expressão de um império colonial, é dizer um mundo dependente, periferia de uma realidade metropolitana que não tinha identidade própria. Os territórios dessas cidades, desse mundo colonial, deveriam assegurar a dependência, a instrumentalização das exigências superiores da metrópole. Os resultados dessa ideologia, dessa visão de mundo, deixaram de herança o espaço caótico produzido por duas realidades da pirâmide social: os peninsulares e os outros, significando índios e negros.

No final dessa fase, América Latina entra na estrutura socioeconômica do mundo capitalista mercantilista e burguês. Nesse momento há uma consciência real do que eram as cidades americanas: da cidade formal da Lei de Índias, na ata e o escrivão, da espada e a cruz – eram apenas pequenas e acanhadas cidades, pequenas e miseráveis com poucos vizinhos e muita insegurança. Pequenas e miseráveis as cidades assim como as regiões agrícolas que comandavam. Exemplificamos com São Paulo, Buenos Aires, Montevidéu, sem citar as outras do resto de nosso subcontinente que possuíam populações muito acanhadas.

Enfim, podemos sintetizar que as formas da colonização europeia, as terras de nossa América Latina, trouxeram situações sociais que mudaram as estruturas existentes: a incorporação de novos territórios à exploração mineira e agrícola, a construção de caminhos novos, a abertura de rotas fluviais e marítimas, a formação de novos povoados, a drástica redução da população, a mestiçagem racial, a dominação servil semifeudal, formas de intercâmbio mercantil de maneira desigual que ajudou a acumulação originária do capital na Europa, a extração de metais preciosos, o tráfego de negros e a escravidão, a pirataria cujos suportes foram os portos e as vias terrestres, marítimas e fluviais de drenagem. A imposição do idioma, religião e culturas vindas de fora e a sua combinação sincrética com as índias e negras, a criação de novas porém formais demarcações político administrativas internas (Cobos, 1995, p. 58). Santos (1982, p. 13) escreve a respeito:

Na América Latina a colonização fundava-se na expansão agrícola e na exploração mineira, responsável pelo comercio que alimentava a vida urbana. Essas atividades começaram antes da Revolução Industrial e também antes da revolução dos transportes, isto é começos da vida econômica moderna realizaram-se num período em que as insuficiências de meios técnicos limitava a produtividade do trabalho. A necessidade de um grande número de agentes para o desenvolvimento da atividade econômica e administrativa, é um dado importante quando se trata de interpretar o desenvolvimento do fenômeno urbano.

Do ponto de vista da paisagem urbana, todas as cidades da América Hispânica mostraram a uniformidade das plantas urbanas, produto da imposição do tabuleiro de xadrez, decidida na burocracia da Lei de Indias e que impediu a possibilidade de encontrar uma adaptação às diferentes formas do lugar.

Segundo Benevolo (1983, p. 487) “o desenho inicial do urbanismo do século XVI, serviu ao desenvolvimento do século XIX até os nossos dias como plano regulador”. Continua o autor, “as cidades coloniais americanas são a realização mais importantes do século XVI. Sua pobreza, comparada com o requinte e as ambições da cultura artística europeia e uma amostra de que as técnicas simples dos emigrados para América desenharam e construíram cidades inteiras”. (Benevolo, 1983, p. 494).

O mesmo autor ainda menciona que “o plano usado pelos espanhóis foi ampliado pelos franceses e os ingleses no século XVII e no XVIII para a colonização da América Setentrional” (1983, p. 494). Ainda hoje está sendo consideradopelos urbanistas como uma grade que permite ser um instrumento geral de ocupação da terra.

4. Terceiro momento: as modernizações dos territórios na formação dos estados nacionais e suas metrópoles

Nas primeiras décadas do século XIX, os antigos vice-reinados se independeram de Espanha formando as diferentes repúblicas, as suas capitais e se abriram as portas para novas relações econômicas. Estes processos trouxeram para as novas repúblicas a formação de um marco territorial que lhes permitiu realizar a acumulação capitalista, necessária para sua existência.

O impacto do capitalismo mercantil mundial dividiu as cidades que foram atingidas pelos novos processos entre aquelas que se adaptaram aos novos jogos e as que ficaram estagnadas à margem do sistema. Paulatinamente, de acordo com “a lógica histórica da interação sociedade-natureza”, foram-se produzindo nas cidades e no campo “territórios de exceção” – concentradores da massa de subalternizados com suas culturas e formas de resistências – por toda a América Latina (Costa, 2017, p. 56).

Vários séculos passaram para que essas antigas cidades madurassem para a eclosão de um tipo moderno de civilização. “A presença simultânea da colonização e subsequente aproveitamento do território, justamente com os indícios de uma economia monetária favorece o ciclo das cidades cujos destinos leva mais ou menos o traçado pela metrópole” (Santos, 1982, p. 12).

Mas temos que considerar também que as cidades latino-americanas foram fundadas a serviço de relações internacionais com os países que eram a área core da Europa ocidental. Esta é uma característica a mais no processo de urbanização destas regiões

Procuramos também Romero (1974, p. 18) que, com outra visão, apresenta o problema da Independência e a formação das capitais nesses novos países:

O novo ensaio, econômico, político e cultural que começou com a Independência, mobilizou as áreas rurais, mas repercutiu fundamentalmente sobre as cidades. As burguesias que aceitaram o desafio de produzir uma mudança profunda na estrutura da área que controlavam as cidades submeteram em alguma medida seus próprios interesses aos interesses comuns, se somaram a suas filas as novíssimas elites criadas pelo acesso de grupos rurais, e juntas assumiram a missão de dar-lhe um projeto político e uma orientação ao conjunto social.

Assim nasce a classe social dos patrícios (para América Hispânica), preocupada com o destino da nação, o produto dos novos papéis que elas tiveram que assumir. A partir desse momento uma nova estrutura social se encontra: os patrícios que haviam desbancado aos peninsulares e os outros que continuavam sendo os índios, negros e mestiços.

Paralelamente a esses processos civilizatórios, situação que se criou como consequências das guerras civis, entre frações urbanas e caudilhos regionais, conduziram à hegemonia de uma das cidades com relação às demais, a supressão das autonomias locais e regionais, a constituição dos exércitos nacionais únicos e a consolidação do Estado-nação. Realizada esta etapa, os governos emergentes começam a se preocupar com a distribuição da terra, a propriedade privada (se firmam as leis da terra, nos diferentes países, principalmente após os anos de 1850), as terras baldias públicas, a dissolução das proteções indígenas, solução para os bens em mãos mortas, liberação da terra, incluindo da Igreja, principal bem como meio de produção, e distribuição a novos proprietários que significativamente chega às mãos de fazendeiros “criollos”, a liberdade aos escravos, eliminação da encomenda e a mita (formas de exploração da mão de obra nas minas de ouro e prata), foram novas formas de acabar com situações de grande humilhação para a população hispano-americana.

Na América portuguesa esses processos se deram de formas diferentes, embora com certa semelhança. A Independência do Brasil ocorreu como decorrência da presença do herdeiro da Coroa no país, não teve guerras intestinas para conseguir a libertação de Portugal, porém também foi produto dos interesses dos filhos de portugueses nascidos no Brasil, das elites agrárias e escravagistas. Moraes (2006) escreve que o continente americano aparece no processo da formação dos estados nacionais com uma forte particularidade histórica. A formação dos Estados autônomos na América do Sul e também no México e os outros de origem espanhola foi resultado das estruturas coloniais, decorrentes das mudanças que estavam acontecendo nas metrópoles europeias da época, porém não pode desconsiderar-se as motivações de ordem local no desejo de impulsionar a independência (Moraes, 2006). Em meio a todos esses movimentos pela procura da Independência, o último país que a conseguiu foi o Brasil,

Os mais importantes centros urbanos em 1900 eram Rio de Janeiro, Buenos Aires, e Havana, ou seja, o resultado da formação dos Estados Nacionais a suas capitais. Os territórios, que definiram os lugares, o território era a base, o fundamento do Estado-nação que ao mesmo tempo o moldava. Trata-se de um conceito de território que leva em sua essência a valorização dos recursos naturais (Santos, 1996).

Nos Estados da América do Sul, especialmente a conformação e expansão do território como estratégia básica, encontraram um vasto campo de realização, dada a própria essência dos processos de colonização, (calcados na expansão territorial) e na existência de grandes estoques de espaços ainda não incorporados às economias coloniais. (Moraes, 2006).

A partir de 1880 muitas destas cidades se estruturam e mudam no social e na fisionomia: há um crescimento da população e ao mesmo tempo uma diversificação econômica. As paisagens urbanas se modificam se alteraram os costumes, as maneiras de pensar e se intensificam as diferenças entre os distintos grupos dessa sociedade urbana. Novos territórios se constroem com o crescimento das elites e dos grupos mais pobres.

Nesse momento, Europa, Estados Unidos e Japão se constituíram em grandes potências industriais e com abundantes capitais, necessitando de matérias primas e os campos da América Latina as produziam em quantidade. É o período das exportações em massa de trigo, carne, café, cana de açúcar, cereais, lãs, borracha, salitre, entre outros, onde participaram todos os países da América Latia.

Em 1898 os Estados Unidos impuseram ações de dominação aos países do Caribe e América Central, ocuparam territórios e adquiriram plenos direitos na faixa do Canal de Panamá, fazendo-o separar da Colômbia, país ao qual pertencia. Foi o momento da tendência imperialista dos Estados Unidos e dos países da Europa como Alemanha, França, Grã Bretanha, entre outros.

As elites da América Latina faziam questão de ajustar as necessidades econômicas dos seus países à economia das nações industrializadas, pois viam nessas alianças os símbolos do progresso.

Os mitos do progresso e da riqueza levaram a reformar os espaços urbanos, especialmente nas metrópoles, onde as heranças dos países ibéricos tinham que ser substituídos pela cópia dos projetos urbanísticos de Paris e Londres.

A localização nos espaços das matrizes dos bancos, das casas de exportação e importação, de atividades comerciais e outras atividades, novos territórios se constituem nas cidades. Banqueiros, financistas e exportadores, entre outros, que em geral eram estrangeiros, intensificam as exigências do consumo do luxo. A cidade tinha que mostrar monumentos para materializar o progresso e a prosperidade. A arquitetura ibérica era pobre da mesma forma que suas populações. Havia que se apagar o passado.

As cidades da América Latina, sejam suas capitais como as hoje chamadas de médias, apresentam seus territórios segundo as classes que o ocupavam: se os dirigentes eram estrangeiros, a mão de obra era nacional. Então, a cidade se apresenta com dois tipos de organização: as dos planos urbanísticos de Von Haussmann e de Ebenezer Howar para os primeiros e os territórios dos pobres organizados a partir de suas necessidades cotidianas.

5. Quarto momento: os territórios da industrialização-urbanização nas metrópoles da América Latina

No começo do século XX, os países da América Latina passam a participar, com maior intensidade, da divisão internacional do trabalho e, nas suas metrópoles em formação, os impactos se traduzem em novas morfologias. Assim, novos territórios se estruturarão como consequência. Novas modernidades estão entrando, com as chegadas das técnicas que modificaram os espaços do Rio de Janeiro, Buenos Aires, México, Havana, São Paulo, entre outras, sendo consideradas paulatinamente importantes. Intensifica-se o processo de desenvolvimento interno do país e onde mais se fazia sentir era em suas capitais.

Ao final do século XIX, fatores sociais e culturais somam-se aos existentes: abertura da América às migrações europeias e asiáticas. Enormes contingentes de populações de diversas nacionalidades fazem desde o Canadá e Estados Unidos até o Uruguai, Chile e a Argentina e a Patagônia suas novas pátrias.

Santos (1982) escreve a respeito mencionando que a América Latina se destaca “pela porcentagem de estrangeiros europeus ou de seus descendentes que vivem nas cidades. Ao coincidir a sua chegada com a expressão e revalorização das atividades agrícolas, puderam participar do processo de industrialização” (Santos, 1982, p. 15), que se estava intensificando nos espaços urbanos: artesãos, operários, motorneiros e outros. A chegada desses imigrantes trouxe uma revolução demográfica muito importante para a região.

O jogo dialético entre as novas condições do progresso e o peso da estabilidade histórica favorece o desenvolvimento, mas isso só pode produzir um meio econômico favorável ao crescimento das cidades. Essas situações detalhadas exige uma aceleração da integração territorial que transforma a "natureza" da urbanização convertendo-se em um modelo de crescimento econômico mais eficaz. (Santos, 1982, p. 15).

A estrutura urbana das cidades começa a mostrar outras paisagens. Delimitam-se os espaços: os bairros jardins da burguesia comercial e industrial e os espaços segregados, os famosos “cortiços” em Rio de Janeiro e São Paulo, os “conventillos” em Buenos Aires e Montevidéu, entre outras. Estas residências coletivas das populações de menor poder aquisitivo que tinham que morar nas cidades e não havia lugar para elas. O impacto das suas existências foi tão grande que deram origem a vários temas literários e berço do tango, do samba e de outros tipos de músicas originais dos países da América Latina. Mais uma vez estão nos territórios as tradicionais diferenças sociais: as elites agro-comerciais e industriais e os outros, imigrantes e pobres que foram expulsos do campo.

Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial se intensifica a localização do processo de produção industrial "por substituição de Importações" de forma desigual segundo os países e, como consequência da crise econômica do capitalismo internacional, se assenta territorialmente nas metrópoles: México, São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Santiago do Chile, entre outras.

A modernização capitalista do campo trocou camponeses por máquinas e novas técnicas. De forma desigual, a produção do campo com a indústria deixou sem trabalho uma grande massa de população que emigrou para a cidade, a ser força de trabalho na nova atividade industrial. A este processo deu-se o nome de urbanização acelerada, modificando e homogeneizando a distribuição territorial da população (Cobos, 1995, p. 59).

Depois dos anos de 1930, foram significativas as influências de Le Corbusier, onde os princípios da Carta de Atenas, cuja autoria se lhe outorga, foram paradigmas para arquitetos, urbanistas e planejadores da cidade moderna. Os quatro elementos que deviam nortear a organização das cidades - as funções de morar, trabalhar, circular e o lazer – foram dominantes em todas as cidades latino-americanas. Os grandes blocos de moradias para os operários, conforme descreve a importante urbanista francesa Françoise Choay (1965, p. 63), começam a:

Se apresentar nas paisagens urbanas. Tendência autoritária, coercitiva que considera a cidade e a moradia como máquinas. Visão racionalista, tecnocrática e a histórica, que ignora tradições culturais e pretende estruturar o presente e o futuro, levando em consideração novas tecnologias, materiais de construção e ideias "progressistas", em que prevalecem os princípios de higiene, da luz, da ventilação, da circulação.

Essa nova fase da organização das cidades, tira do cidadão a possibilidade de construir seus próprios territórios.

Nas cidades, que já eram segregadas, intensifica-se este processo de ocupação dos espaços, novas territorialidades, com a proliferação dos enormes conjuntos de blocos de habitação do modelo racionalista e junto à autoconstrução se produzem as periferias urbanas, especialmente ao longo das décadas de 1960-1980. Embora o processo da migração interna comece a partir dos anos de 1950, em Buenos Aires, já desde os anos de 1940, se intensifica nessas décadas. Conurbando pequenos povoados vizinhos à cidade principal, com a localização das grandes indústrias e os bairros da força de trabalho, produzem-se as grandes metrópoles da América Latina: por autoconstrução, quem consegue comprar o lote e construir sua casa com o trabalho familiar, as favelas, vilas misérias e qualquer que seja o nome do local, hoje com vários milhares e milhões de habitantes. Esses são os tristes territórios que a população pobre da América Latina consegue realizar nas grandes cidades. Na tabela 01 a população total e a metropolitana. A partir da segunda metade do século XX, especialmente nos anos de 1960, os modelos de cidades são transferidos da Europa para os Estados Unidos, tornando-se hegemônicos nos espaços citadinos das América Latina.

Tabela 1

População total e metropolitana das importantes Metrópoles Latino Americanas Importar tabla

População das importantes Metrópoles Latino Americanas (2015)
Cidade População População da Área Metropolitana
Cidade do México (2012) 8.841.916 26.166.842
São Paulo 11.967.825 19.616.060
Buenos Aires 2.776.338 13.170.145
Rio de Janeiro 6.320.445 11.812.482
Lima 8.500.842 8.482.619 (2005)
Bogotá 6.840.116 7.881.156
Santiago 4.434.900 6.657.354
Caracas 3.205.463 5.329.355
Havana (2012) 2.105.000 2.605.022

Panorama Social de América Latina (CEPAL, 2015)

Os prédios de vários andares, arranha-céus, as construções verticais, os viadutos, as avenidas elevadas, túneis, todas as construções que permitam o trânsito do transporte urbano, ônibus, carros e todos os meios de circulação por estradas. A cidade é para e pelo automóvel. A paisagem e os territórios das cidades e em especial das metrópoles se transfiguraram pela multiplicação dos automóveis particulares que começou a congestionar as ruas e avenidas tanto nos centros urbanos como nas áreas industriais metropolitanas.

Há infinitos congestionamentos de trânsito, contaminação do ar, irritabilidade dos motoristas e mais que em toda a história das cidades da América Latina, uma maior e mais gritante separação entre as elites e os pobres. Os lugares, que agora são de duas classes, estão cheios de novas formas e costumes de consumo: shopping center, hipermercados, condomínios fechados e estes rodeados de altos e fortes muros de proteção e guaritas com seguranças. Os outros são os dos pobres longe do trabalho, inseguros e enfrentando poucos ônibus e sempre superlotados, que realizam longos deslocamentos demorando várias horas nas viagens. “Cada país traz, espacialmente, as resultantes do sistema internacional da dominação capitalista (como formas de trabalho e localizações produzidas aos pobres), quando a riqueza realizada materialmente gera e agudiza desníveis” (Costa, 2017, pp. 56-57). A metrópole que se havia convertido em mito, fetiche, sonho de mudança, agora era especialmente mercadoria de difícil acesso.

O espaço e o território tomam a partir desse momento novos valores, formam os símbolos e os anseios da mobilidade social.

6. Quinto momento: "o retorno do território": globalização, o meio técnico-cientifico-informacional nas metrópoles da América Latina

Pedindo autorização à memória do querido Mestre, Professor Milton Santos (1996), nos apropriamos do título de um artigo publicado em 1996, intitulado O retorno do território. O autor explica que deu esse título usando uma metáfora porque a geografia passou um longo tempo com uma noção de território que se referia somente ao espaço ocupado pelo Estado-Nação.

Santos (1996) refere que ao falar de território não podemos somente citar globalização ou mundialização, terminologia que entrou muito na vida das cidades após a década dos anos de 1990, no mundo e na América Latina. Continua o autor “o território são formas, mas o território usado são objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado” (Santos, 1996, p. 16). Neste tema o que nos interessa “é que o Território hoje é formado por lugares. São os mesmos lugares que formam redes, os mesmos do espaço banal. São os mesmos lugares, os mesmos pontos, mas contendo simultaneamente funcionalizações diferentes, quiçá divergentes ou opostas” (Santos, 1996, p. 16).

A denominada globalização é um discurso associado a situações econômicas, políticas, culturais. Uma definição que alcança a noção de intensa mobilidade da comunicação global. Embora para Sassen (2007, p. 125) exija a neutralização do território e da distância, para Santos (1996) com a globalização há uma mudança no conceito de território que de um Estado territorial passa para a noção da pós-modernidade; há uma transnacionalização do território. Essa transnacionalização não acontece na totalidade dos lugares, mesmo em aqueles onde há certa mundialização mais operante e ativa. De todas as maneiras não se pode ignorar o papel da ciência e da tecnologia. O autor chama a este período de “meio técnico-científico-informacional”. Continua o autor citado:

Em esse processo de conhecimento o espaço tem um papel privilegiado porque cristaliza os momentos anteriores; e é o lugar do encontro entre o passado e o futuro, mediante as relações sociais do presente que nele se cristalizam. (Santos, 1996, p. 105).

É o momento em que o território que continha a ciência e a técnica “nesse momento se informatiza mais e mais rapidamente que a economia e a sociedade. Não há dúvida que tudo se informatiza, porém no território esse fenômeno é ainda mais evidente porque seu tratamento supõe o uso da informação, que está presente também nos objetos” (Santos, 1996, p. 105). Com o aumento dos objetos geográficos diferentes aumenta o número de fluxos que esses objetos podem receber e transmitir, tanto desde o ponto de vista qualitativo quanto quantitativo, fazendo que o território mude de definição.

O significado desse momento histórico que Santos (1996) denomina de “meio técnico-científico-informacional” determina os processos econômicos, políticos, culturais, migratórios, jurídicos, que produzem e determinam os espaços e seus territórios a nível mundial. Por outro lado, todos esses processos realizam uma nova geografia, em diversos planos que dependem dos fluxos que lhe correspondem por uma passagem do social como sociedade, do social como mobilidade, eles não podem ter a mesma capacidade de pressão. Os fluxos desse dinamismo são mais intensos e se situam em lugares e esses são os fixos do espaço das diferentes especializações dos territórios. Historicamente havia uma comunicação individual dos lugares no mundo, hoje há uma comunicação global dos lugares, “uma interdependência universal dos lugares é nova realidade do Território”, afirma Santos (1996, p. 15). A análise da fluidez posta ao serviço da competitividade, que hoje rege as relações econômicas, se concretiza nos lugares. “De um lado, temos fluidez virtual, oferecido por objetos criados para facilitar essa fluidez e que são cada vez mais objetos técnicos. Porém, os objetos não nos dão senão uma fluidez virtual, porque a fluidez real vem das ações humanas, que são cada vez mais ações informadas, ações normalizadas" (Santos, 1996, pp. 122-124).

Neste processo que estamos analisando a geografia agora trabalha com dois conceitos de lugar. O exigido pelos fluxos, de modo que cada lugar se define tanto pela existência corpórea como pela sua existência relacional. Definem-se também pela sua densidade técnica, pela sua densidade informacional e pela sua densidade comunicacional, cuja função os caracteriza e os distingue (Santos, 1995, p. 147).

Definem-se também os lugares como os que realizam as funções do mundo. É pelo lugar que o mundo se percebe empiricamente. É o domínio do acontecer solidário, que não é de conotação ética ou emocional, é das normas hegemônicas do mundo globalizado. Por outro lado, também, trabalhamos com outro conteúdo do conceito de lugar, com sentido que vem conhecendo desde os anos de 1970, que é o de lugar como espaço percebido e vivido, dotado de significado e que manifestam "o sentido do lugar" e "a imagem do lugar". Um conceito de lugar que tem dimensão cultural e simbólica, com o qual nos preocupam questões como as identidades, a intersubjetividade e os intercâmbios simbólicos que vivem outro cotidiano e outro tipo de fluxos. Esse é lugar e o território da população que não está inserida na economia dos hegemônicos.

Essa globalização que estamos vivendo não nos traz o “fim dos territórios”, como nos dizem os apocalípticos do momento; pelo contrário, se forma uma nova configuração territorial com os novos conceitos de cidades globais: megacidades, megalópoles e qualquer outra denominação que tenham as formas existentes trazem em seus conteúdos outras economias, outras relações políticas e sociais em diferentes escalas, porém que vai do local ao global. Essas afirmações servem tanto para as cidades europeias como para as latino-americanas: México, São Paulo, Buenos Aires, Rio de Janeiro ou qualquer outra não existe, nem existiu a possibilidade dessas cidades não sofrerem os choques da globalização no plano do território, porque estariam sendo dirigidas e determinadas pelos fluxos em seus diferentes lugares. É um novo processo civilizatório que agora é determinado pela influência de um novo capital que não tem uma pátria fixa como quando era originário da península ibérica.

Novas formas de se estudar a questão urbana; agora se define pela luta dos lugares e pela luta pelos lugares. Citamos o autor francês Olivier Mongin (2009, p. 140) que escreveu:

O tipo do urbano, em adiante mundialmente fragmentado, faz resaltar uma cultura urbana, originalmente europeia e duplamente marcada pela vontade de circunscrever limites e por um respeito da proximidade a um "planeta urbano" que empurre os limites, no duplo sentido da megacidade (ausência de limites demográficos, abandono do humano...) e da cidade global (aquela que tem a ver com os fluxos e com a falta de limites do virtual).

Ao mesmo tempo, há toda uma parafernália de palavras para mencionar o urbano das cidades que nos levam a uma grande confusão. Em qual termo existe realmente o conteúdo do real. Pode-se falar de urbano num mundo sem urbanidade ou seria melhor mencionar a sociedade como pós-industrial, pós-urbano ou sociedade em rede como a denomina Castells (1996). Choay (1965), por sua vez, se refere às expressões “civilização urbana”, “urbano”, “pós cidade” como sinônimos já desde 1970. Há várias outras denominações de economistas e de urbanistas, porém nos interessaram essas como exemplos. Há, sem lugar a dúvidas, um movimento de novas territorialidades, produto do liberalismo econômico e do novo papel do Estado. De qualquer maneira, começou a existir por parte do mercado imobiliário, de outros lugares para a projeção dos fluxos, porque necessitam ter os fixos para essas novas cidades. Arquitetos e urbanistas denominam essas formas de edifícios inteligentes com todas as condições exigidas pela técnica e as novas formas de consumo. Podemos observar que a globalização está fazendo uma nova ruptura socioespacial, embora ela existisse desde a origem das cidades latino-americanas, valorizando lugares diferentes em períodos históricos diferentes.

O urbanismo que desejava racionalizar a prevalência do centro sobre a periferia, dos lugares sobre os fluxos, do público sobre o privado, a separação dos espaços em consideração a uma conflitualidade e a heterogeneidade, está sendo substituída pelo predomínio dos fluxos sobre os lugares. Há um intenso domínio de privatização e um processo de fragmentação espacial que o novo urbanismo já havia posto em movimento. O mercado imobiliário produz novos lugares para essa economia: Puerto Madero em Buenos Aires, em São Paulo na margem direita da marginal do rio Pinheiros, nos bairros de Vila Olímpia, Itaim Bibi entre outros, antigos bairros ocupados por uma população de classe média que, aparte de moradias, havia algumas pequenas fábricas de sapatos e outras de roupas de vestir, todos arrasados para a nova cidade cheia de prédios inteligentes. Hoje, junto a essa nova clientela existe serviços de alimentação, lavanderias e especialmente grandes e de luxuosos shoppings. Na Cidade do México também se produziu um espaço especial numa antiga área denominada de Santa Fé, assim como revitalizaram bairros de alta classe no centro. São alguns exemplos com estas cidades de vários milhões de habitantes.

A nova organização espacial afeta diretamente os territórios existentes, porém fazem-se novos territórios “indiciáveis da economia (a cidade global), da tecnologia (a cidade virtual), da reestruturação do Estado (as novas formas do governo dão valor às entidades urbanas, as regiões, e fragilizam os Estados centralizadores), o movimento de outros territórios possuem particularidades consideráveis”. Há uma absoluta necessidade de comparar os lugares e destacar as particularidades estéticas e humanas de cada um deles. É uma situação forçada de entender os movimentos básicos que exigem uma nova configuração dos territórios. A denominação de “urbano generalizado” está em conjunto com a prevalência dos fluxos, se os lugares estão interconectados, se é possível conectar-se a qualquer ponto da rede. É uma ilusão enganosa pensar que teremos um mundo unido e solidário consequente desse novo urbano. “Realmente, se a fragmentação em curso pede contra ataques políticos, o urbano se fragiliza ainda mais na medida em que as tecnologias corroem a relação urdida com o real, com o ambiente imediato, em suma, a relação com um mundo que é preciso habitar”. Destaco a opinião de Mongin (2009, pp. 149-152):

Não por acaso que a geografia e o urbanismo são hoje disciplinas muito procuradas, a despeito de seu papel marginal na vida intelectual francesa. O caráter concreto, físico e espacial da geografia e do urbanismo tem o mérito de tornar visível o que se passa efetivamente na era da orquestração do local e do global. A época não está pelo tanto, para a celebração do "fim dos territórios".

Continuaremos citando Santos (1996) para relacionar com as metrópoles de América Latina: Atualmente a metrópole está presente em todas partes e no mesmo momento. A definição do lugar é cada vez mais no período atual, a de um lugar funcional à sociedade como um todo. Os lugares seriam lugares funcionais de uma metrópole. Paralelamente através das metrópoles, todas as localizações viram hoje funcionalmente centrais. Continua o mestre, apesar da sua ausência física, dizendo:

Sem duvida, antes, a metrópole estava presente em certas partes do país. Digamos que o núcleo emigrava para o campo e para a periferia, porém o fazia com desfazer e perdidas, com dispersão das mensagens e ordens. Se, ao longo dos tempos, o espaço se voltava mais e mais unificado e fluido, faltavam ainda as condições de instantaneidade e simultaneidade que somente hoje se verificam (Santos, 1996, p. 117).

Consequência dessas circunstâncias nem o espaço se dissolve, nem o tempo se desvanece. “Existe uma verdadeira desmultiplicação do tempo, devido a uma hierarquização do tempo social, graças a uma seletividade ainda no uso das novas condições de realização da vida social”. Esse tempo definido se realiza nas metrópoles, que abarca todo e que “o transmite a todo o território o tempo do Estado, das multinacionais e das grandes empresas”. Nas outras cidades da rede urbana do espaço, existem os “tempos subalternos diferenciados, marcados por dominações específicas” (Santos, 1996, p. 118).

Nesse sistema organizado, produto da globalização, a cidade e a metrópole não representam mais os valores que lhe eram próprios como o lugar da acolhida, da liberdade, da cultura. Hoje se confundem com os espaços que são comandados por interesses externos e pela força dos fluxos. Algumas cidades se converteram no “lugar da memória” (Choay, 1965, op cit Mongin, 2009, p. 161), em que “o urbano se tornou um substantivo, nós assistimos ao desaparecimento do tipo de aglomeração que Ocidente denominou de cidade...” (Mongin, 2009, p. 161).

Da cidade industrial à cidade do consumo, ou da cidade da modernidade à cidade da pós-modernidade, rótulos que carregam um conteúdo de “ilusão”, como afirma Arantes (1998), mas que não é outra coisa que alternativas, “mas passos unificados de um mesmo processo de ajuste à sociedade a reviravoltas que dá o capitalismo para continuar o que sempre foi, e de cuja metamorfose a paisagem urbana é a fachada mais visível” (Arantes, 1998, p. 12-14). A autora faz uma crítica à arquitetura moderna na construção das cidades da América Latina e se expressa dizendo que agora querem reformar rotulando de pós-moderno; chamavam-na linha de “frente do progresso”, e agora já não é mais, porque os arquitetos se referem a sua obra chamando-a de cidade feia pelo modelo modernizante. Agora procuram encontrar um “lugar” com conteúdo simbólico forte, de práticas sociais sedimentadas na tradição como justificativas. A autora se pergunta se estas manifestações seriam uma iniciativa pós-moderna. Respondendo a si mesma, faz a crítica manifestando que as iniciativas do final do século XX, e continuando no XXI, de preservação do patrimônio histórico (arquitetônico), quanto o seu entorno, se transformaram em um discurso ideológico dos gestores urbanos “como formas de recomposição de uma identidade ou de uma vida social inexistente - uma espécie de panaceia que por vezes não passa de recurso publicitário, quando não, inclusive de inibição e controle cultural e social”. O que acontece na maioria das vezes “é uma espetacularização do urbano, uma espécie de cena de uma vida pública que faz muito tempo deixou de existir”. (Arantes, 1998, pp. 12-14).

Finalmente, analisaremos sucintamente os lugares da outra cidade global, aqueles dos territórios não hegemônicos, e que são frutos de suas próprias mãos. Aqui não existem nem urbanistas nem arquitetos querendo materializar as suas utopias.

Estes lugares de conotação fenomenológica são onde se realiza a essência da vida cotidiana. A experiência espacial dos sentidos a uma geografia da vida cotidiana. As práticas cotidianas da mobilidade espacial, ao trabalho, à moradia, são atitudes construídas materialmente através dos processos socioculturais que lhe dão sentido, que lhe outorgam significados, que formam a memória pessoal.

Os territórios, produzidos pelos efeitos da vida cotidiana, que é urbana e rural, é cultural, política, condição de gênero, de turismo, de trabalho. É a relação sociedade/território, materializada por pessoas a uma interação temporal intersubjetiva, em um processo de constante resignificação e de construção dos espaços de vida. Conclui Costa (2017, p. 62) “pensar alternativas de vida e representatividade culturais deve ser um esforço coletivo para maximizar condições materiais de existência e minimizar o estigma social que subjuga sujeitos e grupos latino-americanos”.

Sabemos que a população da chamada periferia, que sofreu um movimento de expulsão dos espaços centrais das metrópoles e de todas as cidades importantes, formam seus territórios com todas as classes de carências que não lhes permite viver intensamente a realização plena do urbano. Citamos Damião (2014, p. 1) que na sua dissertação sobre A ressignificação do espaço: Produção e circulação da cultura contra hegemônica nas periferias da cidade de São Paulo nos diz:

Esse movimento no espaço urbano que é resultado de uma fragmentação sócio espacial, lhes permite uma inclusão precária. A precariedade dessas circunstâncias constitui parte do social, do cultural e da identidade individual e coletiva, se esfacelam os sentimentos de pertença e de coesão que os indivíduos possuíam, assim outros elementos passam a ser incorporados ao humano como forma de restabelecer os referenciais de identidades perdidas.

Enfim, na visão dos lugares confrontados com o global, há nesta situação uma relação de contraste: um enfrentamento entre os territórios formados pela homogeneização racional, padronizada dos grupos de maior poder econômico, de forte influência do sistema econômico e os resultados da ordem local, cheios de sentimentos de pertença, que, a partir do lugar, respeitando a dinâmica do vivido, lhes incentiva a viver os coletivos, na essência de seus cotidianos, especialmente os culturais, em lutas simbólicas, na transformação de suas práticas de consumo, como no próprio viver dos seus cotidianos. As crianças e os jovens têm outros exemplos e outras manifestações do viver. Para terminar, são os territórios produto dos habitantes do “tempo lento”, em oposição aos do “tempo rápido” dos conectados no mundo globalizado, no pensar de Milton Santos.

Quais processos civilizatórios transformaram as cidades por meio de uso?

Resposta verificada por especialistas São exemplos de processos civilizatórios que tiveram grande impacto na formação destas cidades a expansão da infraestrutura, com novas rodovias, o aumento da população urbana, com a ocupação de áreas antes inabitadas, e o desenvolvimento das atividades industriais.

Quais processos civilizatórios transformaram a cidade de Ouro Preto por meio do seu uso?

Resposta.
Resposta:.
Explicação:.
Expansão da infraestrutura, com novas rodovias, mudondo as paisagens e permitindo que regiões distantes pudessem ser habitadas..
Aumento da população urbana, aumentou a porcentagem de área que eram inabitadas..

O que é processos civilizatórios?

“O Processo Civilizatório” (1968) é um ensaio desenvolvido como exigência prévia para o entendimento e classificação em relação uns aos outros dos diversos contingentes humanos que se conjugaram para formar as sociedades americanas de hoje.

Quais foram as marcas do processo civilizatório no Brasil?

A escravidão e a exploração foram as marcas desse processo civilizatório, que entre outros efeitos gerou intensa miscigenação (mistura de povos e etnias) no Brasil, o que também pode ser explicado pelo fato de que uma das formas de dominação adotada pelos colonizadores, além da violência física e psicológica, os ...