Quando saímos molhados de uma piscina é comum sentirmos frio utilizando conceitos científicos análise criticamente a afirmativa?

João dos Santos Martins Editorial

DE MAL A MELHOR

Três anos depois da mudança provisória para as instalações do Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL) em Chelas, a Escola Superior de Dança está novamente num limbo de onde, de facto, nunca saiu. Em condições mais higienizadas do que as anteriores, no antigo Palácio Marquês de Pombal, ao Bairro Alto, é certo, mas sem o espírito desse espaço, discentes, docentes e não docentes ocupam agora uma escola em bocados, dispersa por entre as salas vagas dos vários edifícios do ISEL. Não chove dentro, mas era melhor que chovesse. Há coisas que só se resolvem com crises. Desde pelo menos 2007, quando frequentei esta escola, que se fala num prometido novo espaço próprio em Benfica. Infelizmente, o problema não é só o edifício. Há um novo diretor por indigitar há vários meses por alegado vazio legislativo para contratar quem não faça parte do quadro da Escola. Um vazio que demonstra a disfuncionalidade a que instituições públicas, como esta, estão sujeitas. Uma escola de artes vive num equilíbrio entre transmissão e renovação. Deve ser permanentemente pensada e repensada. Não pode ser feita de pedagogos fixos que se dirigem a si próprios em rotatividade. Uma escola de artes tem de estar atenta ao presente. Tem de colaborar com os artistas que praticam. Tem de contribuir para uma interação contínua com o exterior, com a comunidade e as instituições culturais. Não pode estar isolada. A única escola pública de ensino superior para a dança do país vive há anos asfixiada e condenada. E não está só. Ao mesmo tempo que os alunos da ESD se insurgem numa greve para reclamar melhores condições, surge a notícia de que as obras de recuperação da Escola de Dança do Conservatório Nacional estão paradas há mais de um ano por conta de um conflito com o empreiteiro. O mesmo problema. A mesma solução. Uma escola dispersa, sem condições para a prática ou que a condicionam em grande medida. E não se fica por aqui. Trinta anos logrados de funcionamento do Forum Dança e as mesmas contrariedades. Um espaço precário, com infiltrações, humidade, falta de isolamento, um chão instável, ao ponto de os alunos terem de mudar de estúdio durante semanas de trabalho para evitar complicações de saúde.

Os três mais importantes polos de formação em dança do país estão em condições miseráveis. As razões são distintas. As responsabilidades também. Em comum têm a mesma degradação que impossibilita a concretização plena das suas missões.

Esta história não é nova e a narrativa está massacrada. O ensino da dança em Portugal nunca foi fácil. É isso que observamos num dos textos que publicamos, de Madame Britton, pedagoga e fundadora de uma das primeiras escolas de dança privadas para raparigas em Lisboa, em 1924. Britton debatia-se, então, não apenas com o preconceito da sociedade mas com o preconceito da sociedade em relação a si mesma, por dançar, a começar pela vida privada. Das suas memórias, publicamos um episódio de 1916, na então Lourenço Marques, que coloca em jogo a moral dominante da época na relação com a prática da dança. O relato termina em 1918 com o assolo da gripe espanhola, o que nos transporta para hoje e para a inevitável pandemia.

Ao fecho desta edição marcava-se o dia mais contagiante e mortífero da Covid-19 em Portugal, um desfecho dramático depois do enorme esforço para conter as infeções. Com o anunciado II Confinamento, os espaços culturais voltaram a fechar e a produção artística ficou em suspenso, ou em adaptação de suporte, passando ao registo online. Se é certo que não é nos espaços culturais, com as medidas em vigor, que os contágios parecem acontecer, é incontornável que sejam esses os primeiros a fechar. Para a sociedade, a cultura não representa o trabalho dos artistas e agentes culturais – já em si uma despesa para o Estado – mas sim o usufruto dos cidadãos e o seu lazer. Se é certo que os teatros, cinemas e museus proporcionam ajuntamentos informais inevitáveis, o fecho destes lugares que são de culto para os muitos que não encontram na religião a sua fé parece também indicar, aos olhos da boa moral, que a privação de arte é uma espécie de castigo do Estado para o mau comportamento dos seus cidadãos.

Num catálogo de 2011 de Cyriaque Villemaux, publicado entretanto pelas ed.______, um dos capítulos propõe “um ano sem dança e a ver vamos se sentimos a sua falta”. A proposta do autor não tinha em conta o presente contexto dramático, mas – de facto – passou-se entretanto um ano sem dança. Um ano sem sentirmos os corpos uns dos outros. Sem sentirmos a sua massa a suar e os corpos a latejarem uns nos outros. Sobre essa perda e a ressaca de dançar escreve o DJ e curador de festas de inclusividade queer Pedro Marum, na ânsia do ajuntamento. Também observando o espaço vazio deixado pelo contacto físico social, Daniel Pizamiglio convidou, durante o I Confinamento, várias pessoas para o OLHAR COMO SE FOSSE A PRIMEIRA E A ÚLTIMA VEZ. Esse encontro, por um lado, e performance, por outro, seria uma forma de criar um lugar de partilha a dois, o mínimo da experiência comum. Através do olhar atento do médico Miguel Teles revê-se em elegias várias a impossibilidade da relação que a pandemia gerou, colocando em prática um luto coletivo para ultrapassar a dor que a distância obriga.

Se este é um tempo de luto e de luta, também o é de cansaço. Bhenji Ra, artista e mother da House of Sle em Sydney reflete sobre a fadiga da capacidade de imaginação coletiva de outros mundos e futuros como causa maior do desamparo social. Quase a propósito, Bruno Leviron e Ignacio de Antonio fazem um exercício de imaginação para contrariar o seu cansaço político. Num ensaio que tanto tem de teórico como de ficção científica, os dois artistas, brancos, imaginam o futuro da dança sem branquitude, isso é, sem o privilégio e o predomínio que o projeto branco europeu faz perdurar sobre as outras cosmologias.

É também aos olhos deste predomínio e da necessidade da sua crítica que observamos de perto dois processos de transmissão em tudo semelhantes mas com repercussões distintas. Em primeiro lugar, a reinterpretação da peça de 2004 O Samba do Crioulo Doido, de Luiz de Abreu, por Calixto Neto, artista brasileiro de geração distinta, mas com uma história racializada comum. Levada a cabo num momento de imensa complexidade social no Brasil, esse trabalho, apresentado sobretudo na Europa, age hoje mais que nunca como diplomacia internacional para a imaginação política. 

Em segundo lugar, a construção de uma nova peça que a coreógrafa Eszter Salamon levou a cabo com a bailarina Vânia Doutel Vaz através do pressuposto da sua peça de 2010, Dance for Nothing. O complexo processo, que levou E. Salamon a decidir não voltar a apresentar a peça depois da sua estreia no Alkantara Festival 2020, é aqui refletido por Rita Natálio em diálogo com Vânia Vaz, evidenciando um conflito fértil entre sujeito e autoridade do trabalho.

Nesta edição abundante em narrativas, biográficas e artísticas, o investigador Jean Capeille escreve a partir da recensão crítica ao trabalho do artista norte-americano James Waring. Figura ausente dos cânones da história da dança, James Waring foi um dos precursores do movimento pós-moderno que produziu uma extensa obra entre a coreografia e as artes plásticas em livre trânsito entre a arte experimental, o vaudeville e o music hall. Neste ensaio observa-se a forma como, em especial, o trabalho de colagem de Waring em dança foi interpretado, discutido e disputado através de conceitos tradicionais muitas vezes pouco operativos.

Num lugar de incapacidade de classificação análogo, a coreógrafa Tânia Carvalho, que se move igualmente por vários suportes, reflete sobre os conflitos entre o que produz e a forma como é vista, de dentro e de fora do meio. Sendo alguém que rejeita por princípio nomear as coisas, a experiência do seu trabalho torna-se fundamental para decorticar o seu discurso. Numa entrevista alongada, meandra-se precisamente nesses lugares do não dito, que remetem para a experiência sensorial das obras e para a sua transmissão.

“O futuro está no que nos escapa e não nos pertence.” É esta a conclusão da frase serpenteante que J. M. Vieira Mendes vai construindo por adição de palavras, a frase que conquista o mundo e se retrai porque afinal o mundo eram muitas outras coisas. E a esta frase escrita em prosa contínua sem parágrafos nem pontuação contrapõe-se, por fim, o poema fonético de Micael Ferreira que ocupa a contracapa do jornal e no qual a grafia se torna um traço por entre as letras sem coreo. 

Coreia é o movimento que estão a ver.

João dos Santos Martins

Calixto Neto Luiz de Abreu A Décima Quarta Bandeira ou Um Presente pro Futuro

O espetáculo O Samba do Crioulo Doido, de Luiz de Abreu, foi criado no ano de 2004 e nos uniu em torno de um projeto de transmissão e remontagem para o festival Panorama Pantin, organizado pelo Festival Panorama em parceria com o Centre National de la Danse (Pantin), em dezembro de 2019. Ali começamos o nosso diálogo intergeracional-diaspórico-transatlântico, falando na língua do samba. Ou d’O Samba. Mas essa peça nos uniu pela primeira vez em Recife, em fins de 2005.

Esse primeiro encontro aconteceu no Teatro de Santa Isabel, uma joia de estilo neoclássico cravada no centro da capital do estado de Pernambuco. O teatro ganhou esse nome em homenagem à Princesa Isabel, aquela que assinou uma carta concedendo liberdade a todos os seres humanos vindos de África e seus descendentes mantidos em regime de escravidão para enriquecer a coroa portuguesa e posteriormente a elite instalada no Novo Mundo, num ato que ofuscou as lutas abolicionistas em curso no país e a alçou ao posto de heroína nas Histórias oficiais. O teatro foi inaugurado em 1850, 38 anos antes do tal ato heroico da princesa, e se encontra no que hoje se chama de Praça da República, que só viria a ser proclamada no Brasil 39 anos depois da abertura do teatro. Nessa praça se encontra um dos cinco Baobás da cidade do Recife, uma árvore em torno da qual xs cativxs, antes de cruzarem o Atlântico nos navios negreiros, tinham de dar voltas para deixar para trás suas lembranças, seus laços familiares e sociais — o ritual da árvore do esquecimento. Ali, naquela terra que um dia produziu quase todo o açúcar consumido na metrópole, ali, num teatro que é o retrato mesmo dessa história colonial eternamente atualizada nos sucessivos ciclos de exploração do país, ali, testemunhando nosso encontro, essa peça questionava a história do país a partir de uma perspectiva preta.

O Samba do Crioulo Doido nos uniu naquela noite. De um lado, um homem negro em posse do seu corpo, da sua história, da história do seu corpo. Do outro, um jovem bailarino boquiaberto com a aparição daquela possibilidade. Naquele tempo, não se ouvia falar em genocídio da população negra, não tínhamos números para isso no Brasil. Hoje sabemos que a cada 23 minutos um jovem negro é morto no país. E sabemos disso não porque chegamos a números absurdos, um ápice jamais visto. Até porque esse genocídio começou desde a chegada do primeiro ser humano escravizado no solo brasileiro. Sabemos disso porque durante anos construímos instrumentos para mensurar, dar números e mais dados para o estrago que o racismo estrutural faz na vida da população negra no Brasil. E esses instrumentos foram se consolidando nos anos que se seguiram à estreia d’O Samba. Entre 2004 e os dias de hoje, discursos foram liberados, vozes historicamente abafadas começaram a sair da grande noite. E numa disputa de narrativas em que corpos negros estão na linha de frente, pagando com a vida cada conquista, nos últimos anos a comunidade negra tem amargado a ressaca de maré, o slapback de parte da sociedade brasileira, que finalmente não esconde mais o fracasso do mito da democracia racial no Brasil, quase tão presente no imaginário coletivo quanto a ideia de que houve uma colonização branda, menos violenta do que em outros lugares.

Nesses quase dezessete anos de história, a peça já atravessou vários Brasis dentro do Brasil, dado o dinamismo dos acontecimentos do país. Mas numa lógica estranha, a realidade ao redor vai se adaptando à peça: O Samba não conhece o anacronismo. Talvez porque seja uma mensagem enviada ao futuro. Uma mensagem cujo indício maior é a proposição de uma nova bandeira nacional, a décima quarta bandeira. 

“Essa bandeira com buracos, ela significa que a gente pode… é a nossa bandeira e a gente pode criar esses buracos. A gente pode criar esses intervalos dentro dessa coisa dura, fria, longe da gente. A gente pode humanizar essa bandeira. E é no sentido de realmente se perder dentro das fibras desse tecido, desse tecido social que é o Brasil. É de entrar dentro desse tecido, sair de dentro desse tecido, esse tecido entrar em mim. Sou eu, essa bandeira sou eu!”

Nessas palavras de Luiz de Abreu que estão no filme O Samba do Crioulo Doido: régua e compasso (Calixto Neto, 2020) se encontra o anúncio daquilo que consideramos ser uma das possibilidades de olhar pra esse elemento cênico, um dos poucos objetos usados no espetáculo. Essa proposição de bandeira tem 1,90 m x 1,20 m, é estampada simetricamente com pequenas bandeiras do Brasil e, nas linhas que formam esse conjunto de retângulos, losangos e círculos, há buracos estrategicamente pensados para os fins performativos. No espetáculo ela é usada como figurino, num jogo de esconde-e-mostra, ressignificando o olhar sobre um corpo que esteve o tempo inteiro quase nu (exceto por um par de botas prateadas), um objeto para ser performado, como um Parangolé de Hélio Oiticica. 

A atual bandeira do Brasil está em vigor desde 1889, ano da proclamação da república. Esse país, batizado com o nome da mercadoria que um dia foi a mais extraída do seu território, é hoje oficialmente representado pela sua décima terceira bandeira. E vez por outra se inventam outras versões, como aquela imaginada por Abdias do Nascimento em sua saudação a Oxóssi, o orixá da caça, do conhecimento, das florestas, uma das divindades representadas nas religiões afro-brasileiras. Ou aquela sugerida pela escola de samba Mangueira em 2019, nas cores de verde, rosa e branco, com os dizeres “índios, negros e pobres” no lugar do original “ordem e progresso”.

A última onda do ufanismo nacionalista no Brasil, em curso desde o golpe democrático contra Dilma Rousseff, se valeu de uma ideia ultrapassada de nação para legitimar a sua necropolítica, nos termos do filósofo camaronês Achille Mbembe. E o símbolo escolhido para representar essa retomada dos “valores nacionais” foi obviamente a bandeira. O verde-amarelo ganhou as ruas em camisas da Confederação Brasileira de Futebol, mesmo que a nossa memória mais curta ligada a esse patrimônio nacional seja o vergonhoso 7×1 contra a Alemanha em 2014. 

As bandeiras tomaram as ruas: nos figurinos dos jovens em flashmobs que misturavam dança e cantos de “Fora Dilma, Fora PT” e, posteriormente, em apoio ao presidente Bolsonaro; nos ombros dos “cidadãos-de-bem” protestando na Avenida Paulista, em São Paulo, acompanhados das suas empregadas domésticas vestidas de branco, numa reprodução funesta das imagens coloniais de senhores escravocratas com suas mucamas a tiracolo; nas mãos de deputados que, em nome de deus, da família e da honra, depuseram uma presidenta eleita sem crime de responsabilidade.

Mas essa bandeira não é um signo frio, distante, afastado de nós. Ousamos ter esperança e consideramos a décima quarta bandeira como uma reapropriação desse signo, uma possibilidade de aproximação, de mudança, de retomada. Porque ela é o símbolo de um povo, e o povo, por sua vez, não é uma massa imutável — é dinâmico, está sempre em movimento.

Em 2020 aconteceram as eleições municipais. Foram escolhidos xs prefeitxs, vice-prefeitxs e xs vereadorxs das 5.570 cidades do país para os próximos quatro anos. E pode-se observar que, como na nossa décima quarta bandeira, na política também é possível encontrar buracos, lacunas, portais, passagens, janelas com vistas para outras realidades, outros desejos, outros mundos possíveis, outras lógicas de existir. Nessas eleições, as correlações de forças no país não mudaram radicalmente. Mas algumas pequenas revoluções foram possíveis graças ao trabalho lento, potente e consistente de agentes políticos, na luta dos grupos minoritários que formam a maioria do país. A representatividade alcançada nas eleições ainda está muito aquém do ideal, mas em 2020 houve um número recorde de candidaturas negras e um aumento da presença preta nas câmaras municipais. Mais de 80 vereadorxs LGBTQI+ foram eleitxs pelo país, sendo 25 pessoas trans, 7 delas as mais votadas em suas cidades. Com destaque para Duda Salabert, vereadora mais votada da história de Belo Horizonte, e Érika Hilton, mulher trans, preta e periférica, a mais votada desse ano em São Paulo. E num cenário de descrédito com a capacidade de mobilização da esquerda, assistimos ao sucesso da candidatura de Guilherme Boulos, integrante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, chegando solidamente ao segundo turno na maior e mais populosa capital do hemisfério sul, São Paulo.

A décima quarta bandeira representa uma revolução lenta. Ela é a única bandeira possível para esse país nos dias atuais porque ela dá espaço a outras possibilidades de corpo: “o corpo marginal, o corpo mendigo, o corpo vagabundo, o corpo prostituto, o corpo bêbado, o corpo criança abandonada, o corpo capoeira, o corpo valentões, os corpos causadores de conflitos sociais e os corpos perturbadores da ordem pública.”

A nova bandeira não apazigua, mas justamente convida a habitar os conflitos nas lacunas. Porque ela é um símbolo de poder. E o poder é como o povo, muda.

Hastearemos a nova bandeira com o corpo, fazendo dela o nosso outfit de runway, nosso vestido curto, nossa roupa de gala, nossa cauda esvoaçante. Nossa caravela, pronta para — agora sim ! — descobrir esse novo país chamado Brasil.

Bruno Levorin Ignacio de Antonio Antón O Futuro É uma Dança Sem Nós

[desejos para a desaparição da branquitudei]

Caro leitor. Não leia. Caro leitor. Baile. Siga pelas margens que estamos propondo, confiando no sentido da água que plantamos.

A dança mudou de nome três vezes desde a crise, assim como ameaçou fazer a fotografia quando deixou de escanteio a daguerreotipiaii no início do século XX. Nos anos 1950, quando a foto doméstica e de consumo se tornam populares, a máquina passa a ser do tamanho das mãos e deixa de ser do tamanho de cabeças.

Chegamos ao século XXI. Somos um coro apocalíptico motivado pela ascensão das câmeras digitais, iphones, xiaomis e galaxies em livre concorrência viral e supreme atenção a cada print de um story qualquer.

Aconteceu com a televisão, filmes, séries, computadores, telas, tudo isso matou o rádio. Embora historicamente estejamos vivendo o momento em que mais pessoas saibam ler e escrever e dedicam mais tempo a essas tarefas, livros e bibliotecas públicas ou privadas estão fadadas ao vazio, ao desaparecimento da presença humana.

Recebemos constantemente mensagens, escrevemos outras. Os idiomas escritos e lidos possuem a plasticidade típica da oralidade. São encurtados, interpretados, misturados com figuras, memes. O pensamento não está nas páginas brancas e nas letras pretas, não está nos milhões de PDFs nem na literatura. Novos códigos são estabelecidos em um fundo de tela que, caso enfeitiçada, racha a película.

Com a democratização dos telefones móveis, a produção de imagens, textos e histórias excede e supera o fim das coisas. E falando sobre a dança, o palco, ao que fazemos e onde criamos sentido – o que mesmo aconteceu com o teatro, as caixas-pretas, desde a pandemia de 2020 até hoje, 2040? A dança é mais dança do que nunca, seguindo suas epistemologias mais radicais, seus vocabulários mais disruptivos e sem nós, coreógrafos brancos. A dança está para além dos dispositivos de representação onde estava inserida, onde nós a inserimos.

É bom lembrar que a dança está no mundo sem ser chamada de dança há algum tempo histórico que antecede e supera a Europa. A França Imperial decidiu dar nome a mover-se de um lado para o outro como danse. Nunca souberam dançar de fato. Já em roubar e sequestrar foram especialistas. Ao acordar e dormir, ao caminhar e gesticular, com mãos e bocas, palavras e pensamentos, ao comer, se vestir, o que inclui desnudar-se, sudacamenteiii se dança. Na ancestralidade que as nossas ancestralidades brancas tentaram apagar, a dança está para curar, para comemorar a passagem das estações, para exaltar a vida em comunidade, para amar e guerrear com respeito, para ninar e fazer futuro. Ela assim permanece em alguns territórios que resistem cotidianamente às coreopolíciasiv, onde a palavra polícia e estado não existem nas línguas originárias. Já no hemisfério norte, que carrega em suas costas centenas de anos de homicídios cometidos por uma gama complexa de vírus epistemológicos e terrorismos de estado – a palavra terror é inaugurada na dita política institucional na França de 1793, quando jacobinos decidiram guilhotinar milhares de franceses naquela revolução burguesa –, a dança tornou-se um pacto de manutenção de poder das elites brancas e pensamento para mover exércitos coloniais. Sim, o mesmo povo que inventou a palavra danse, inventou também a palavra terrorv e uniu as duas em uma etiqueta barrocavi de excelência.

Não era necessário conhecer o coreógrafo estadunidense Steve Paxton para sabermos que o corpo pedestre é um ente coreográficovii. Bastava irmos a um festival de dança, performance, teatro, música e cinema circunscritos pelas suas especificidades raciais, geográficas e sociais para encontrarmos essa compreensão corpórea que parte de outras formas de fazer e pensar. Mas esse regime de inclusão excludente, que aconteceu com frequência durante algumas centenas de anos nos circuitos artísticos, onde existiam contextos brancos que se compreendiam como norma e universais, “detentores” do direito de falarem sobre o mundo, a humanidade, a abstração, o inaugural e qualquer outra coisa que sintam vontade, sustentados e mantidos pelos outros contextos que eram circunscritos naquilo que nós nomeamos como específicos, não nos permitiu encontrar as genealogias dos conhecimentos e pensamentos sobre as histórias “pedestres”.

Nos terreiros de candomblé sempre há pensamento em dança, ao contrário de igrejas onde, no máximo, pode-se encontrar os famosos “dois passos para lá e dois para cá”, com culpa e joelhos no chão. Nas manifestações que lutam por melhores direitos dos trabalhadores, a ação direta exige dançar. No compartilhamento do verbo comer em restaurantes populares erguidos por imigrantes em todas as partes do mundo, não existe mastigar sem gesticular com mãos e garganta. Tudo isso para dizer que foi nas ruas e nessas comunidades que foram subjugadas a partir de suas especificidades que os dispositivos arquitetônicos de representação mais efetivos da dança insurgiram. Tudo isso para dizer que a dança viveu e vive sob a emancipação das políticas da vida e não da morte e do controle.

Em 2020, a dança branca se esgotou. A premissa de que vivíamos sob uma prática e um contexto de dança contemporânea supostamente democrática ruiu. John Maynard Keynes, o estado de bem-estar social, toda a ideia de um capitalismo “feliz” durou o tempo necessário para que as elites wannabe Dinamarca voltassem a ser o que sempre foram, totalitárias, brancas e medíocres. Ficou evidente com a pandemia que as danças somáticas, por exemplo, tornaram-se resquícios radicais dos privilégios brancos, tratando apenas dos “traumas” que esses corpos não racializados desenvolveram para permanecerem vivos em seus berços de ouro e prata, inca e maia.viii Sem contar que, na crise da Covid-19, enquanto artistas brancos decidiram se especializar em yoga, os artistas pretos e racializados permaneceram na resistência e, como sempre, em uma vida dupla para sustentar suas famílias, estavam também nos chamados serviços essenciais, muitos deles em ambientes quemarcam o corpo e reduzem a média de vida sem tempo e direito a eutonia, pilates, rolfing e/ou feldenkrais.

A universalidade da dança cantada por Isadora Duncan ajudou a inaugurar no ocidente o American way of lifexix. Depois disso, nem a pós-modernidade foi capaz de abrir mão da sua antropocentricidade branca. Foi doença e desespero ao ver, dia após dia, corpos negros e racializados serem assassinados e, voltando então às câmeras, filmados com os aparelhos celulares, que fez com que a nossa dança branca começasse a discutir vida, raça e entendesse a necessidade de sua própria desaparição enquanto projeto.

Mas não foi assim fácil. Afinal, entender o nosso próprio desaparecimento exige um movimento analítico intenso. Houve artistas no mercado europeu que decidiram colocar nos palcos aquilo que compreendiam esteticamente enquanto “marginal”. É interessante analisarmos essa necessidade “crítica” de afirmar nosso antirracismo e decolonialidade na medida pública do espetáculo. É uma característica estudada no âmbito da psicologia social racial esse comportamento da branquitude de nem sempre, sobre aquilo que aprova e desaprova publicamente, ratificá-lo no seu espaço privado.x Enfim, a culpa é sintoma, já a responsabilidade é falta.xi

Em 2020, nos dizíamos aliados das causas raciais e decoloniais e pensávamos que a representação resolveria os problemas de distribuição. Demorou para entendermos que os teatros onde estávamos nos apresentando e os circuitos em que estávamos inseridos na Europa faziam magicamente com que essa tal “marginalidade” se transformasse em fetiche, norma, exotização, tendência e notas de desculpa branca em forma de aplauso triplo.

Mas não para por aí. O último suspiro branco veio daquilo apelidado de idealização do precário.xii E se em vez de artistas fôssemos pedreiros? Acordamos cedo e vamos ao nosso trabalho representados por uma empresa terceirizada. Ela nos diz que não conseguiu arrumar os materiais e ferramentas básicas para se trabalhar nem equipamentos de proteção. Todavia, justificam que ali no terreno, no meio da sujeira planificada onde nasceria mais um horrível edifício, era possível encontrar algumas coisas e criar de forma improvisada esses equipamentos ausentes. Garanto que se fôssemos nós, artistas brancos em dada situação, hipnotizados pela idealização do precárioxiii, e por amor tóxico, acharíamos lindo a nossa “potência” criativa em levantar um prédio todo usando dois palitos e um pedaço de arame. Sem contar que, se vivos saíssemos dessa situação, em nossas mãos estaria um prêmio chamado: a meritocracia dos “fudidos” com herança S, M, L e/ou XL.

E se fôssemos, em 2021, o ápice do neoliberalismo?

Quando saímos molhados de uma piscina é comum sentirmos frio utilizando conceitos científicos análise criticamente a afirmativa?

Oxalá

A palavra futurum vem do particípio do verbo sum, esse. Digamos que futuro seja no étimo latino um tridentexiv formado por: aquilo que teria sido/estado presente na experiência mas que não se cumpriu, o que é/está na potência de qualquer ato no presente e naquilo que pode vir a ser/será enquanto possibilidade. É um espectro entre o que teria sido, o ser, o que haverá de ser e o devir, o que pode vir a ser. Evidente que o futuro percebido em nossa branca tradição cultural – quero dizer a católica, monoteísta e transcendental – é um ponteiro que segue por uma única direção, o que costumamos chamar de progresso.

O presente é impossível? Nossa própria capacidade de entender nós mesmos no mundo nos leva a colocar tudo no passado e projetar o possível nas condições de um futuro mais ou menos imediato. A dança que existe fora do projeto da branquitude, material de pensamento e ação, lugar de afetos, problematiza isso e reivindica sua condição presencial. A capacidade de fazer, produzir movimentos, mover-se junto das coisas são questões que habitam a impossibilidade e o desejo do presente em seu potencial político. Portanto, esta dança – e talvez a coreografia – sejam lugares onde podemos realizar as nossas dobras e encararmos de frente as nossas contradições a partir de suas escutas.

O futuro é um constante movimento para os lados, uma aceleração contínua da qual participamos como partículas expansivas em nível microscópico. Ele não é frente e também não é costas. É pó, bando e multidão. O futuro, para nós brancos, é um desaparecimento constante de nós, é deixar de ser junto do tempo para com ele extinguir a disseminação das nossas violências. A dança, não a danse, é o campo de excelência dessa nossa própria extinção enquanto projeto. Instituir a presença para além dos nossos campos de visibilidade pode nos ajudar a barrar as noções de reprodução do capitalismo e desarticular suas hierarquias dessas práticas. Essa ausência pode começar por gerar uma dança branca menor. Uma dança produzida a partir do tátil e de seus próprios limites críticos, um caminho que nos permita ampliar a nossa consciência e potencial político crítico para verticalizar uma conduta ética com tudo que ainda produzimos no mundo.

O futuro é um conjunto de ancestrais que foram mortos por nós e ressuscitaram mais fortes. Negando todo e qualquer tipo de extrativismo, essas entidades protegem um oceano de céu e terra, sustentam e ampliam seus conhecimentos sobre a vida e brincam fazendo piada sobre nós e nossos complexos de salvação. O futuro é um conjunto de aldeias que riem da civilização dançando seus problemas e alegrias.

No futuro não há polícia. No futuro há política.

Oxalá, há mundo e dança sem nós por vir.


i Tratamos aqui da branquitude como um conceito e um projeto ideológico. Para evidenciar nosso ponto de vista, incluímos nesta nota um quadro de 8 tópicos sobre a branquitude, apresentados por Ruth Frankenberg:

1. A branquitude é um lugar de vantagem estrutural nas sociedades estruturadas na dominação racial.
2. A branquitude é um “ponto de vista”, um lugar a partir do qual nos vemos e vemos os outros e as ordens nacionais e globais
3. A branquitude é um locus de elaboração de uma gama de práticas e identidades culturais, mas muitas vezes não marcadas e não denominadas como nacionais ou “normativas”, em vez de especificativamente raciais.
4. A branquitude é comumente redenominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe.
5. Muitas vezes, a inclusão na categoria “branco” é uma questão controvertida e, em diferentes épocas e lugares, alguns tipos de branquitude são marcadores de fronteiras da própria categoria.
6. Como lugar de privilégio, a branquitude não é absoluta, mas atravessada por uma gama de outros eixos de privilégio ou subordinação relativos; estes não apagam nem tornam irrelevante o privilégio racial, mas modulam ou modificam.
7. Branquitude é produto da história e é uma categoria relacional. Como outras localizações raciais, não tem significado intrínseco, mas apenas significados socialmente construídos. Nessas condições, os significados da branquitude têm camadas complexas e variam localmente e entre locais; além disso, seus significados podem parecer simultaneamente maleáveis e inflexíveis.
8. O caráter relacional e socialmente construído da branquitude não significa, convém enfatizar, que esse e outros lugares raciais sejam irreais em seus efeitos materiais e discursivos.

Ruth Frankenberg, “A miragem de uma branquidade não-marcada”, em Branquidade: identidade branca e multiculturalismo, org. Vron Ware (Rio de Janeiro: Garamond, 2004), 307-338.


ii Primeiro processo fotográfico a ser comercializado com o grande público nos fins do século XIX.


iii Expressão pejorativa usada na Espanha para identificar e racializar imigrantes latino-americanos que vivem em território ibérico.


iv Conceito elaborado por André Lepecki que compreende coreografia como um lugar para refletirmos as produções de poder e discursos entre as noções estéticas e políticas, nos dá o entendimento, de forma não metafórica mas material, dos modos de agir e pensar dos estados autoritários e da capilarização de seus dispositivos biopolíticos. Ver André Lepecki, “Choreopolice and Choreopolitics: Or, the Task of the Dancer”, TDR/The Drama Review, 57, n.º 4 (2013): 13–27.


v Ver Aline Rabbelo, O conceito de terrorismo nos jornais americanos: uma análise do New York Times e do Washington Post logo após os atentados de 11 de setembro. (Tese de mestrado, Rio de Janeiro, PUC, 2006), 20-21.


vi Ver José Ignácio Roquette, Código do bom-tom: ou regras de civilidade e de bem viver no século XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 1997). Publicado originalmente em 1845, teve como objetivo normatizar a vida cotidiana dos brasileiros, “orientando-os” nas suas condutas pessoais e educação gestual. A referência para tais modos eram importadas das nobrezas europeias. A dança dos salões teve um importante papel na manutenção desta ética perversa servindo como ferramenta de educação e contorno colonial.


vii O que está em jogo nessa afirmação que fazemos no texto é: até quando teremos a dança estadunidense branca como referência para a nossa produção de conhecimento? Onde está a literatura, a história e sua devida distribuição para o mundo dos outros intelectuais, bailarinos e artistas do outro hemisfério que trabalham sobre esses conceitos e práticas no mesmo tempo histórico e até mesmo um tempo anterior ao de Steve? Como diz o artista plástico brasileiro Traplev em recente obra exposta na cidade de Salvador, O segredo do futuro tá na história. Sendo assim, se há vontade de pensar no futuro, temos que antes repensar e entender que histórias estamos insistindo em contar.


viii Ficção inspirada pela plataforma Contemporary dance and whiteness: http://danceandwhiteness.coventry.ac.uk/, núcleo de pesquisa situado em Londres, coordenado pelas investigadoras Royona Mitra, Arabella Stanger e Simon Ellis.


xix No capítulo 3, America Makes Me Sick!’’: Nationalism, Race, Gender, and Hysteria, A. Hewitt debate sobre a relação entre a propositiva afirmação gestual de Duncan, produto da ideia de liberdade dos corpos em estado natural de movimento. O autor organiza a importância que a performatividade dos corpos teve para a produção de linguagem e identidade americana no começo do séc XX. “America is not only the medium for the realization of humanity: humanity is the medium for the realization of America.” Andrew Hewitt, Social Choreography: Ideology as Performance in Dance and Everyday Movement (Durham e Londres: Duke University Press, 2005), 124.


x Ver Lourenço Cardoso, “Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-racista”, Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 8, n.º 1 (2010): 607-630.


xi Vale lembrar como a noção de liberdade nos séculos XVII e XVIII, conceito elaborado e discutido pelo Iluminismo europeu, apresentava-se como eixo fundante daquilo que os filósofos da época organizavam por “humanidade”. Humanidade esta que exclui todas as relações escravocratas estabelecidas nas colônias. Ver David, Dabydeen, Hoggarth’s blacks: images of blacks in eighteenth‐century English art (Athens: University of Georgia Press, 1987 [1985]), 21‐23).


xii “O capitalismo artista tem de característico o fato de que cria valor econômico por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como sistema conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações, de encantamento.” Ver Jean Lipovetsky, A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista (São Paulo: Companhia das Letras, 2015), 43.


xiii O trabalho hiperflexível e a precariedade têm invadido a dança dentro e fora dos palcos, onde cada um é empreendedor de si, um investidor de seu próprio capital simbólico. Ver Bojana Kunst, Artist at Work, Proximity of Art and Capitalism (Charlotte: Zero Books, 2015), 141.


xiv Pedimos licença para a produção de uma relação simbólica entre Exu, orixá da comunicação, porta-voz entre nós e os deuses no candomblé, e a concepção de tempo que estamos desenvolvendo no texto. Ver Reginaldo Prandi, “Exu, de mensageiro a diabo. Sincretismo católico e demonização do orixá Exu”, Revista USP, 50 (junho/agosto de 2001): 46-63.

Rita Natálio Vânia Doutel Vaz Diamante

Quanto tempo há para falar e quem tem o lugar de fala? Ser ouvido é por si só um privilégio. Quando alguém sabe ter lugar para falar mas escolhe não o fazer por timidez, estará a tomar uma posição privilegiada? [Guião de Still Dance for Nothing de Eszter Salamon com Vânia Doutel Vaz, 2020]

DIAMANTE

Conversas gravadas por videoconferência entre Vânia Doutel Vaz e Eszter Salamon entre maio e outubro de 2020 foram insumos para processos produtivos nada aleatórios. Destas conversas foi feita a prospeção, a extração e o polimento de um texto original em inglês, que se transformou no fundamento da recriação do solo Dance for Nothing, de Salamon, originalmente estreado em 2010 e atualizado no ano pandémico de 2020 como Still Dance for Nothing, desta vez uma colaboração entre Vaz e Salamon.

O texto contou com o apoio dramatúrgico da poeta, arte-educadora e investigadora de estudos pós-coloniais Raquel Lima e apresenta-se aqui em fragmentos traduzidos para a língua portuguesa por Vaz e revistos por Rita Natálio. Concebido como guião de uma performance oral e dançada, pode-se perguntar o que é um texto de uma performance sem o corpo que o chama. E de quem é esse texto? A utilização breve de pontuações como esta […] ou a presença de várias frases juntas no ajuntamento de um parágrafo contrastam com a experiência desejada da performance, onde nenhum fluxo de pensamento é atravessado pela fronteira gráfica do ponto final ou da vírgula, mas antes expandido pela respiração e o fluxo de movimento sempre aberto.

O texto apresenta (ou representa) motivos importantes da biografia de Vânia Doutel Vaz, marcada por importantes trânsitos coloniais (os seus pais nasceram e viveram por muitos anos em Angola), geográficos (Vaz nasceu em Lisboa, e viveu oito anos em Nova Iorque e dois anos na Holanda) e emocionais (a influência da marcação racial sobre o seu contexto laboral na dança e na sociedade). O texto é a fala invocando e presentificando o corpo não-branco de Vânia, nutrindo o seu corpo em texto, marcando a história. O texto é sempre por tudo e para todes, porque é a vida a desdobrar-se como nexo do corpo que dança, e por isso gera uma interferência contínua no ato de mover-se. Nunca um pretexto.

O solo Still Dance for Nothing estreou em novembro de 2020 no Alkantara Festival, em Lisboa, na Culturgest, e contou com três apresentações com cerca de 75 espectadores em cada dia. A peça consiste numa estrutura dançada e falada em simultâneo por Vânia Vaz a partir do enunciado original da peça Dance for Nothing, de Eszter Salamon. Em 2010, Salamon performava também uma partitura coreográfica e outra textual (no caso, a obra Lecture on Nothing [1949], de John Cage). Em Still Dance for Nothing, Vânia Vaz parte da sua biografia como partitura, ativando elementos da sua identidade e racialidade como “material textual”, enquanto improvisa a partir de um arquivo coreográfico que lhe é próprio, desenvolvido e polido ao longo dos ensaios mas não diretamente conectado ao texto. Embora se trate da mesma estrutura, não é simples a passagem entre a fortuidade e a não-coincidência entre texto e movimento de Dance for Nothing, e o gesto de marcar a coreografia pela performatividade do debate racial em Still Dance for Nothing.

Talvez por se bater num limite nada consensual sobre quem pode ser sujeito ou objeto da representação, Still Dance for Nothing não será mais apresentada por decisão de Eszter Salamon. Considerando que a obra tratou de materializar aspetos da identidade racializada de Vaz como performance, ao mesmo tempo que rememora o trabalho coreográfico de Salamon, esta decisão abre um espaço de reflexão onde é importante desdobrar elementos que constituíram a performance apresentada em 2020, assim como o processo de criação e colaboração. Inicia-se aqui o desejo de expandir e problematizar esse movimento através de um debate amplo sobre a presença, representação e representatividade de vidas não-brancas nas artes performativas, atualizando as formas críticas de fazer e ver performance. (Continua…?)

Nota:
Escrevi este texto, ainda em processo, em diálogo com Vânia Doutel Vaz. Mais do que uma análise crítica e uma posição sobre o trabalho, a publicação deste texto e de excertos da tradução do texto original de Still Dance for Nothing propõe desenrolar um diálogo sobre processos artísticos e extravasa a colaboração pontual de Vaz e Salamon.

OBRA DE ARTE

[…]

Eu tenho pensado na minha posição enquanto negra de pele clara e os seus privilégios, assim como o direito à inclusão e a experiência de tokenização. Penso nos privilégios que tinha, e ainda tenho, na complexidade e nas tensões que criam na minha vida. Eu nunca saberei se fui convidada a ingressar numa companhia de dança na Holanda por ter talento ou pela minha aparência. Será que foi “ela tem pele escura e talento”, ou “ela tem talento e pele escura”? Será que a companhia desafiava o status quo do ballet através da inclusão?

A culpa da branquitude. Ou a cumplicidade da branquitude? Numa companhia em que trabalhei em Nova Iorque, a diversidade era amplamente encorajada e respeitada e a pele escura era um motivo de orgulho. Eu senti-me fortalecida; pensei ser um passo avante. Ou tratava-se de uma jaula mais confortável? A questão da raça foi resolvida em troca da estabilidade financeira. A promessa de uma individualidade e aparente autonomia artística. Mas o que eu quero dizer é que o movimento gerado pelos bailarinos foi confortavelmente extraído sem qualquer crédito à sua autoria. Encheu-me o ego e os bolsos. Foi como vender a minha alma ao diabo.

Não é tudo preto no branco; há também tons de castanho.

Identificar onde está o privilégio é mais complicado do que parece. Na minha família há todas as variantes de cor de pele. Eu tenho várias memórias, mas não acredito que me tenham traumatizado. Fui sempre capaz de me distanciar. Como naquela vez, com a minha prima, em que estávamos na sala. Ela tinha a cabeça deitada no colo da irmã que lhe escovava o cabelo, em total agonia. Era tão doloroso. Éramos miúdas e eu devia estar a olhar chocada ao ver a dureza daquele tratamento. Via que estava em sofrimento e isso deixou-me triste. E ela olhou para mim e disse: “Estás a olhar para onde? Tu tens um cabelo bom e toda a gente gosta mais de ti por isso.” Eu fui o alvo perfeito da sua raiva: a prima de pele clara com um bom cabelo, a olhar para ela. Magoou-me, mas foi óbvio que a zanga dela era com o mundo, assim como quando qualquer criança se sente injustiçada. Depois de escovar ainda é preciso puxar o cabelo da raiz para trançar, mais uma longa jornada de dor.

Histórias como esta da minha prima fazem parte da minha memória, e há mais a dizer sobre elas do que a forma como as conto ou as experienciei. São histórias duras, por isso não as quero recontar: são a dor da minha família. A minha família decidiu não passar a dor adiante para mim. E qual é a minha responsabilidade? Não a carregar? Toda a minha vida evitei ir mais fundo em relação ao que sou ou qual a minha responsabilidade nesta sociedade para não tender à vontade de julgar e culpar toda a gente e viver numa ira infinita.

Mas então a voz é fragilizada. Ser bailarina nunca quis dizer ser silenciada. E eu sempre tentei conectar-me com o mundo exterior à dança, ao mesmo tempo que precisava de dominar este corpo sem voz. Decidi trabalhar com o corpo e viver com a minha consciência à parte.

Há uns anos, conheci um grupo de franceses brancos anarcas. Eram piratas que estavam a trabalhar num barco atracado numa pequena cidade da margem sul que a maioria dos lisboetas nem sabe que existe: Sarilhos Pequenos. Enquanto passava dias com eles fui-me fascinando pelo modo de vida Robin dos Bosques que eles levavam. E dei-me conta de que partilhava da mesma revolta contra a sociedade. Mais tarde, quando eventualmente navegávamos rio afora, um deles disse: “Todos temos uma ligação nesta história colonial. A tua família teve de deixar o país onde nasceram e por isso tu nasceste aqui. Temos frentes diferentes na mesma batalha.”

Eu tenho um fascínio por anarcas, ocupas, e entendo que vou construindo a minha subjetividade através das minhas relações com pessoas brancas. Estabelece-se um diálogo quando, na maioria das vezes, tenho de lidar com os problemas dos brancos. Como se os meus problemas fossem invisíveis. Mas é óbvio que eu sofro e me deparo com obstáculos diariamente. Devemos falar de todos os problemas. E esse diálogo é poderoso, informa o quanto essas relações me contaminam, influenciam a minha construção de sujeito e como a posso desconstruir.

Quando vivi em Nova Iorque perguntavam-me “o que tens a dizer?”. E eu comecei a tomar consciência das vozes que escolhia ouvir, de onde recebia as notícias, quem lia, e comecei a questionar essas perspetivas.

[…]

A minha mãe nasceu em Angola.

Os seus pais nasceram em Angola.

A mãe da sua mãe nasceu em Angola e a sua avó, a minha tetravó, nasceu em Portugal.

O pai da minha bisavó nasceu em Angola e o seu pai em Portugal.

O meu pai nasceu em Angola.

A sua mãe nasceu em Angola.

O seu pai nasceu em Portugal, os pais do seu pai, avós e bisavós nasceram em Portugal.

O pai da avó do meu pai nasceu em Angola e a sua mãe na África do Sul. O pai da mãe do meu pai nasceu em Angola.

Hoje em dia, há pessoas em movimentos migratórios pelas mais variadas razões. E nem sempre há um termo exato para cada um desses movimentos. Há várias definições para pessoas que são forçadas a sair das suas casas: imigrantes, exilados, refugiados, requerentes de asilo. E também há o caso dos retornados. Um retornado é uma pessoa que tinha ou recebeu nacionalidade portuguesa para voltar ou ir para Portugal quando os territórios colonizados reconquistaram a sua independência. Dos retornados faziam parte também negros e mestiços, mas só aqueles que conseguiam provar ancestralidade portuguesa.

Quando penso naqueles que voltam para casa, para as suas famílias, propriedades e pertences, também penso naqueles que deixam tudo para trás e chegam a sítios onde nunca estiveram.

Há a história de uma adolescente. Tinha uma mochila nova com um padrão tropa. Ela adorava aquela mochila e mal esperava poder usá-la. Esse dia nunca chegou. Uma vez os soldados entraram-lhe casa adentro e levaram-lhe a mochila assim como outros pertences da família. Ela convenceu-se de que os soldados levaram a sua mochila porque condizia com os seus uniformes. São histórias que contamos e estas formas de re-escrever as nossas memórias são atos de resiliência. Alguém disse: “Ao contrário do caracol, carregamos a casa dentro de nós.”

As minhas memórias de infância têm maioritariamente lugar na casa da minha avó materna. Era um rés do chão. Mesmo em frente havia uma piscina pública de três patamares que no verão se enchia de água e nós brincávamos lá. Do outro lado havia um jardim, um parque, um campo de jogos e um parque de estacionamento.

[…] É na margem sul. Com o passar do tempo, o rio Tejo também se tornou uma barreira psicológica. Estes bairros foram criados para dar casa a pessoas que tiveram de fugir dos seus países para escapar das guerras. Estas comunidades ainda existem na periferia.

A primeira vez que fui a África foi para fazer uma tour de gogo em Marrocos. Convidei uma amiga para ir comigo, formando um duo. Ao fazer gogo senti-me empoderada. Havia uma espécie de reconhecimento naquilo. Sentia clareza no que fazia e o foco era indubitavelmente em mim. Na dança comercial, na qual também trabalhei, os corpos são necessários para tornar o show mais interessante. Estão ali para decoração. Expõem-se corpos como se fossem coisas. Mais tarde, esta mesma amiga convidou-me para ir fazer um show e ser back-up dancer num concerto em Luanda. Ficámos hospedadas na ilha do Mussulo. Como tínhamos viajado de noite, só ao acordar é que nos demos conta de onde estávamos: um paraíso de vegetação tropical! Havia um buffet da mais variada comida e, para meu espanto, era exatamente como a da minha avó materna. Até o detalhe de como se cortavam as batatas. Lembro-me de pensar: “Agora entendo de onde tudo isto veio.” Revi-me na comida e pude conectar-me. […] A caminho do aeroporto, de regresso a Lisboa, o irmão da minha mãe estava lá à minha espera com muita comida para eu levar. Isto foi um marco; eu sabia o que era estar em Portugal e receber toda a comida que nos enviavam de Angola e agora era eu quem a levava! Incrível! Quando aterrei tinha os meus pais de olhos esbugalhados: “Conta-nos tudo!” A tentarem ver o que eu vi, ver o que eu senti – a devorarem a minha experiência. Foi aí que me dei conta de que, enquanto eu tentava encontrar qualquer coisa que me identificasse, eu transportava a minha experiência para eles. Depois desta viagem, eles foram de férias a Angola; foi a primeira vez que lá voltaram.

[…]

Ser alguma coisa faz-me sentir que há uma expectativa ou uma necessidade de reivindicar uma identidade. Sinto-me desconfortável quanto tenho de definir permanentemente qualquer coisa por oposição a outra. Gosto da constante mudança, assim como de observar a evolução da minha mente onde tudo é temporário, algo oposto à ideia de monumento. A propósito, há uma música da Robyn e dos Röyksopp. A última parte é assim: “Faz um molde de gesso do meu corpo. Tira-o para fora para que eu possa ver. Abandona a ideia de como me conhecias. Abandona a ideia do que eu fui. Eu vou deixar este monumento representar um momento da minha vida.” E também esta parte: “Arranja um espaço para o meu corpo. Escava um buraco. Separa e cria espaço. Isto é o que posso controlar. É um molde. O interior que eu esculpo. Este vai ser o meu monumento.”

[…]

Juntar objetos, decidir com que ferramentas trabalhar, questionar a linguagem usada, a forma como se põe tudo em perspetiva. Imaginar também o tempo de forma diferente, congelando-o ou expandindo-o, ver como os pensamentos são transferidos do estúdio para a vida e vice-versa; a prática torna-se uma plataforma de perspetivas e de oportunidades para fabricar o microfone e usá-lo.

Eu sou ballet. Parece-me que tudo se resume a isso; o meu comportamento, as minhas reações, consciência e escolhas. Faço ballet desde os 5 anos. Estaria só a fazer o que me diziam? Ou talvez houvesse vontade própria. É como uma organização que prepara uma máquina e essa máquina é feita para durar eternamente. Poderei não ter de voltar a ir para a guerra, mas fui programada para atingir um fim.

[…]

Eu gostava que soubessem que estão a olhar para a construção da vossa perceção. Sempre que me apresento, eu gostaria que esse fosse o lugar de partida da observação. E assim eu seria livre. Mas eu não me sinto livre. Porque das duas uma: ou sou confrontada a rejeitar alguma coisa ou a seguir a onda. Mas agora é um momento de empoderamento, e eu não o sinto como tal.

A minha utopia tem sido não ter de falar do meu percurso profissional, da forma do meu corpo ou da cor da minha pele. Mas depois vou à manifestação por causa do assassinato de Bruno Candé, um ator negro vítima de um crime motivado por racismo. E fico profundamente triste. E quero aproximar-me das pessoas negras. Afinal, eu também sou negra. No entanto, não tenho construído alianças fortes dentro da comunidade. Será que tenho direito a levantar o meu punho ao seu lado?

Até me ter mudado para Nova Iorque eu não estava a par das questões do racismo. Em Nova Iorque, os afro-americanos encorajaram-me a assumir o meu lado angolano dizendo: “Pelo menos, tu sabes de onde vens.” E nesta troca também ficou evidente quanta negação existe na forma como Portugal lida com o racismo e quanto disso eu carrego em mim.

A minha avó sempre nos disse: “Não se foquem na vossa aparência mas em quem querem ser, porque isso depende de vocês. Foquem-se no que está ao vosso alcance porque nunca vão poder ter controlo sobre como as pessoas vos veem.” Este conselho, que foi um escudo protetor, guiou-me até aqui. E agora tenho de o desmantelar. Tenho a urgência de abandonar esse escudo, deixá-lo para trás, tornar-me uma carcaça, um momento de transição.

Adorava usar o nome da minha avó, Odete. Como não planeio ter filhos, eu podia talvez usá-lo numa situação mais íntima, ocasionalmente, quando me apetecesse. Olá, Eu sou a Odete. Odete Odd.

[…]

Vânia Doutel Vaz, para a peça Still Dance for Nothing.

Carmen Pombo de Brito Páginas da Minha Vida

Espanhola de nascimento (1880) e portuguesa de casamento, Carmen Pombo de Brito era conhecida em Lisboa como Madame Britton, pseudónimo adotado para não ser reconhecida enquanto esposa do seu marido, que em 1916 abandonou por ele não aceitar que dançasse em público. Já o pai a proibira de fazer teatro, razão pela qual estudara Música no Conservatório em Madrid, de onde por vezes escapava para frequentar a Academia de Dança. Após um episódio de violência doméstica, a sua mãe foge com Carmen para Portugal, onde se instalam. Em Lisboa, virá a casar com o comandante português António Júlio de Brito, depois destacado para Moçambique, para onde partem em 1903. Num dos seus raros testemunhos, o diário Páginas da Minha Vida, publicado em 1962, Britton descreve as várias expedições pelo interior da Zambézia na missão colonizadora de ocupação do território e limitação de fronteiras ao serviço da coroa portuguesa, relatando com horror a segregação racial quotidiana e a permanência de um regime de escravatura já entretanto abolido. É em 1911, quando regressa a Lisboa após longa doença e desencanto matrimonial, que Carmen decide viajar sozinha pela Europa e regressa à prática da dança. Passando por Espanha, França e Inglaterra, cruza-se em Itália com Anna Pavlova, que lhe apresenta o mestre de bailado Enrico Cecchetti, com quem estuda. Mantendo a sua atividade de dança em sigilo, sem mesmo que o seu marido soubesse, o episódio da rutura do casal na então Lourenço Marques evidencia o que Britton explica como paradigma cultural do país: “Em Inglaterra, ter um artista na família é uma honra, ao passo que em Portugal é todo o contrário” i . Obrigada a abandonar o lar, inicia então uma carreira como pedagoga de dança, primeiro em Joanesburgo, até 1921, depois em Londres, e finalmente em Lisboa, onde abre, em 1924, a sua Escola da Arte de Representar, à avenida António Augusto de Aguiar. Sustentada no bailado clássico e na ginástica rítmica como cultura física feminina, o seu projeto teria como objetivo a educação das raparigas: a dança “ensina-as a vencer a timidez, a enfrentar as pessoas, habitua-as a moverem-se com elegância, incutindo-lhes, ao mesmo tempo gosto pela música, proporcionando-lhes um entretenimento saudável e de nobres intenções” ii. É aqui, e nas aulas ao domicílio, que Britton se erigirá enquanto estimada professora de dança para a alta sociedade lisboeta e para os descendentes das casas reais europeias, exiladas, na Linha do Estoril, das ondas de republicanismo que assolam a Europa. O seu espírito aristocrata, que lhe fazia distinguir com obstinação a cultura popular do “teatro” da cultura nobre da “arte”, não a impedia ao mesmo tempo de denunciar e de se bater contra o preconceito que imperava nessa mesma classe: “Levei alguns anos até conseguir que os espíritos simpatizantes com o meu trabalho se tornassem convictos do valor educativo da Arte da Dança” iii. O seu trabalho “como professora de Dança educativa e não como escola de bailarinas” cultivou um gosto pela dança através de inúmeras récitas e festas de caridade, como era habitual nos teatros da cidade, com as suas alunas, sem com isso deixar de incomodar generais “cheio[s] de condecorações” que relatavam: “Eu não desgostei, mas isto de aparecerem as pequenas em camisas e sem meias…” iv. É nesta visão de dança livre que as suas alunas ficariam registadas no filme-ensaio experimental A Dança dos Paroxismos (1929), de Jorge Brum do Canto. Dividida para sempre entre uma moral católica e conservadora e um espírito de confronto emancipado, que Daniel Tércio ironicamente sintetiza no título do seu ensaio como “cisne em agonia” v, Britton não esconde a sua admiração por António de Oliveira Salazar numa carta de 1949. É esse espírito ambíguo entre “submissão” e “coragem” que, tendo sido professora de Wanda Ribeiro da Silva ao longo de dez anos, a faz opor-se com relutância à sua ambição de se tornar bailarina: “Pobre criança, não sabe, não, o que isso significa. Que exausto trabalho. Que grandes desilusões. Quantas invejas horríveis, injustiças, ingratidões inconcebíveis, árduo trabalho e ansiedade para fazer compreender a maioria do público; […] enfim, o tempo encarregar-se-á de dar razão a quem a tiver” vi. Ribeiro da Silva seria não só bailarina como uma das figuras fundadoras do Centro Português de Bailado, da Escola de Dança do Conservatório Nacional e da Escola Superior de Dança.

O texto que aqui damos a conhecer é um excerto do livro que a própria Madame Britton publicou pouco tempo antes da sua morte (em data incerta). Apesar dos esforços na busca por quem tenha mantido o seu espólio, até ao fecho desta edição não foi possível encontrar ninguém. Manteve-se a grafia do texto original, salvo revisão de acentuação e pontuação.

PÁGINAS DA MINHA VIDA

A minha Arte na Dança foi o drama da minha vida conjugal. 

Um dia ou, por melhor dizer, uma noite, depois do jantar, passámos, como era de costume, para a sala de fumo, onde era sempre servido o café e cigarros aos nossos amigos. Entre eles, nesse dia, encontravam-se Mariano e João Machado e o Tenente Coronel Gomes da Costa (mais tarde Marechal) e entre várias coisas começaram a falar duma festa elegante que ia realizar-se no único Teatro existente, chamado “Varietá”. Era de caridade a tal festa e o grande atractivo dessa noite era o programa a ser executado por Senhoras da nossa primeira sociedade ali existentes. Madame Lomelino, grande pianista, Alda Ribeiro, violino, Sofia Cachi, versos, etc., e dirigindo-se a mim perguntaram-me que parte é que eu podia desempenhar. 

O meu pobre Antônio, a quem eu tinha ocultado sempre os meus estudos de dança, na última viagem à Europa, desatou a rir-se, e disse “A minha minha mulher, coitada, caso não seja para puxar  a cortina, não pode contribuir com a Festa, pois não possui nenhuma dessas artes”. Podem calcular, os que tinham tido a paciência de me seguir até aqui, como eu fiquei ao ouvir esta frase do meu marido, quando eu, no dizer do meu Maestro Cecchetti, era um verdadeiro talento se pudesse cultivar essa Arte, impossível, é claro, devido à minha situação na sociedade e de mulher casada. Não posso explicar o que senti, somente sei dizer que, esquecendo que meu marido ignorava que todo o tempo que estive na Europa passei-o a estudar, em vez de levar a vida frívola, que outra mulher em minhas circunstâncias levaria, com prazer espiritual de poder mostrar aos outros o que é e o que valem quaisquer artes, respondi ironicamente, rindo da gracinha do meu marido: “Pois muito bem, eu vou executar uma Dança clássica e outra de fantasia”. Não posso explicar a cara de surpresa e contrariedade que o António fez ao ouvir a minha declaração, pedindo aos nossos amigos presentes para não me tomarem a sério, pois ele não me autorizava a fazer o ridículo. Poderia detalhadamente explicar as palavras que a isto se seguiram, mas quero concretizar este assunto no mais importante e, assim, direi que, usando uma correcção quase diplomática, nem o meu marido, nem eu, voltámos a clara no caso. Mas eu continuei na minha ideia e desta forma comecei diàriamante a treinar-me em ginástica e lembrar-me de algumas danças ensinadas pelo velho e querido Maestro, tudo, é claro, feito fora do olhar do António, pois eu tinha a esperança que, não dizendo coisa alguma até ao ultimo momento, tudo correria bem. Como estava enganada… 

Finalmente, chegou a noite da célebre festa. Meu marido, já pronto com a farda de grande gala, esperava-me na casa de jantar; apareço toda sorridente e feliz e de repente, olhando para mim, me disse, muito carinhoso, como sempre: “O filha, tu tens toiletes tão lindas e foste escolher para hoje uma, que, falando com franqueza, não tem nada de interessante, até parece uma camisa de noite”. Efectivamente, era uma túnica branca, solta, estilo grego, atada na cintura com uma fita prateada, e, esclarecendo tudo, lhe confessei que era o vestido para dançar o Momento Musical de Schubert, não lhe tendo dito coisa alguma até essa ocasião para evitar contrariedades e desgostá-lo, pois estava segura que, sendo tão amigo como era, à última  hora certamente não me negaria aquele prazer inocente. 

Que horror! Como ficou desfigurado ouvir isto! Eu nem o conhecia, nunca o tinha visto assim. Com ar cortante, quase ameaçador, perguntou. 

– Com quem é que a senhora vai ao teatro? 

– Pois com quem há-de ser? Contigo, respondi. 

– Está completamente enganada; na minha companhia vai a minha mulher e não uma dançarina. 

– E, virando-me as costas, saiu com o seu ar autoritário dos tempos em que comandava os pretos. Fico em pé, de pedra, sem saber o que fazer. Eu não queria desgostá-lo, mas Santo Deus, eu estava num compromisso horrível. Toda a gente esperava por mim. O programa não poderia ser realizado se eu não aparecesse e… nesta luta titânica, cheia de pena, mas num minuto de decisão, mandei chamar a minha dama de companhia e segui para o teatro cheia de angústia e de desespero. Não sei bem o que fiz. Julgo que os verdadeiros passos a adaptar nesse bailado fugiram-me da mente, com o meu desgosto, mas a música embriagava-me e, deixando-me arrastar pela inspiração do momento, fiz nova composição coreográfica, que, no dizer do público, foi maravilhosa, o que me valeu uma estrondosa ovação, tendo que trizar e, de cada vez, diferente, pois eu cheguei a um estado de excitação em que não sabia bem o que fazia. 

Passaram-se dois meses. Meu marido, durante este tempo, não voltou a casa. Eu estava desolada com o sucedido e a única consolação era ler e reler os jornais do dia seguinte da festa, onde me faziam os melhores elogios, entre eles, lamentavam não poder ter a oportunidade de voltar a ver essa “Deusa da Dança” que os laços matrimoniais tinham roubado a essa divina Arte. 

Não foi surpresa para mim quando, um dia, um criado veio anunciar que o Sr. Comandante tinha chegado e estava no escritório. Sim, porque algum dia teria de voltar. Aquela situação não se podia prolongar para toda a vida. Entrei, estava ou fingia ler um livro que tinha sobre a secretária e eu com todo o meu carinho (e convencida que era o melhor que tinha a fazer) pus diante dos seus olhos e por cima do mencionado livro, a página do jornal que tão grandes e rasgados elogios faziam a minha pessoa, julgando assim poder com o meu sucesso acalmar a sua cólera. Que inocente criança, que eu era nessa ocasião! Ergueu-se novamente, como da última vez que falámos, dizendo-se desonrado, e, tirando duma gaveta da secretária as condecorações Cruz da torre Espada, Aviz, etc., deitou-as aos meus pés num momento de fúria – nunca o tinha visto assim! Fiquei apavorada e confesso que tive medo. 

Depois, com grande sarcasmo e olhando para mim com o máximo desprezo, disse: 

– Estás cheia de toleima e de vaidade pelo que dizem de ti os jornais, mas és tão imbecil, que ainda não compreendeste que todas essas encantadoras frases são, embora encobertamente, dirigidas a mim, pela minha posição, pela minha fortuna; pois tu podes estar bem convencida que, como mulher ou como artista, não tens valor algum. 

– Santo Deus, que injustiça! Senti, como se me tivesse batido com um chicote no rosto, e nessa altura chegou minha vez e esquecendo tudo quanto meu marido significava para mim e todo o nosso passado, num momento de desespero respondi-lhe: 

– Pois muito bem, saio agora mesmo desta casa, pois não quero continuar a desonrar-te com minha presença, e saio, – repara bem – só, não levando comigo coisa alguma do que me deste, excepto o teu nome, e juro que nunca mais voltarei, até não poder provar-te que, como mulher e artista, tenho esse valor que os jornais falam e que tu não podes reconhecer!… Até hoje!… 

Assim foi que deixei a minha casa, abandonando tudo quanto de bom possuía, fortuna, posição social, nome e aquela santa criatura que se chamava António Júlio de Brito. 

Fugi para Johannesburg, com algum dinheiro que pedi emprestado a uma amiga minha e sem formar projectos, pois o meu único desejo era fugir de tudo e de todos; cheguei àquela cidade para mim desconhecida sem saber nem sequer compreender uma única palavra de inglês. O meu estado moral estava fora de toda a classificação, não dando conta do que me sucedia. E vagueava pelas ruas até à hora de recolher ao hotel, onde me era impossível conciliar o sono. Todas as ideias se barafustavam no meu cérebro, a minha vida de sacrifícios no mato durante cinco anos, a minha vida faustosa na Europa e em Lourenço Marques, as minhas filhas, o meu futuro e o maior de tudo, o meu António, que tinha perdido – sabia-o bem –, para sempre, além de que os dias passavam e o dinheiro se esgotaria irremediàvelmente. 

Que fazer? Estava decidida a tudo, menos voltar para casa. Eram muitos os anos que tinha vivido ao lado desse homem bondoso ao máximo, mas resoluto e enérgico, o que fez que eu pela primeira vez formasse o meu carácter e a compreensão da vida com uma personalidade muito minha; assim pois, no mar de confusões em que me encontrava, prevalecia sempre uma decisão irrevogável – não voltar para minha casa. 

Minha amiga, sem eu pedir, remeteu-me novamente sem libras, suplicando-me que regressasse a Lourenço Marques, pois o António estava como doido e tinha a certeza que ele já estava arrependido do que acontecera. Ele não suspeitava por um momento que eu tivesse tido a coragem de ir para Johannesburg, pois a minha amiga, apesar das apertadas perguntas, nunca o deixou perceber. 

O criado do hotel onde eu estava, um dia, ao servir-me o almoço, perguntou-me de que nacionalidade era, e ao responder – portuguesa – ficou encantado, pois ele conhecia alguma palavras e compreendia quase tudo, pois era italiano. Falando eu essa língua, passei a poder entender-me pelo menos no hotel, o que já era qualquer coisa, e, por intermédio dele, cheguei a saber que ali a dança era muito apreciada em qualquer das suas modalidades, sendo muito consideradas e repetidas as pessoas que exerciam essa Arte. Fiquei estupefacta ao ouvir tal declaração, pois seria possível que a tão poucas horas de distância do território português, as pessoas pensassem que ser uma Artista era uma honra, o que em Lourenço Marques era desprezível. Santo Deus! Que mar de confusões, mas era preciso reagir, tomar uma decisão, e assim foi que, enchendo-me de corágem e audácia, apresentei-me no melhor teatro que existia em Johannesburg, dizendo-me consumada artista, que me encontrava ali de passagem e por este motivo o meu reportório, música e vestuário era resumido; mas poderia dar pelo menos dois a três espectáculos e depois do empresário do teatro, ter assistido a um ensaio, ficou assente que eu receberia noventa libras por semana. Como o meu ingles era muito pobre, de momento cheguei a pensar que não tinha percebido bem e tive que recorrer ao criado do hotel para me servir de intérprete e, perante sua afirmativa, fiquei atônita, pois seria possível que eu pudesse ganhar essa importância numa semana! Eu, quando ainda há pouco ouvi dizer ao António, que como mulher e artista, não tinha valor algum. Não, não era possível o António era doido, ou então o empresário, que estava disposto a pagar dessa forma! 

Finalmente chega o dia da minha estreia. Nervos, lágrimas, medo. Sim, medo de tudo e de todos. Um mundo e um ambiente desconhecidos para mim. Foi um sucesso. O público, a luz, a música, tudo quanto me rodeava e, talvez mais do que nada, a minha ânsia de vencer, operou em mim tal transformação que, deixando-me levar por um golpe de entusiasmo, consegui arrastar a plateia inteira numa ovação delirante. O empresário, no dia seguinte, veio cumprimentar-me ao hotel e naquele momento fez-me assinar um contrato por três meses. 

Pobre de mim… eu não estava preparada para mudar o reportório, pois pouco mais sabia do que os três bailados executados em Lourenço Marques, que foram a causa do meu desgosto na minha casa. Ao assinar o novo contrato, mal me lembrou semelhante coisa. Era natural, poi, com o que me sucedia, eu estava em tal estado, que não dava bem conta da situação. Sòmente uma coisa prevalecia em mim. Tinha triunfado. E eu que, no dizer do António, como mulher e com artista não tinha valor algum, ganhava noventa libras esterlinas por semana, tendo um contrato já de três meses e a seguir o empresário mandar-me-ia para Londres. 

No entanto, que se passaria na minha casa? Esta era a pergunta constante que fazia. Não tardei muito em saber tudo, e de uma maneira que eu nunca poderia ter imaginado. 

Os jornais de Johannesburg, que ainda estão em meu poder, faziam grande reclame da minha pessoa e minha fotografia em ponto grande à porta do teatro chamou a atenção do nosso Cônsul português, que nesse tempo era Salomão Seruya. Fui por ele reconhecida e, claro, deu-se o inevitável. Ficou admirado perante tudo aquilo, com cara de surpresa e de incredulidade. Pois seria possível? Ela no teatro? O Seruya, julgava-me no meu palacete em Lourenço Marques e de repente apareço num palco. 

Não quero perder mais tempo em relatar detalhadamente as cenas a que isto deu lugar. 

António veio imediatamente buscar-me, meio furioso, meio arrependido por tudo quanto se tinha passado e aqui começa o meu doloroso sofrimento, que foi luta entre a grande amizade, quase veneração, que sentia por meu marido, e o orgulho de mulher, que era bem a dignidade ofendida. 

Muitas vezes, perante os pedidos dele e os conselhos do Seruya, me sentia fraquejar e quase a ceder, mas havia ainda uma outra força de grande alcance: o contrato por mim assinado com a empresa do teatro, o qual, caso não fosse cumprido, teria que pagar três mil libras de multa. A tudo o António estava disposto, pagaria o que fosse, contanto que voltasse para casa, mas eu, embora cheia de pena, compreendi que seria inútil recomeçar de novo a vida em comum, a nossa tranquilidade nunca mais poderia existir, pois tive o pressentimento que em qualquer ocasião e por qualquer motivo se reproduziriam as cenas de Lourenço Marques. 

Não, já não poderia voltar à nossa vida antiga. Eu sabia muito bem que se tinha desmoronado completamente e para sempre a nossa felicidade de tantos anos; por isso entre essa luta titânica entre o dever e o querer, enchi-me de coragem e, uma e inúmeras vezes, recusei-me a acompanhá-lo, para voltar à nossa casa de Lourenço Marques. 

A empresa do teatro não queria de forma alguma que eu prescindisse do contrato e assim, unindo-se aos meus desejos e a empresa dando-se conta da minha situação social, ficou assente que daria os meus vencimentos para beneficio das tropas aliadas (estavamos em 1916) e para os soldados portugueses e cegos da nossa marinha de guerra, ficando deste modo o meu marido na impossibilidade de reagir perante este procedimento. Foi um golpe de esperteza por partida empresa teatral a tal ideia, e , deste modo, e como o meu marido me estipulou a quantia de dez mil escudos mensais para viver em qualquer parte do mundo que eu quisesse, com a única condição de não mais voltar a dançar no teatro, podendo, se eu quisesse, dedicar-me ao ensino de crianças e mesmo assim mudando de nome, pois com a quantia estipulada de dez mil escudos mensais poderia viver mais as filhas, que ficariam sob a minha responsabilidade, ficando ele, perante os seus companheiros da Armada e mundo em geral, coma satisfação de que, se a sua mulher trabalhava, era por capricho e não por necessidade, e assim fica aqui bem esclarecido como e porquê passei a chamar-me Madame Britton. 

A MINHA CARREIRA PROFISSIONAL 

Fundei então a minha escola de dança clássica e rítmica em Johannesburg. Adorei o que trabalho desde o primeiro dia, embora o meu coração sangrasse pelo sucedido e pela minha casa. Enfim, o mal estava feito, não podia retroceder. A nossa felicidade estava destruída para sempre. 

Havia um abismo entre as suas condecorações e a minha Arte, por isso, com essa luta diária entre a dor e o prazer, comecei a trabalhar com tanta sorte, que, em pouco tempo, consegui grande número de alunos entre as melhores famílias do mundo elegante de Johannesburg. O meu nome era desejado e falado em todos os jornais, com grandes e elogiosas referências (conservo-as ainda), mas eu, que tantas vezes afrontara no mato corajosamente a morte, tremia agora como uma criança ante a nova vida a seguir, completamente desconhecida e muito diferente daquela que estava habituada e que era um grande ponto de interrogação. Tinha momentos de verdadeiro desalento e a mim mesma perguntava onde é que estava a coragem e resolução que eu tinha demonstrado ao abandonar a minha casa. 

Como já ficou dito anteriormente, recebi lições do grande Maestro Enrico Cecchetti e, aproveitando-me do seu ensinamento, a minha escola tinha e hoje ainda tem por base o método desse grande Maestro, o que me valeu entrar na vida profissional com grandes conhecimentos e bases sólidas de ensino. Por isso, antes de continuar esta narrativa, desejo patentear ao meu querido e inolvidável Maestro, nestas linhas, todo o meu agradecimento por todos os triunfos que desde o ano de 1916 venho obtendo no meu trabalho. 

Continuei por alguns anos em Johannesburg, provando sempre ao meu marido que eu fazia “Arte” e não teatro, pois me dedicava sòmente a ensinar  gente de bem, recusando aqueles que queriam ou faziam vida profissional; mas como a glória tem as suas exigências e o seu preço, por causa da celebridade que eu ia obtendo, um dia recebi um convite da Duquesa de Connaught, convidando-me a tomar chá, assim como a meu marido. 

O nosso bom e compreensivo Salomão Seruya, que, nessa data, continuava a ser o nosso Cônsul português, foi quem, com seu bom senso e grande diplomacia, salvou a situação, convencendo meu marido de que tinha obrigação de aceitar aquele convite oficialmente. As nossas desavenças conjugais eram uma questão que a sociedade devia ignorar. Assim foi que, depois de tanto tempo, tivemos que nos enfrentar novamente, encontrando-nos dez minutos antes aa hora marcada e saparando-nos uma hora depois, quase sem ter trocado uma palavra. Ele estava mais branco do que as luvas que levava na mão e eu feita pedaços pela minha dor e desespero pelo que se estava passando.  

Fiquei novamente só, pois o António regressou a Lourenço Marques depois de ter internado no Park Town School, em Johannesburg, a nossa filha Angelita. A mais velha, a Sarinha, estava interna num colégio ingles em Lisboa e eu fiquei seguindo rumo de vida, que, afinal, me foi imposto pelas circunstâncias.  

Durante os primeiros anos, ou seja até 1918, nada de extraordinário tenho a referir, a não ser que, tendo sido atingida pelo flagelo dessa época chamada “pneumónica”, na qual, conforme a estatística de alguns jornais, perecerem 18 milhões de pessoas, isto é, mais 6 milhões que vitimas fizera a Primeira Guerra Mundial. Tive, como tantas outras, que sofrer as suas duras consequências. Para começar, estive, entre a vida e a morte, dois meses de cama, até o ponto de deitar sangue pela boca, e cada vez que vinha o médico visitar-me, dizia-me sempre a mesma coisa: “Não sei se nos tornaremos a ver, pois a minha vez pode chegar e não sei qual será o meu fim, por isso que Deus a ajude”. Morriam às centenas diàriamante, chegando o pânico até ao ponto de abandonar a cidade, indo para os campos, onde sem conforto algum, mas pelo menos ao ar livre, pensava toda a gente que existiria menos contágio, e eu, como o Colégio onde uma das minhas filhas se encontrava interna ia fechar pelo mesmo motivo, fui, quase sem poder suster de pé, procurá-la e com ela fugi como tantos outros para o campo, onde, por um feliz acaso, encontrei num meio-estábulo meio-taberna um quarto com uma mísera cama e com únicos lençóis que ali existiam. 

A minha Angelita já vinha também contagiada e lá ficámos uma e outra à espera de morrer. 

Numa noite de chuva e trovoada, a febre da pequena chegou a 40 graus e, nesse próprio momento, as outras pessoas, que, como nós, estavam deitadas pelo chão ou como podiam, ouviram o carro dos bombeiros, que se aproximava agitando uma grande campainha, e foram colocar-se no alto dum monte, onde, por ordem do Governo, iam levar-nos víveres e um desinfectante. Eu não podia ter-me em pé para poder chegar até onde eles estavam situados e, por outro lado, não podia deixar só a minha filha, que estava desvairada e todo seu afã era atirar-se da cama e ir para a janela. Finalmente, num momento de desespero, que tanto nos dá morrer como viver, tirei os lençóis da sua cama e rasgando-os em tiras fiz uma espécie de ligaduras e com elas e com a ajuda do dono da taberna, amarrei-a aos ferros da cama. Feito isto, fui como pude até chegar ao posto dos bombeiros, para trazer alguns alimentos e principalmente o tal desinfectante. Desnecessário é descrever a luta que ali se travava entre tanta humanidade para obter em mínima quantidade o que nos era necessário, não respeitando mulheres ou crianças. Era a luta feroz pela existência. Eu não tinha forças, nem podia chegar até lá e menos ainda suportar empurrões por isso deixei-me cair no chão, disposta a voltar sem obter coisa alguma para nós, mas um pobre homem, que me viu naquele mísero estado, compadeceu-se de mim e repartiu comigo os seus escassos alimentos, ajudando-me a levantar e descer o monte, onde os bombeiros se tinham instalado, por ficar assim no alto a bandeira da Cruz Vermelha, para que todos pudesse ver. 

Tinha eu andado uns escassos minutos ou por falta de forças ou por ter tropeçado em qualquer coisa, o facto é que me vi novamente no chão e pior ainda com a garrafinha quebrada que continha desinfectante que o pobre homem tão generosamente me tinha oferecido. 

Cheguei finalmente junto de minha filha, encontrando-a num estado que não há descrição possível, tendo a cara roxa, e gritando como se tivesse perdido a razão. Sentei-me perto dela, esperando a todo momento que deixasse de existir. 

Três meses de passaram, vivendo neste estado, e quando melhorou decidi voltar para a cidade, ou seja, para Johannesburg, onde ao menos existiam os víveres que eram necessários para a nossa existência mas, o que nos faltavam eram pessoas amigas, que tinham desaparecido sem saber como nem quando: uma verdadeira calamidade! 

* 

*        * 

i Carmen de Brito, Páginas da Minha Vida (Lisboa: Bertrand, 1962), 46.
ii Ibid., 61.
iii Ibid., 71.
iv Ibid., 70.
v Daniel Tércio, “Cisnes em agonia e saiotes de bananas nos anos de 1920”, em Dançar para a República (Lisboa: Caminho, 2010), 275-306.
vi Carmen de Brito, Páginas da Minha Vida (Lisboa: Bertrand, 1962), 120.

entrevista a Tânia Carvalho Tem de Existir Tudo

Ao longo de mais de duas décadas, Tânia Carvalho tem procurado na dança uma linguagem de afirmação. A sua aparente aproximação aos movimentos de vanguarda expressionista e surrealista do início do século XX, que privilegiaram práticas de intuição, transfiguração e delírio, não deixa de evidenciar um ténue anacronismo que a própria acata: “Se calhar sou um bocado antiga.” Esse reconhecimento, em conflito com o próprio advento da geração da Nova Dança Portuguesa, da qual é contemporânea, confronta-se com a insistência no trabalho artesanal de transmissão física tão caro à prática coreográfica.

A entrevista que aqui publicamos foi levada a cabo por Rita Natálio e João dos Santos Martins, a convite de Tânia Carvalho, no dia 13 de dezembro de 2019 na Fundação Calouste Gulbenkian, a propósito da sua nova criação, Onironauta, que entretanto estreava na Culturgest, em Lisboa. A ocasião foi aproveitada para falarmos do seu percurso, da Bomba Suicida, da sua obra vista de dentro e de fora, olhando para os processos de trabalho e a relação de intimidade com os bailarinos.

Transcrição: Sara Ramos.

BALLET PARA CORRIGIR OS PÉS

R: Fala-nos do teu percurso desde pequenina…

Eu vim de Viana de Castelo, de Perre, que é a aldeia onde cresci. As primeiras aulas que tive foram de ballet, com cinco anos. Foi o médico que mandou porque eu tinha os pés não sei quê… E aí começou a minha relação com a dança. Depois, na adolescência, o Balleteatro começou a fazer aulas em vários sítios – Viana do Castelo era um desses sítios. Comecei [na dança] contemporâneo para aí com 14 e adorei.

J: As aulas de ballet eram uma coisa regular?

Acho que era duas vezes por semana, e depois passou a três. Com a professora Maria José Araújo, de Braga, que ia lá dar aulas e fazíamos aqueles exames da Royal [Academy of Dance] — eram as aulas que havia nessa altura.

J: Isso foi em que ano? Eram só raparigas?

Por acaso até tive uma turma que tinha cinco rapazes. Sei que andava no ciclo. Devia ter dez, onze anos. 1986, 1987… Era eu e a minha irmã mais velha, Vanessa. Ela era muito boa, tirava 20 a todos os exames, e eu tirava 16. Já começava a inventar um bocado, que é a minha tendência, não fazer as coisas como deve ser.

J: Tu nasceste em 1976, logo após a revolução. Qual era a relação dos teus pais com essa transição política? 

Não sei, eles vieram de Angola. O meu pai nasceu lá, a minha irmã mais velha também, a minha mãe foi para lá com quatro anos e voltaram em 1975. Eu não sei bem essa parte política deles, eles não falam muito dessas coisas. 

J: O que é que eles faziam? 

A minha mãé médica. O meu pai é engenheiro, reformado. Quando eu era pequena eles ainda eram estudantes, trabalhadores-estudantes. A minha mãe dava aulas, o meu pai trabalhava nos estaleiros de desenho técnico. 

J: Então o teu percurso nas artes veio por influência do teu pai? 

Talvez, sim. Ele faz desenhos e toca e gosta muito das artes. Nós cantávamos com ele quando éramos pequenas. 

SENTIR A COREOGRAFIA DA MÚSICA 

O meu pai adora música e está sempre a tocar. Faz coleção de instrumentos, até faz construção de instrumentos agora. E eu adorava e estava sempre a experimentar de ouvido. Quis aprender piano, mas esse o meu pai não tinha, então lá me inscrevi numas aulas. 

J: O teu pai era músico clássico? 

Não, do que ele gosta mais é de jazz. Ele fez aulas no conservatório de Viana e depois estudou jazz. Toda a vida tocou. Fiz aulas de piano mas depois tive de desistir porque não tinha piano onde estudar. Chegava às aulas e sentia frustração. Mas a música sempre esteve presente. 

J: Tocavas o quê? 

Tocava flauta e harmónica, mas também experimentava cavaquinho, bandolim, coisas assim. 

J: Era uma coisa que aprendias com o teu pai? 

Não, era sozinha. Depois foi em Lisboa que voltei às aulas de música quando fiz o Uma lentidão que parece uma velocidade [2007]. Estive nove meses a aprender uma sonata de Mozart com um professor, o João Aleixo, porque queria experimentar sentir a coreografia da música.  

R: É aquela peça que estás sempre sentada no piano, depois desces…  

Depois saio do piano, uma espécie de fantasma… Eu ainda não tinha muita prática, mas a ideia era perceber quais são os movimentos que tens de fazer para aprender uma peça de piano. Ainda em Lisboa, tive aulas com o Diogo Alvim, aí já de composição, análise de música. Depois fui para Viana e comecei a ter aulas com o Yuri Popov. Depois, o erhu foi só agora para o concerto [Duploc Barulin, 2019]. Eu queria aprender um instrumento onde eu não visse as notas. Para fazeres a nota bem-feita é quase uma coisa psicológica. Nãé como o piano, onde carregas no dó e sai um dó. Ali não, para sair a nota ainda demora algum tempo. A minha relação com a música é esta. Fui sempre bastante autodidata. 

R: E achas que isso também aconteceu na tua experiência com a dança?  

De fazer, foi com o Balleteatro, que na altura era bastante alternativo para o que havia. 

J: Quem é que dava aulas? 

A Vera Santos e a Manuela Ferraz. As aulas da Vera eram de dança criativa ou clássica. As da Manuela eram de contemporâneo. Tinha de tudo, iam pegar coisas de várias técnicas. Mas para mim na altura era muito novidade. Depois também tinha um lado criativo, eram aulas de sequência e movimento, mas também fazíamos o nosso trabalho e mostrávamos no teatro.   

J: Tu ias todos os dias da aldeia para a cidade? 

Na primária não, só quando ia fazer as aulas de ballet. Depois no ciclo é que já estava lá e fazia lá. Houve uma altura em que a minha professora se mudou para Esposende, então tínhamos de ir para lá três vezes por semana. Éramos um grupo de raparigas e os pais revezavam-se. Depois fui para as Caldas [da Rainha] e arrependi-me. Não me arrependi, mas senti falta da dança. 

TAMBÉM QUERIA SER ESCULTORA 

J: Como é que decides ir fazer Artes Plásticas? 

Na escola tens de escolher uma área, nãé? E eu escolhi Artes. Adorava pintar, desenhar… e eu queria fazer escultura, achava eu. Também queria ser escultora.  

J: E era uma coisa normal ir para Artes nessa altura, em Viana do Castelo? 

A maior parte das pessoas que estudava Artes ia para arquitetura. Para Artes Plásticas eram poucos os que queriam mesmo arriscar. Havia aquela coisa que ainda há — muitas pessoas acham que sãáreas difíceis, que não vão encontrar trabalho. 

R: E nessa passagem houve algum tipo de choque cultural? 

Eu fiquei feliz, primeiro porque estava farta de Viana. Eu gosto imenso de Viana, mas tinha necessidade de ver mais coisas, queria experimentar mais… Nas Caldas encontram-se pessoas de vários sítios, todas com experiências muito diferentes, que é o que as pessoas experimentam quando vão para a universidade. É uma escola de/para artistas, e isso é muito gratificante, porque aprendes muito. E tens essa autonomia, andas a pé ou de bicicleta, fazes as tuas coisas sozinha, tens tudo perto e vives perto das pessoas com quem estudas. A minha cabeça começou a abrir imenso. Eu em Viana já tinha tido um professor de Artes que nos mostrava muitas coisas que não iam à cidade, o Fernando José Pereira. Levava músicas para ouvirmos… foi ele que me mostrou o John Zorn. E essa professora Manuela Ferraz também me mostrava coisas tipo Meredith Monk. Tudo isso me fez começar a ver outras coisas. 

NÃO ESTOU BEM AQUI 

J: E nas Caldas começaste logo a fazer uma coisa específica?  

Não, no primeiro ano experimentamos tudo. A minha intenção era chegar ao segundo ano e mudar para escultura. Nunca chegou a acontecer porque depois conheci pessoas de Lisboa e mostraram-me a Escola Superior de Dança [ESD]. E eu vi aqueles bailarinos todos a passar e fiquei com imensas saudades. Inscrevi-me numa escola de dança lá nas Caldas. No verão estive em Viana a praticar para as audições da ESD e entrei. Depois, fiz o primeiro ano. 

J: Isso foi quando? 

1994 [1996]? E eu chumbei no primeiro ano da ESD. Ainda por cima tive negativa às três nucleares. Houve uma série de pessoas que chumbaram, reuniram-nos numa sala e disseram-nos que íamos chumbar o ano. 

R: Chumbaram o grupo? 

Sim. Mas foi bom, porque assim mudei para o Forum Dança. Às vezes há coisas que acontecem que nos parecem más, mas indicam-nos o caminho a seguir. Eu ainda voltei no segundo ano, mas pensei “não, eu não estou bem aqui…”. E foi na altura em que abriu o primeiro Curso de Intérpretes de Dança Contemporânea [1997], estava meio deprimida e pensei “vou arriscar…”. E aí entrei e foi estranho: na ESD sentia-me mesmo má, que não sabia nada… no Forum Dança comecei a sentir-me integrada, como me sentia nas Caldas.  

J: O que é que te fazia sentir mal na ESD?  

A não aceitação do meu lado criativo, na verdade. Era o que eu queria fazer, eu queria ser coreógrafa. E perguntavam-me se queria seguir criação ou educação e eu respondia criação, e eles achavam “não, tu tens de seguir educação, tens de ser professora porque para criação não dás”… Mas eu já tinha a certeza de que não queria ser intérprete, queria fazer as minhas criações. Então fui para o curso do Forum — porque queria ser criativa embora quisesse aprender técnica. Não queria que me ensinassem a fazer as peças, isso nunca correu bem comigo. 

R: Quem foram os professores com quem tiveste contacto? Estamos a falar dos anos 90, por isso já temos a Nova Dança Portuguesa em processo, nãé? 

Lembro-me que tive o Wil Swanson, que foi bailarino da Trisha Brown. O Jeremy Nelson, a Ann Papoulis, de dança contemporânea… De ballet era a Cristina Santos, e também tivemos a Hiroko [Nishikawa], japonesa. Tivemos aulas com o André Lepecki, o António Pinto Ribeiro – essas mais teóricas –, o Ezequiel Santos, a Margarida Bettencourt, o Francisco Camacho, que fez a peça no final do curso, o Thierry Baë… Também tivemos aulas com o Rui Nunes, a Vera Mantero… A Cristina tinha esse interesse em formar bailarinos com técnicas fortes. E eu também queria aprender, não queria só ver, queria sentir como é que se faz. 

J: E nesses dois anos houve alguma coisa que te marcou mais, de experiências, influências? 

Pois, eu conheci o Filipe Viegas e a Clara Sena nesse curso. Foi aí que começou a Bomba Suicida, em 1997. Também a Maria Duarte, que fazia parte do Projecto Teatral e com quem colaborei.  

BOMBA SUICIDA

R: A formação da Bomba vem da conveniência de poder criar projetos artísticos ou da vontade de colaborar em coletivo? 

A ideia partiu do Filipe, ele tinha projetos que queria fazer e não tinha estrutura. A ideia não era trabalharmos coletivamente enquanto artistas, era ajudarmo-nos uns aos outros a desenvolver as ideias de cada um. E também não foi logo uma via para obter apoios. Por exemplo, eu fazia produção na peça do Filipe, o Filipe fazia figurinos na minha peç— estou a dizer ao calhas… juntávamo-nos, discutíamos ideias. Só mais tarde pedimos o primeiro apoio, quando acabámos o Forum. Acho que foi em 1999, quando fiz o Inicialmente Previsto. 

R: Os apoios à dança também são relativamente recentes, nãé 

J: Exato, é em 1996 que é criado o IPAE [Instituto Português das Artes do Espetáculo].  

Pois, foi no IPAE ainda.  

J: Então a Bomba começou durante o curso do Forum. E vocês aí já estavam a fazer peças identificados como Bomba? 

A ideia da Bomba já existia antes do Forum Dança, o Filipe já tinha a ideia e já tinha juntado pessoas, mas ainda não a tinha formado. O Pietro Romani, a Cate [Catarina Pereira], arquiteta, entre outros. Depois as pessoas foram mudando. Fazíamos eventos, também com outros colegas, como a exposição 18711, em prédios inabitados 

J: E como é que funcionava esse sistema de cotas?  

Não me lembro, mas não era para pagar a ninguém! Era só para termos materiais, folhas para escrever e coisas assim… Depois, com o primeiro apoio é que começámos a comprar mais. Lembro-me que a primeira coisa foi um telefone-fax. E foi sempre em casa do Filipe, ao início. Só mais tarde é que passou para a Interpress.  

J: Disseste que trabalhavam nos projetos uns dos outros… mas não colaboravam artisticamente nos trabalhos? 

Isso acontecia a nível de intérpretes. Eu entrei em peças do Filipe e da Mónica [Coteriano], a Mónica e o Filipe entraram em peças minhas, o Paulo Brás também trabalhou comigo. É que isto depois tem várias fases. Nessa altura já era uma estrutura, mas mais à frente passou a ser uma estrutura de produção mesmo. O primeiro produtor foi o Nuno Branco, depois o Luís Graça durante muito tempo. Depois ainda foi o Manuel Henriques durante pouquíssimo tempo, depois veio a Rita, e só depois a Sofia Matos, em 2006. 

J: Quando entra essa figura do produtor, a ideia do coletivo dispersa-se? 

Não, ainda havia um coletivo. Nós tínhamos um espaço, fazíamos programação, fazíamos o Sunday Show, fazíamos as festas, isso tudo era coletivo. O que não era coletivo, e nunca foi, era a criação individual de cada um. Nunca fomos um coletivo artístico, nunca fizemos peças juntos. 

J: Então era uma espécie de cooperativa de artistas? 

Era o que fosse preciso. Na verdade, estávamos ali para darmos apoio uns aos outros. Essa fase foi muito gira. Sentias “ok, tenho estas pessoas com quem posso contar, posso fazer as minhas coisas e estão aqui para me apoiar”é mesmo isso. 

J: Quando é que achas que isso mudou? 

T: Não sei, acho que mudou quando o Filipe saiu. Sempre houve pessoas a sair e a entrar, mas quando o Filipe saiu passou a ser outra coisa completamente diferente. Era mesmo uma estrutura de produção e pronto, não há mais nada. 

J: E o Filipe saiu por razões pessoais ou houve alguma coisa? 

Não, não houve nada. Acho que foi mais um “já chega, estou cansado disto, quero outras coisas”. Ele foi viver para Itália, parou de fazer peças… Aquilo era divertido, mas era cansativo.  

SUNDAY SHOW 

J: O Sunday Show, como apareceu? 

Começou com um evento que fizemos na sede do PSR [Partido Socialista Revolucionário, atual sede do Bloco de Esquerda], um evento que o Filipe organizou. Ele tinha essa personagem que era a Madunna, que fazia playback… Aliás, fizemos primeiro uma festa em casa de um amigo, depois fomos ao PSR. Lembrou-se que aos domingos não havia nada para fazer em Lisboa e lembrou-se de fazer o Sunday Show. Cada pessoa podia trazer um número… E nós embarcávamos nas ideias uns dos outros, por isso essa foi mais uma, que teve imenso sucesso. Depois cada um ia dando ideias de pessoas para convidar… E aí havia uma organização que era já muito estruturada entre nós. Eu tratava do bar, outro tratava dos bilhetes. Tínhamos uma forma quase natural de trabalhar uns com os outros. 

J: Nessa altura era ainda o grupo fundador? 

Não, aquilo esteve sempre a mudar. Aí já não estava a Clara, estava a Mónica… Também esteve o Ivo Serra, também passou por lá a Sónia [Baptista], o Tiago Guedes… Mas nessa altura era eu, o Filipe, a Mónica, o Luís Graça também esteve, a Sofia [Matos] e a Rita ainda apanharam Sunday Shows, o Manuel… Aquilo era uma das coisas que se mantinham, todas as pessoas fizeram parte. O Luís Guerra também apanhou, já no final. Depois tínhamos os satélites da Bomba, aquelas pessoas que estavam sempre lá e que nos ajudavam a fazer os cenários, como o Stiga, o Jorge Bragada na maquilhagem, o Aleksandar Protic com figurinos, pessoas que iam ajudar no bar, etc. Era um evento social. 

J: E olhando hoje para esse momento, em que havia essa comunidade que circulava à volta do vosso coletivo, sentes falta desse espaço? 

Não. Quer dizer, não me importava de ter outra vez essa experiência, mas foi importante e agora acontecem outras coisas, as coisas estão sempre a mudar. Eu percebo o Filipe, aquilo acabou, é preciso também experimentar outras coisas.  

J: Mas sentes que, por não haver esses contextos de agregação independentes e geridos por coletivos de artistas, a comunidade agora está mais dependente das instituições? 

Eu agora estou menos vezes naquele ambiente de festa com as pessoas, é verdade. Mas também não sinto falta porque eu trabalho com muitos bailarinos, e estamos sempre a fazer residências. Então há espaço para a convivência. Eu sei que as pessoas deduzem e sentem que não há um sítio para estarmos juntos ou não há muita troca de ideias… 

J: E olhando desde a partida do Filipe até à desagregação da Bomba, o que é que aconteceu durante esse período como atividade? 

Ainda mantivemos o estúdio durante um tempo. E depois passou a ser mesmo uma estrutura de produção, não fazíamos já eventos, não programávamos outras pessoas… Cedíamos o estúdio, estávamos a produzir as nossas peças e mais nada. Depois eu e o Luís [Guerra] decidimos ir para Viana do Castelo, sair de Lisboa durante um tempo, e ficou ainda mais separado. 

J: Isso foi quando? 

Foi na altura em que fiz Icosahedron e Olhos Caídos, 2010, 2011 e 2012. E aí senti-me mesmo afastada das pessoas, porque a Viana ninguém vai. A Bomba, claro, ficou mais dispersa. Nós reuníamo-nos às vezes, mas não tantas vezes como antes. 

J: Nessa altura eras tu, o Luís e a Marlene [Monteiro Freitas]? 

Sim. Tínhamos duas produtoras, iam dividindo o trabalho, e eram três artistas. Era só isso, não havia mais nada. 

NOVA TÂNIA E TÂNIA ANTIGA 

J: O Inicialmente Previsto [1999] é uma peça que tu escolheste para ser a primeira. O que era essa peça?

Essa foi a primeira que foi apresentada como uma peça, para encher uma noite. Era uma peça que começava várias vezes. Por exemplo, fazíamos uma parte de um filme de F. W. Murnau em duplo como se fosse para ver em 3D; fazíamos uma parte que eu fui buscar à Mesa Verde [Kurt Joss, 1932]; uma parte mais boneco japonês… Quando comecei a fazer estes trabalhos, tinha vontade de fazer coisas há tanto tempo que não sabia o que escolher. 

J: E todas essas referências que aparecem aí são coisas que já estavam acumuladas? 

Eram coisas que eu ia vendo. No Forum tínhamos acesso a algumas coisas que os professores mostravam, e eu também ia muito à Cinemateca. Não fui à procura durante a peça. Durante a peça parece que prefiro parar e deixar a coisa… 

J: Mas essa referência à Mesa Verde era uma coisa que tinhas de memória ou que vocês apropriaram?

Usei como referência, vê-se o que é, mas não está copiado. O filme foi copiado. Os movimentos, mesmo. Quem conhecia bem o filme percebia o que era. Mas havia uma voz off. Isso não existe no filme. 

J: E depois desta peça que são vários inícios de peças, nas peças seguintes elas tornaram-se uma coisa só? 

Não, ficaram por ali. Foi uma experiência.  

R: E a New Tan[2001]…?

É Nova Tânia, só que ninguém sabe. 

R: Também tem que ver com inícios e trocas e encontros, mas com um elemento de coreografia mais social, digamos. Como se estivesses à volta de uma mesa… 

Por acaso lembro-me de uma coisa dos [Peter] Fischli & [David] Weiss que é um contínuo de reações químicas, um vídeo que nunca para. Lembrei-me de fazer uma peça que já tivesse começado antes, em que as pessoas entram e está a acontecer, e não veem o fim, vão-se embora e a peça continua. E esta peça tinha isso. Tinha os bodybuilders que estavam na primeira fila. Quando ainda estava a decorrer a peça e começava uma música em crescendo, que dá vontade de ficar, eles levantavam-se e mandavam as pessoas sair. E algumas não queriam, então eles pegavam nelas ao colo e punham-nas fora da sala. Há muito este movimento “entra e sai”, porque as pessoas são obrigadas a sair – entre aspas, claro, porque a peça acaba ali, mas eu queria mesmo a sensação de que não acaba. Tanto que houve pessoas que vieram falar comigo a dizer “nãé justo, eu paguei o bilhete, queria ver a peça toda. 

J: E porque é que era a Nova Tânia?

Eu não sabia que nome pôr e o produtor dessa peça, o Nuno Branco, escrevia sempre “New Tan” e ficou assim. Essa peça tem que ver comigo nessa altura, já não tem.  

J: O que era a Tânia nessa altura? 

Não sei, era uma Tânia que saía muito à noite. Faz-me lembrar guarda-costas, seguranças de discoteca… Não que na altura o tenha feito a pensar nisso, mas vejo agora que tem muito desse mundo. A música tambéé mais batida, mais punk, não sei. 

J: Isso tem alguma proximidade com a outra peça que era um dueto em que inicialmente vocês dançam a pares, a Direção Oposta[2004]?

R: Chamou-me a atenção nesse trabalho uma certa ligação com o movimento conceptual da dança. E quando estavas a falar da peça com os , fez-me pensar numa certa linguagem desse período, que era pensar a dança com a pergunta “o que é que as pessoas esperam da dança?” ou“quais são as expectativas da dança?”. Havia muito a desconstrução de aceções, tipo “eu não vou dançar como vocês esperam”não vou fazer o seria de esperar”não vou começar como teria de ser”…E são coisas que depois não vejo tanto nas tuas outras peças de grupo, mais ligadas ao expressionismo e à intuição

Essa peça tem muito movimento. E na altura sentia que se calhar fazia movimento a mais nas minhas peças. Ainda sinto um bocadinho. 

R: Também em relaçãàs pessoas da tua geração? 

Sentia isso, mas não havia nada de mal. Ainda estás a crescer, ainda és jovem e ficas a pensar “se calhar sou um bocado antiga”. Mas agora não sinto isso, sinto que sou as duas coisas. 

VER E SER VISTA DE FORA 

R: Gostaria de pensar esse “sentir-se ou não antiga”; as tuas ligações, afinidades ou repulsas com pessoas que partilharam contigo espaços de trabalho, pessoas com quem consegues ou não conversar 

Eu acho que consigo falar com toda a gente. Porque se eu for a ver temos todos a mesma base… Agora, com quem me identifico mais não sei dizer. Eu tenho muita dificuldade em ver o agora de fora.  

R: Mas em relação ao passado, nesses primeiros dez anos, consegues identificar artistas que tinham que ver com o que estavas a fazer ou que não tinham nada que ver…? Quando falas de te sentires “antiga”, isso é em relação a um contexto? 

É em relação tambéà história geral, não só de Lisboa. Tem que ver com eu ainda usar movimentos que são da dança clássica, ou da dança moderna… E também tenho muitas em que coreografei tudo. Claro que depois o intérprete interpreta, mas para grande parte da peça eu levo a coreografia feita, e é por isso que digo que é a forma antiga. Senti que estava desenquadrada. Porque eu trabalhava com pessoas e éramos nó— intérpretes — que pesquisávamos, improvisávamos, íamos à procura das coisas… E eu não me sentia bem a fazer isso. Enquanto intérprete sim, mas enquanto coreógrafa tive dificuldade. Gosto de imaginar, experimentar e depois passar o movimento já mais ou menos feito… Agora faço as duas coisas. Já passou essa fase em que estava mesmo obcecada em marcar tudo. E por isso sentia-me antiga, mas ninguém mo disse. Até porque eu trabalhei com a Vera [Mantero] e gostei, com o Francisco [Camacho] também… com o Projeto Teatral. Eu acho que tem de existir de tudo.  

J: Mas, no início dos anos 2000, quem eram as tuas pessoas mais próximas que estavam a produzir dança? 

Eu sentia-me próxima das pessoas da Bomba, mas não quer dizer que artisticamente fossem as mais próximas. 

J: E havia algumas pessoas ou linguagens que tu rejeitavas? 

Não, há linguagens que não uso, mas não quer dizer que ache que as pessoas não o devam fazer. Eu não tenho essa tendência de dizer “isto não deve existir”. Se existe é porque tem de existir. Aquilo que te sentes confortável a fazer é uma coisa, agora ver… eu por mim vejo tudo. Então em dança, mesmo em peças que possa não gostar, gosto sempre de ver os bailarinos, de ver pessoas a dançar. 

J: Voltando à necessidade de transmitir vocabulário que tu própria criavas, e à sensação de seres antiga… Isso coincide com o momento em que os teus trabalhos começam a ser apoiados por instituições? 

Inicialmente Previsto foi o primeiro trabalho apoiado, e aí ainda estava com a dúvida sobre como proceder em relação a isso. Porque, na verdade, mesmo quando eu marco eu olho para os intérpretes e tiro imensa coisa deles. Eles dão-me coisas mesmo sem saberem. O meu problema era ir para o estúdio ainda sem as coisas resolvidas. Aí não sabia bem o que fazer. 

MODOS DE PRODUÇÃO 

R: Todas as tuas peças foram apoiadas? 

Eu fui apoiada até a Bomba Suicida acabar [2014]. Às vezes alguns concursos ganhávamos, outros não… Quando a Bomba acabou não tive mais, até agora. 

R: Entãé só com coproduções que estás a trabalhar agora? 

Sim, desde 2014. E também alguns apoios da Gulbenkian, da GDA… Os da DGARTES não têm corrido bem. Eu acho que não sei fazer candidaturas com aquela fórmula. Também me sinto responsável, nãé só do lado deles. 

J: Como é que sentes que o teu trabalho foi recebido no início? 

Isto anda sempre assim às voltas. Acho que começou com algum furor, fui bem recebida. Quando comecei senti que as pessoas “aderiam”. E tinha imensas pessoas que iam ver, não era só meia dúzia de gatos-pingados. Acho que sempre houve interesse no meu trabalho; mesmo que possam não gostar. Quando comecei senti forças opostas, como toda a gente sente quando há gerações diferentes, mas que depois se diluíram.  

J: Qual é que era essa oposição? 

Por exemplo, quando recebi o primeiro apoio saiu no jornal uma crítica ao facto de sermos apoiados tã“jovens”… E aí senti “ah, que chato”. 

J: Foi uma crítica de alguém? 

Sim. Os apoios da DGARTES dão sempre barulho. Mas como era a primeira vez que estava a concorrer, ainda não sabia que existiam estas coisas. 

J: É curioso porque nesta altura [anos 2000] também o Miguel Pereira, que estava a ter aclamação com o seu trabalho, concorreu e não teve apoio. E o Jorge Silva Melo escreveu um artigo no Público em que dizia algo como “Miguel, vai-te embora” porque havia um problema de reconhecimento do seu trabalho pelas instituições.  

Pois, eu percebo que se pensem essas coisas. Isto é um concurso, só concorre quem quer e sabes como é que ele é feito. Sabes que podes ganhar ou podes não ganhar, sabes como é avaliado. Foi chato, mas, quer dizer, tive apoio nessa altura em que ninguém me conhecia e agora não tenho.

J: E de onde é que sentes que houve interesse pelo teu trabalho? Quem foram as pessoas que tentaram puxar, nesse início? 

O Gil Mendo e o Mark [Deputter]. Não posso deixar de falar do Espaço Experimental, da Sofia Neuparth. Foi muito importante para mim na altura. Hoje em dia tens imensos sítios, mas na altura as pessoas iam mesmo ver quem estava a aparecer. O Gil Mendo viu-me aí. Foi muito importante. A Madalena Victorino também me deu força, na altura, no Centro de Pedagogia do CCB. Claro que depois apareceram outros, como o Rui Horta… 

VER DE DENTRO E VIRAR 

R: Estava aqui a pensar no teu percurso. Tenho a sensação de que o Orquéstica [2006] marca um certo salto ou mudança para ti. Pelo menos em termos mediáticos começou a falar-se muito do teu trabalho… fala-se muito da “linguagem Tânia Carvalho”, como se tivesses um estilo muito próprio.

Eu quando falo com amigos e pessoas com quem estou à vontade, a sensaçãé que não tenho um estilo. Para mim cada peçé muito diferente da outra. Depois olho para trás e consigo encontrar essa coisa… É complicado explicar, porque isto é como o pensamento, vamos pensando…Não tenho um objetivo de fazer uma coisa que só eu é que faço, até porque eu uso coisas muito cliché. O que eu tento é estar atenta àquilo que aparece. Gosto de ir buscar imensas coisas, mas depois no momento de criar tento esvaziar-me para as coisas aparecerem. Não sei explicar como é que as coisas aparecem. 

J: O que é que aconteceu nessa peça que se tornou uma viragem? 

Foi um bocado polémica, na verdade. Ainda hoje há quem me venha falar dessa peça. Dizem: “A Orquéstica é que foi.” E também há quem diga que foi a pior. 

R: A memória que tenho é que “deu que falar”, e foi aí que começámos a ouvir falar da tua forma de construir peças, de estar muito presente uma linguagem “da dança”, de gerir grandes grupos, de ter um mergulho na “expressão, etc… e, portanto, de teres uma linguagem afirmativa. Nos dois sentidos: havia pessoas que não gostavam nada porque estavam mais na onda do conceptualismo, e pessoas que gostavam imenso porque diziam “ah, isto sim é dançar! 

Pois, eu estou no meio dos dois lugares, não sei bem onde me pôr e não tenho de me pôr em nenhum. O Orquéstica era um bocado assim, tinha uma parte muito experimental, com imensas caretas e depois as caras iam-se alterando e transformando os movimentos. Mas tinha um lado muito formal de técnica de dança. Deu que falar porque estava no meio, não consegues “classificar”. Agora já consegues, provavelmente. 

R: Lembro-me também da peça contigo e com o Luís [Guerra], onde os movimentos eram associados a uma coisa maquinal, quase como ser marionetado pela coreografia. Por um lado era orgânico, por outro lado era maquinal.

De Mim Não Posso Fugir, Paciência foi muito marcante, porque tinha tudo: tinha movimento, tinha momentos de loucura, momentos de circo… O que me dizem muitas vezes é que não conseguem classificar o meu trabalho, e às vezes também sinto isso. Eu gosto tanto de trabalhar com bailarinos clássicos como com pessoas que nunca fizeram dança. Cada um traz coisas diferentes. Mas a Orquéstica também foi a primeira peça em que tive apoio financeiro para fazer uma peça com tempo, e acho que isso se sente, há ali mais maturidade do que nas peças anteriores.  

RAZÃO E INTUIÇÃO 

R: Estava a pensar que, em algumas entrevistas, e também num dos teus trabalhos mais recentes – Captado pela Intuiçã[2017] –, a palavra “intuição” parece estar muito presente. Mas como considerar a intuição nos teus trabalhos de maior dimensão, que são muito geométricos e matemáticos? Onde vive a intuição quando constróis o movimento e depois passas essas células de movimento a outros?

É uma coisa muito abstrata. Formas que passam umas pelas outras… é intuitivo, porque tu imaginas as coisas e elas quase que se mexem sozinhas. Quando eu falo em intuição tem que ver com tentar assentar e ver o que é que aparece. Às vezes estás a escrever um texto e falta-te a palavra certa. Depois relaxas e aparece. É a mesma fórmula. E os esquemas matemáticos, eu adoro fazer. Porque, para mim, os números e as formas trazem muitas emoções, têm energias próprias. Um quadrado tem uma energia, um círculo tem outra, não dá para escapar. É uma comunicação direta de formas. Brincar com isso é como fazer música. [Os bailarinos] parece quase que deixam de ser pessoas, são peças.  

J: E essa é a ideia da Orquéstica? Que os bailarinos deixam de ser pessoas e passem a ser essa composição de formas?

Sim, a peça começa de uma forma muito musical. Nós estamos a fazer som com o corpo. O meu trabalho de dançé sempre muito pensado através da dança. A não ser em casos particulares em que me pedem que faça uma peça sobre algo, como foi o caso da Tecedura do Caos [2014]. O meu tema é sempre como é que eu falo com a dança, é como se fizesse uma música sem letra. A Orquéstica era um bocado assim: como é que esse som se vai transformando com as formas da cara a possuírem o resto do corpo. 

J: Mas, por exemplo, em peças como De Mim Não Posso Fugir, Paciência ou Captado pela Intuição, eu sinto que há nestes títulos uma espécie de manifesto, que seria não apenas aquilo que tu acreditas que é o teu trabalho, aquilo que tu promoves como uma forma de fazer, mas por outro lado quase uma posição face a um trabalho mais conceptual na dança. Como é que tu te relacionas com isso?

Quando falo da minha forma nunca estou a dizer que é mais eficaz ou melhor ou que é em oposição a alguma coisa. Eu adoro ver imensas coisas que não têm nada que ver com isto. Adoro ouvir pessoas a teorizar sobre arte e eu não gosto de o fazer. Mas não quer dizer que não leia coisas sobre isso, que não ouça pessoas a falar; mas eu falar, dar uma conferência, não me peças porque eu não vou. É a mesma coisa com o trabalho: é a minha forma de estar, mas nãé em oposição aos outros, porque eu preciso dos outros diferentes de mim, senão não consigo identificar-me. 

R: Para mim é muito conciliável a intuição e a razão, ou a intuição e a teoria. E  tenho a sensação de que a forma como falas da coisa é como se já houvesse uma certa oposição, como se houvesse algo que é mais da ordem do movimento e que seria menos texto, menos temático, ou puro som, puro movimento; e depois algo que seria então mais temático, mais textual, mais teórico. 

Isso é a forma como as pessoas interpretam as coisas que eu digo. Eu acho que a intuição e a razão vivem juntas… O que eu digo é: quando estou a fazer peças, eu falo sobre as coisas depois de elas aparecerem, e nunca antes. Vem-me uma ideia ou uma imagem e depois começo a pensar sobre ela. Agora, teorizar sobre as coisas, adoro que o façam, adoro ler o que escrevem sobre as minhas coisas, mas escrever não. Por isso é que eu digo: não sei mais do que a pessoa que está sentada a ver. E se for eu a dizer o que é que eu acho que esta peçé, a pessoa que está a ver vai achar que aquilo é 100% certo. Mas eu posso ser uma coisa hoje e outra amanhã, e aquela pessoa só viu a de ontem e vai ficar fechada naquele círculo. Enquanto se for outro teórico a falar sobre a peça, ela sabe: é outra pessoa que está a falar sobre aquilo, isto é uma interpretação.  

AS COISAS VÊM DOS BAILARINOS 

R: Tendo em conta que já tens mais de 20 peças, dá vontade de perguntar: de onde vêm as imagens; de onde vêm as coisas?  

Eu acho que vou buscar muito às pessoas com quem estou a trabalhar. Eu olho para os bailarinos e vejo um possível movimento com aquela pessoa específica. Ou com aquele grupo. E aí há essa comunicação que é sensorial, e a peça vai para um lado qualquer através disso. Eu olho para as minhas peças e vejo, por exemplo, a S [2018] e a Olhos Caídos [2010] e não vejo ali a mesma coisa. A Olhos Caídos foi feita para mim e para o Luís, e a S foi feita para os bailarinos da Companhia Nacional de Bailado, tem toda uma história do ballet ali… Mas foi por olhar para aqueles bailarinos e ver os espetáculos que eles fazem que as coisas me surgiram. E, por exemplo, com os Dançando com a Diferença [Doesdicon, 2017] chego lá e vejo outro grupo e traz-me uma coisa completamente diferente, e a peça vai para outro sítio. 

J: Mas no teu trabalho recorrentemente convidas os mesmos bailarinos. Portanto, também há uma vontade de recuperar algo que conheces desses bailarinos e com o qual te identificas e que vai construindo uma certa linguagem, que nãé só tua, tambéé deles, e que resulta da interação contigo. Ou seja, eles também respondem aos teus impulsos de determinada forma porque eles já são, em certa medida, a tua companhia. 

Sim, alguns são. Estás a ver porque é que eu gosto que haja teóricos, porque eles dizem as coisas que tu não consegues dizer. Mas o que é que eles [os bailarinos] têm de específico? Eu acho que são pessoas que conseguem ser muito eficazes, tanto no desenho como na expressão. Imagina, eu marco um movimento, e até pode não estar muito bom, mas eles melhoram sempre a coisa. Gosto tanto de os ver dançar que quando ponho os movimentos neles acho que os movimentos ficam sempre bem. Mas não sei exatamente porquê. Também nunca me debrucei muito sobre porque é que gosto de tudo o que fazem, não consigo perceber quais são as características. O Luís Guerra, a Marta Cerqueira, o Bruno Senune, o Cláudio Vieira e o André Santos, entre outros que me vão faltar aqui…  

José Maria Vieira Mendes Coreografia da Frase

No dia em que a frase começou foi vê-la espreguiçar-se e sem hesitação ou vestígio de dúvida expandir-se não parar mais de atuar nunca mais querer acabar não havia ponto final que a interrompesse vírgula ou fim de linha que a travasse e se é verdade que a frase era curta ao princípio não se pode dizer que tímida mas discreta e foge-se à psicologia ainda o dia não tinha nascido e já ela sabia ao que vinha a facilidade com que encadeava e organizava cortando o espaço e estabelecendo-se há quem hoje a acuse de ambição desmedida mas a autoria da medida para medir a desmedida é anónima e portanto vale o que vale é o que responde a frase à crítica e avança e descobre as suas possibilidades e impossibilidades que talvez sejam nenhumas a frase rapidamente encontra soluções para os obstáculos abranda por instantes e logo arranca quando encontra um desvio alternativa e retoma o percurso tem sido assim tudo se vai tornando mais fácil na vida da frase à medida que percebe do que trata o mundo e qual o assunto da vida entre aspas parece-lhe tudo tão compreensível e tão fácil de descrever é só uma questão de tempo ou seja uma questão de se alongar e por isso a frase segue e escorrega em direção ao horizonte infinita como uma serpente a rastejar a prolongar a única forma possível de existir quando se é frase e que é estender-se numa só direção não há volta a dar mesmo que encontre um ponto de interrogação e encontrou e escorraçou alguns quando um parêntese nela se encaixa e pede licença para especificar ou acrescentar um pedacinho de espaço para existir a frase continua e expande-se por todo o lado seja o espaço uma nuvem uma estrada uma aldeia um cano subterrâneo ou uma nota de rodapé nada escapa à capacidade de expansão da frase e rapidamente deixa de haver lugar onde a frase não esteja a atuar cumprimentam-na com o respetivo travessão bom dia como está cara frase tem passado bem conversas de circunstância umas vezes mais longas outras mais de passagem gente a reconhecer a existência da frase que nunca foi só um corpo de passagem mas sempre um que passa fica continua fica vai ali fica fica não abandona fica e ocupa e a frase deixa-se estar no sofá lá de casa no banco de jardim na paisagem e no museu e na gaveta das meias e no espírito das coisas lá está a comunicar a existir foi para isso que nasceu para ser entendida e lida e vista e ouvida e reconhecida quem não a reconhece basta perguntar na rua e a rua responde porque a rua é a frase que entretanto se estendeu rumo a tudo no auge da sua maturidade atuante confiante do seu lugar a frase não hesita um único dia já trata os planetas e galáxias por tu o mesmo com a ancestralidade mais ancestral a do início da vida as primeiras bactérias tudo isto a frase conhece e esta segurança permite-lhe acolher sem exceção e preencher sem falhas o que há para preencher como se todos os lugares estivessem à sua espera todos os corpos e não corpos a frase sente-se feliz embora nunca o afirme mas sabemos que ela está feliz porque nunca receia até ao dia nem ela própria sabe quando foi mas há um dia em que um ponto de interrogação pela primeira vez se consegue fazer notar no mesmo momento em que um ponto e vírgula se atravessa distraidamente pelo caminho e talvez tenha sido esta combinação ou apenas uma inevitabilidade do tempo porque pode fazer parte da idade da frase chegar o dia em que alguma coisa corre mal a frase sentiu-se incompreendida aquela sensação de se afirmar uma coisa repetidamente e o entendimento ser outro e não há maneira de bater certo não bate certo e a frase queria tanto que tudo batesse certo porque sempre bateu certo não há que enganar esta sou eu pensava a frase quando se via ao espelho mas naquele dia olhou-se ao espelho e afinal não abre aspas o que era aquilo que via fecha aspas perguntou-se sem acesso ao ponto de interrogação e a pergunta não vale fica a meio o reflexo no espelho tornou-se irrespirável a frase vacilou pela primeira vez na sua história e viu no seu reflexo uma busca obstinada para indagar a profundeza da escuridão noturna medir as intermitências da luz da escuridão sempre em busca de um sinal que atravesse a noite porquê esta obsessão perguntou-se a frase com todos os pontos de interrogação que entretanto se aproximaram e se plantaram em seu redor um canteiro de interrogações a olhar cada palavra daquela frase serpente milenar e o olhar iluminava toda a ignorância que a frase desconhecia ai de mim pensou ela entre aspas e pela primeira vez não o escreveu coisa estranha uma frase não escrita o que quer isto dizer perguntou mais uma vez ai de mim que gesto é este que agora faço o que é isto sou eu uma catadupa de perguntas a frase julgara-se eterna e pela primeira vez ao olhar o horizonte pensou em fim nunca antes essa palavra lhe ocorrera quanto mais a ideia mas agora tudo mudava e a frase estremeceu com estas três letras a frase perdia força a frase sentia-se a definhar que absurdo não faz sentido e por isso não se conformava e resistia mas o destino da frase está traçado a frase perdia a cada tentativa de a frase perdia perdia deixou de saber e deixou eu era só uma frase pensava procurando convencer-se da humildade da vida tornada natural depois de já ter sido sábia tentar agarrar-se ao que tem para que o mundo não lhe escape a frase sentia a fissura entre ela e o chão perdia perdia perdia o sentido no intervalo que se abria espaço entre linhas vazio convertido em nada foi a única ocupação que a frase encontrou para tanto branco que se interpunha pior que os parênteses de antigamente carregados de palavras que cuspiam quando abriam e se esquecia quando fechavam já esta ausência toda era de outra espécie trazia consigo um desligamento afastamento uma autonomia incógnita a frase perdia os filamentos ou nervuras perdia perdia perdia raiz ai de mim que me sinto a não pensar não parece razão não faz sentido não tem continuidade perdeu a aderência do mundo ao mesmo tempo que não havia leito por onde correr nem estrada para seguir perdi a direção ai de mim a orientação escorrego e a forma sobretudo a forma a ordem desequilíbrio permanente um chorrilho de queixas da boca da frase para fora e sem aspas a pontuação à solta e por conta própria vai bailando traquinices de liberdade a frase olha-se ao espelho e vê-se a envelhecer ela que sempre se achou livre é agora agora agora soluços afetam a frase descontinuidade perdi capacidade de atuação passeio pela desordem estou a frase não chega ao fim mas retoma para mostrar que está viva sopros de desespero esta opção talvez não seja a adequada não seria mau deixar-se ir e perceber o que encontrou mas a frase não nos ouve terá de fazer o seu luto para aceitar as fraturas e com o tempo irá reconhecer que o futuro está no que nos escapa e não nos pertence não em mim mas lá fora no que a frase não vê nem sabe descrever a vida não está só na vida há reticências e etcéteras e a frase sem se aperceber vai-se sentindo preparada e fica mais próxima de um relaxamento que lhe pode devolver os dias mesmo sabendo que não será para sempre nada é para sempre os livros também acabam e só nos resta recomeçar e podemos não ser nós a recomeçar é o mais provável tudo tem o seu fim querida frase ai de mim suspira mas sorri também com o suspiro porque afinal de contas não está para breve nunca irá estar para breve mesmo que esteja o final não se anuncia será sempre fabulosamente surpreendente fim.

Jean Capeille Entre as Linhas das Colunas: James Waring, a colagem e a acreção

PT

Em dezembro de 1956, a revista estadoudinense Dance Magazine iabre o seu número com uma rubrica – News of Dance and Dancers – em que dá conta de acontecimentos de todo o género (notícias matrimoniais, anúncios institucionais, boletins de saúde) relacionados com intérpretes da época. Por ocasião do aniversário de Mary WigmanRudolf Laban escreve um texto que a redação resolve publicar nas “Cartas dos leitores”. To Mary partilha a página com um requerimento de Tina Miruzzi que pede à revista para informar os leitores sobre eventuais oportunidades profissionais que libertem “as aspirantes a bailarinas clássicas” da frequência dos palcos televisivos e da off-Broadway. Talvez por puro acaso editorial, as páginas que precedem este apelo dizem respeito à interação entre a dança, a televisão e o cinema. As seguintes, consagradas a “bailarinos que pintam”, parecem contradizer o seu desejo de autonomia. A publicação reproduz uma colagem de James Waring acompanhada de um breve comentário: “Este bailarino e coreógrafo, de uma qualidade pessoal única, há 15 anos que produz ‘imagens, muitas das vezes colagens, porque é disso que gosto’. [E conclui…] Tal como a maior parte dos bailarinos, acha isso relaxante”iii. No que a isto diz respeito, a prática não se dissocia nem do tempo nem da matéria do seu emprego: “O trabalho de Waring, no serviço de correspondência do Time & Life Building da Rockefeller Plaza – no turno da manhã, o que lhe deixava o resto do dia para coreografar, ensaiar e dar aulas –, fornecia algum do material para as suas obras”4. Por uma estranha coincidência, a Dance Magazine também se interessou por um filatelista que acumulava representações de dança em selos. Como poderia James Waring reler o título desse artigo, “A dança faz serviço postal”v, sem o relacionar com a sua própria situação?  

A sua colagem, Sem Títulovi (1963), evidencia e contesta a linha que separa o pessoal do público. A colagem junta uma tipografia anónima ao traçado singular de uma escrita. Coloca lado a lado o tempo convencional (a que faz menção o carimbo postal) e o tempo subjetivo da composição. Deixa transparecer o nome do autor e corta-o com uma forma oblonga que atravessa o envelope. As descrições canónicas da história da colagem chamam a atenção para o encontro entre superfícies estranhas a si próprias. A unidade das composições parece assim ameaçada pelo “confronto” entre “materiais heterogéneos”; a sua planura ferida pela “mistura” de texturas; os fragmentos que se agregam são “empréstimos”, “recortes” ou “subtrações” de outras realidades. Essa incompletude do fragmento encontra o seu equivalente coreográfico numa outra coluna da Dance Magazine, na qual Doris Hering comenta as peças do autor de colagens: 

James Waring desenvolveu um estilo coreográfico único. Tem a qualidade fragmentária delicada da colagem. E cada bailarino parece envolvido por uma aura invisível, apenas com uma voz longínqua como companhia. A música, os outros bailarinos, o público, estão todos no exterior dessa aura. Esta imagética é pouco comum e poderia ser emocionante se o projeto estético do Sr. Waring fosse mais claro. […] Enquanto duas silhuetas deslizavam silenciosamente para a frente e para trás no palco […] era como se presenciássemos um ritual misterioso que estava de certa forma ligado ao nascimento do movimento. Mas assim que a música começou, os bailarinos foram cada um para seu lado e instalou-se uma esterilidade emocional. […] Como se dançasse numa caixa insonorizada, uma rapariga girava intensamente enquanto um rapaz, a olhar para o público, enchia as bochechas de ar. […] Em Ornaments [1957] e na reposição de Intrada [1955], o Sr. Waring regressou aos seus queridos palhaços e ragamuffinsvii pintados, que tremem isolados antes de se juntarem para um pequeno brilhareteviii. 

A voz distante do partenaire ausente, o silêncio que envolve a bailarina ou a solidão dos palhaços: tudo isto contribui para abstrair os intérpretes do palco e lamentar, no registo da “esterilidade”, um encontro que não acontece. Os seus movimentos são autossuficientes e ocorrem num espaço onde, tal como numa colagem, coabitam realidades heterogéneas. A recear uma realidade escondida. Para criticar a opacidade da peça (o “projeto estético” não é “claro”), será que o artigo não recorre, na sua descrição, ao próprio artista, que, num texto publicado dois anos antes no Village Voiceix, escreve: “Se as danças de [Merce] Cunningham têm ‘histórias’, elas acontecem provavelmente fora do palco, longe dos olhos do público”x? Uma outra colagem suaxi justapõe um palco e o seu inverso. No topo de uma composição em forma de fotograma, James Waring coloca duas bailarinas cujos movimentos parecem restringidos aos limites da moldura. A imagem deslavada torna as suas presenças fantasmagóricas. Por baixo, três secções (cujos círculos dentro de quadrados evocam o invólucro de um preservativo) repetem, com uma serialização aproximativa, sinais que indicam a saída: “EXIT; EXIT; EXIT.” Wayne Koestenbaum associa o espírito da colagem às subjetividades das “opera queens”, esses amadores de ópera fechados no corpo bidimensional das suas divas de papel: “Para fazer uma colagem: recorto as imagens que me excitam, que revelam o meu passado, que contam os meus segredos”xii. Na sua relação com a imagem, as opera queens contestam a narrativa das epopeias formalistas, na qual a materialidade da colagem (volume/superfície) abriga um dilema existencial (ilusão/realidade). Elas singularizam fragmentos que, desde logo, já não se resumem à sua falta. 

Será esta a preocupação que resulta do encontro entre a dança e a colagem e que leva a que o crítico Clive Barnes se refira, no New York Times, a uma duplicidade intrínseca em James Waring? Escreve Barnes: “No interior deste coreógrafo de vanguarda estava, como eu já suspeitava, um clássico não arrependido a tentar sair [struggling to get out]”xiii. Se a expressão ”get out”, em lugar de ”come out”, deixa pouco espaço para a ambiguidade, já a perturbação, instituída pela vanguarda como facto público, que associa a dança clássica a uma pulsão dissimulada, dramatiza a oposição entre culturas coreográficas dentro do registo confissão/dissimulação. Uma outra “Carta dos leitores” na Dance Magazine aponta para a problemática destas metáforas. Eis a intervenção completa de David Vaughan: 

Um crítico demasiado literal  

A ideia de que comunicar é a função primeira da dança é certamente uma invenção da crítica de espírito literal, como a que é praticada pelo Sr. Sorell, que, na sua recensão de maio à peça de James Waring, Dances Before the Wall [1957-58], se refere a uma “linguagem do movimento” e a uma “partilha da experiência”. O movimento não é uma linguagem, é movimento. A experiência que o bailarino partilha com o público é a experiência da dança, e não de uma outra coisa qualquer produzida num outro lugar e num outro tempo… Há um tipo de dança para o qual o que conta é o que se vê e não o que é suposto significar. Em outras artes, na pintura ou na música, a abordagem não-eloquente é já bastante respeitada, mas na dança, apesar de Balanchine, o preconceito literário não morre. Suspeito que se trata de vestígios do Puritanismo: a dança por si só continua a ser considerada frívola, indecente, e portanto é preciso torná-la uma arte honesta atribuindo-lhe Sentido. Só que às vezes os artistas não estão a tentar comunicar, estão a criar um mundo… Dances Before the Wall é uma das composições de dança mais belas, mais excitantes, mais civilizadas e mais enriquecedoras que tive a oportunidade de ver…xiv 

Contra o desvelamento dos significados escondidos, David Vaughan ridiculariza a ideia de comunicação que revela uma determinação para fazer falar a dança. Esta sua carta faz parte de um debate estético, é certo, mas ela também ataca o “Puritanismo” e o modo como se associa a abordagem “não-eloquente” ao imaginário da “frivolidade” e da “indecência”. Expõe-se assim uma divisão em que a “arte honesta” é colocada do lado da procura intempestiva (e maiuscular) do “Sentido”, cujas projeções colocam a visão dentro do armário. A entrada da pintura na polémica torna a ambivalência do formalismo problemática. No mesmo período, o fascínio de uma arte por aquilo que a constitui pode, por um lado, passar por uma procura do absoluto no expressionismo abstrato e, por outro, por servir uma amálgama na qual a autorreflexividade coreográfica alberga o narcisismo. Em Dance Observer, a própria Jill Johnston problematiza uma minúcia alienante, fazendo uso de termos psicofisiológicos: “Há, em tudo isto, vitalidade e esterilidade. A mão responsável é honesta, original e, por vezes, um pouco perversa na sua precisão”xv. Criticando uma circularidade inapta, Louis Horst traduzirá no corpo do texto a sua angústia com a repetição: “Peripateia [1960], com uma duração superior a uma hora, produz monotonia, monotonia e mais monotonia”xvi; isto antes de lamentar a ausência de uma “experiência comunicável”. No final dos anos 1950, o filão crítico que se ia formando em redor de James Waring aglomera significantes que giram em torno “do que não se vê”, “do que não é dito”, “do que se esconde por detrás” e/ou “do que não é partilhado”.   

Não deixa de ser assinalável que algumas das clivagens que Eve Kosofsky Sedgwick recenseou em Epistemologia do Armárioxvii (nomeadamente privado/público; canónico/não-canónico; conhecimento/ignorância) se reencontrem no seio de outras polaridades, muitas vezes associadas à obra do coreógrafo (high/low; gesto/movimento; amador/profissional; abstrato/significante; vanguarda/tradição). Na relação entre biografia artística e pessoal (ao contrário do “armário imposto” aos artistas gay durante o episódio da paranoia homofóbica da “ameaça lavanda”xviii ), Jonathan Katz confere ao “silêncio queer de John Cage” uma ética da coexistência: “O silêncio era o agente que ‘unia as coisas que se pensavam contrárias’”xix. Neste silêncio emancipador, James Waring chama a atenção para a importância de um limite para a apreensão “em surdina”: “As pessoas julgam que as emoções advêm da violência. Olham para uma coisa e dizem ‘isto aqui não tem emoção’. Mas as emoções estão lá sempre, só que presentes num nível mais abaixo do que aquele a que estão habituadas […] Não é preciso nomear um sentimento ou uma emoção, porque é bem possível que não haja palavras para o fazer. É raro eu sentir uma coisa que possa nomear”xx.

Sem se deixar iludir, o próprio artista reconhece as consequências de tal processo na economia da sua visibilidade: “Eu não tenho um estilo único. O problema de ter ou não ter um estilo não é um problema meu. O estilo resulta de um processo artístico, não interessa por si só. O estilo é o processo”xxi. Num período marcado por intensos debates sobre a noção de copyright em coreografiaxxii, esta recusa de uma paternidade estilística motiva apropriações livres de movimentos de repertórios gestuais muito variados (clássicos, modernos e vernaculares) aos quais James Waring se entrega, rejeitando que sejam colocados em concorrência. Se entendermos o estilo como a matriz de inteligência de uma obra, compreenderemos facilmente a capitulação de Clives Barnes, quando escreve, a propósito das combinações de Northern Lights (1966): “Trata-se de uma obra bizarramente difícil e eis-me a andar à volta dela sem nada a que me agarrar […]. Com as nossas belas distinções, afundamo-nos viscosamente num mar semântico”xxiii. Lúcido relativamente ao perigo das taxonomias, são precisamente as tais “belas distinções” que arrastam o crítico para as profundezas dos fundos semânticos (imerso numa viscosidade que não deixa de evocar a colagem). Num dos seus textos, o coreógrafo sublinha um problema imprevisível na receção das suas construções: “O facto de eu combinar tipos tão díspares de movimentos não era compreendido pela maior parte das pessoas. […] O que não era compreendido é que eu procurava combinar estes movimentos em frases”xxiv. Segundo James Waring, o problema (que D. Vaughan classifica como “método-colagem de fazer dança”xxv) reside não tanto na variedade dos materiais quanto na sua junção. O antagonismo habitualmente atribuído às justaposições da colagem (os “lado a lado” e “face a face”) tornava impossível a perceção de movimentos díspares na frase. Recorrendo a um vocabulário da astrofísica, James Waring refere-se em seguida a um “estilo de movimento por acreção”, evocando a formação de estrelas, planetas ou de um volume em construção composto por diferentes objetos. A acreção agrega mais do que separa. Usando as palavras de Sally Banes (que recorre à analogia da gravidade): “Esta mistura permite que as danças não caiam em nenhuma categoria”xxvi. 

Se o artista, o coreógrafo, o autor de colagens, relacionava as primeiras receções da dança experimental com o problema das projeções literárias e/ou significantesxxvii, a clivagem assimetria/unidade, que é alvo de crítica nas suas coreografias (por certo uma crítica que se deve às expectativas dramatúrgicas falhadas), advém também da sua relação com a colagem. Antes da democratização do conceito intermedia (de Dick Higgins, que não esconde o seu ceticismo sobre a capacidade da imprensa de dar conta de tais fenómenosxxviii), os media adotam uma atitude de cruzamento de medium. Não se contentam, à maneira da Dance Magazine, em assinalar uma “tendência” do campo coreográfico (“os bailarinos que pintam”), mas participam ativamente na encenação de divisões que animam e ultrapassam a relação entre dança e colagem. Se, entre as linhas das suas colunas, este intermedia se deixa afetar pelas suas projeções e apanhar pela armadilha dos seus dualismos ninguém vê nisso a desrealização das relações cénicas. Já em 1958 Allen Ginsberg escrevia, a propósito de Dances Before the Wall: “Por vezes a impressão de uma tela de [Paul] Klee que ganha vida, acontecimentos idiossincráticos em miniatura que são justapostos e se movem independentes uns dos outros num mesmo tempo e espaço”xxix. Eis a importância de recusar a oposição entre singularidade e coletividade: “Coisas que se desenrolam em diferentes direções em simultâneo. Felizes”xxx. 

Traduzido do original francês por J. M. Vieira Mendes. 

i A Dance Magazine é uma revista mensal, publicada nos Estados Unidos desde 1927, que se ocupa da atualidade de uma variedade de práticas e debates relacionados com a coreografia.
ii Pedi emprestada esta expressão a Alwin Nikolais, “No Man from Mars”, texto publicado em Selma Jeanne Cohen, ed., The Modern Dance: Seven Statements (Middletown, CT: Wesleyan University Press, 1965), 63.
iii James Waring citado em “Dancers Who Paint, a Holiday Season Exhibition”, Dance Magazine, 30, n.° 12 (dezembro de 1956): 25.
iv Gerard Forde, “Poet’s Vaudeville: The Collages of James Waring”, publicado a propósito da exposição “James Waring”, patente de 11/09/2013 a 12/10/2013 na Galerie 1900-2000, em Paris. v “Dance Does Postal Service”, Dance Magazine, op. cit., 40, 41 e 62. vi James Waring, Sem Título, 1963, Colagem sobre cartão, 20x14cm, Galerie 1900-2000, Paris.
vii Expressão inglesa que se refere a figuras andrajosas ou vagabundos [N. do T.].
viii Doris Hering, “Choreography by James Waring, Master Institute April 23 and 24, 1957”, Dance Magazine, 31, n.° 6 (junho de 1957): 87.
ix Criado em 1955 por Norman Mailer, Dan Wolf e Ed Fancher, o Village Voice é um semanário norte-americano lançado no bairro de Village que comenta e participa na atualidade cultural e política.
x James Waring, “Merce Cunningham: Maker of Dances in a Style Eloquentely his Own”, Village Voice, 2 de janeiro de 1957, 6.
xi James Waring, Sem título, 1962, colagem sobre cartão, 27,8 x 7,7 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
xii Wayne Koestenbaum, The queen’s throat: opera, homosexuality, and the mystery of desire (Nova Iorque: Poseidon Press, 1993): 64.
xiii Clive Barnes, “Dance: Classy Classicist”, New York Times, 13 de fevereiro de 1968.
xiv David Vaughan, “Letters from our readers”, Dance Magazine, 32, n.° 6 (junho de 1958): 21.
xv Jill Johnston, “James Waring and company. Henry St. Playhouse, December 7, 1958”, Dance Observer (janeiro de 1959): 10.
xvi Louis Horst, “James Waring and company. Fashion Institute of Technology, December 17, 1960”, Dance Observer (março de 1961): 42.
xvii Eve Kosofsky Sedgwick, Epistemology of the Closet (Berkeley: University of California Press, 1990).
xxviii Ver David K. Johnson, The Lavender Scare: The Cold War Persecution of Gays and Lesbians (Chicago: University of Chicago Press, 2006).
xix Jonathan D. Katz, “John Cage’s Queer Silence; or, How to Avoid Making Matters Worse”, GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, 5, n.° 2 (1 de abril de 1999): 239.
xx James Waring, citado a partir de uma transcrição retirada da lição “100 questões sobre dança”, gravada na Judson Church em fevereiro de 1968, Pacifica Radio Archives, Los Angeles, Califórnia.
xxi James Waring, “The Paradoxes of James Waring”, Dance Magazine, 42, n.° 11 (novembro de 1968): 64.
xxii Anthea Kraut, Choreographing Copyright: Race, Gender, and Intellectual Property Rights in American Dance (Nova Iorque: Oxford University Press, 2015).
xxiii Clive Barnes, “’Northern Lights’ Manhattan Festival Ballet Performs Unusual New Work by James Waring”, New York Times, 10 de janeiro de 1967.
xxiv James Waring, “My Work”, Ballet Review, 5, n.° 4 (1975-1976): 111.
xxv David Vaughan, “James Waring: A Remembrance”, Performing Arts Journal, 5, n.° 2, American Theatre: Fission/Fusion (1981): 108.
xxvi Sally Banes, “James Waring Festival Judson Memorial Church, April 21-30”, Dance Magazine, 52, n.° 8 (agosto de 1978): 31.
xxvii James Waring, “100 questões sobre dança”, op.cit., “[Durante os anos 1950] os críticos começaram a olhar para a dança como se se tratasse de uma peça de teatro, de um texto literário, de uma história ou de um drama e criticavam-na com base nisso.”
xxviii Dick Higgins, “Intermedia”, Something Else Newsletter, 1 (fevereiro de 1966).
xxix Allen Ginsberg, “James Waring & Co”, Village Voice, 17 de dezembro de 1958, 7.
xxx Ibid.

FR

En décembre 1956, la revue états-unienne Dance Magazine s’ouvre sur une rubrique – News of Dance and Dancers – qui chronique des évènements en tout genre (annonces matrimoniales, aléas institutionnels, bulletins de santé) liés aux interprètes de la période. À l’occasion de l’anniversaire de Mary Wigman, Rudolf Laban adresse un texte que la rédaction affecte au « Courrier des Lecteurs ». To Mary partage sa page avec une requête de Tina Miruzzi demandant au magazine de renseigner son lectorat sur d’éventuelles opportunités professionnelles qui émanciperaient les « danseuses de ballet en devenir » de la fréquentation des plateaux de télévision et de l’off-Broadway. Hasard éditorial, les pages qui précèdent sa demande concernent les interactions entre la danse, la télévision et le cinéma. Les suivantes, consacrées aux « danseurs qui peignent » semblent contredire ses vœux d’autonomie. La publication reproduit un collage de James Waring et l’accompagne d’un court commentaire : « Ce danseur et chorégraphe d’une qualité personnelle, unique, a, depuis 15 ans, ”réalisé des images, la plupart du temps des collages, parce que j’aime ça” [et le texte de conclure] Comme la plupart des danseurs, il trouve ça relaxanti ». Pourtant, le concernant, la pratique ne se dissocie ni du temps ni des matériaux de son travail : « le boulot de Waring aux services du courrier Time & Life Building de la Rockefeller Plaza – dans l’équipe du matin, ce qui lui laissait le reste de la journée pour chorégraphier, répéter et enseigner – fournissait certains matériaux de ses œuvresii ». Par une étrange coïncidence, Dance Magazine s’intéresse aussi à un philatéliste thésaurisant des représentations de danses sur timbre. Comment James Waring pouvait-il relire l’intitulé de cet article – « La danse au service postaliii » – en rapport à sa propre situation ?

Son collage, Sans Titreiv (1963), anime et conteste la ligne de partage qui sépare le personnel du public. Il assemble une typographie anonyme au tracé singulier d’une écriture. Il met en présence le temps conventionnel (dont la marque postale fait mention) et subjectif de la composition. Il laisse apparaître le nom de l’auteur et le scinde d’une forme oblongue qui traverse l’enveloppe. Les descriptions canoniques de l’histoire du collage mettent en scène des surfaces étrangères à elles-mêmes. L’unité de leurs compositions semble menacée par la « confrontation » de « matériaux hétérogènes » ; leur planéité meurtrie par la « mixité » des textures ; les fragments qui s’y agrègent « empruntés », « découpés » ou « soustraits » à d’autres réalités. Cette incomplétude du fragment trouve son équivalent chorégraphique dans une autre colonne de Dance Magazine dans laquelle Doris Hering commente les pièces du collagiste :

James Waring a élaboré un style chorégraphique unique. Celui-ci a la qualité délicatement fragmentée d’un collage. Et chaque danseur semble enveloppé dans une aura invisible avec une voix lointaine comme seule compagnie. La musique, les autres danseurs, le public : tout le reste est à l’extérieur. Cette imagerie est inhabituelle, elle pourrait être émouvante si le projet esthétique de M. Waring était apparent (…) Alors que deux silhouettes glissaient silencieusement d’avant en arrière sur la scène (…) nous semblions assister à un rite mystérieux lié, d’une certaine manière, à la naissance du mouvement. Mais lorsque la musique a commencé, les danseurs ont pris des chemins séparés et une stérilité émotionnelle s’est installée (…) Comme si elle dansait dans une chambre insonorisée, une fille tourne intensément en rond tandis qu’un garçon fixe le public et gonfle ses joues. (…) Dans Ornements [1957] et la reprise d’Intrada [1955], M. Waring revient à son ensemble préféré de clowns et autres ragamuffins peints tremblants dans l’isolement avant d’être enfin réunis pour un éblouissement instantanév.

La voix distante du partenaire absent, le silence qui abrite la danseuse ou la solitude des clowns : tout concourt à abstraire les interprètes de la scène ; déplorer, dans le registre de la « stérilité », une rencontre qui n’advient pas. Leurs mouvements se déploient en autarcie dans un espace où, à l’instar d’un collage, cohabitent des réalités hétérogènes. Craintes d’une réalité soustraite à la vue. Pour critiquer l’opacité de la pièce (le « projet esthétique » n’est pas « apparent ») le texte n’emprunte-t-il pas sa description à l’artiste lui-même qui – dans un papier publié deux ans plus tôt dans le Village Voice – écrivait : « si les danses de [Merce] Cunningham ont des ”histoires”, celles-ci se déroulent peut-être au-delà de la scène, hors de la vue du publicvi » ? Un autre de ses collagesvii superpose une scène et son envers. Au sommet d’une composition en forme de photogramme, James Waring place deux danseuses dont les mouvements semblent restreints par les limites du cadre.  L’image délavée rend leurs présences fantomatiques. En dessous, trois autres sections (dont les ronds encadrés évoquent l’enveloppe de préservatifs) répètent les signes du départ avec une sérialité approximative : « EXIT ; EXIT ; EXIT ». Wayne Koestenbaum associe l’esprit du collage aux subjectivités des « folles lyriques » ; ces fans d’opéra enfermés avec le corps bidimensionnel de leurs divas de papier : « Pour créer un collage : je découpe des images qui m’excitent, qui réveillent mon passé, qui disent mes secretsviii ». Dans leur rapport à l’image, les folles lyriques contestent le récit des épopées formalistes où la matérialité du collage (volume/surface) abrite un dilemme existentiel (illusion/réalité). Elles singularisent des fragments qui, dès lors, ne se résument plus à leur manque.

Est-ce seulement le trouble issu de la rencontre de la danse et du collage qui conduit le critique Clive Barnes à formuler, dans le Times, l’idée d’une duplicité intrinsèque à James Waring ? Il affirme ainsi : « [qu’] à l’intérieur du chorégraphe d’avant-garde se trouvait, comme je l’ai déjà suspecté, un classique non repenti luttant pour sortir [struggling to get out]ix ». Si l’emploi de ”get out” au lieu de ”come out” ne ménage qu’une mince ambiguïté, le renversement – qui institue l’avant-garde comme fait public et associe la danse classique à une pulsion dissimulée – dramatise l’opposition de cultures chorégraphiques dans le registre aveu/dissimulation. Un autre « courrier des lecteurs » de Dance Magazine situe l’enjeux de ces métaphores. Voici l’intégralité de la réponse de David Vaughan :

Critique trop littéral

L’idée que la fonction première de la danse est de communiquer est, certainement, l’invention d’un critique à l’esprit littéral comme celui de M. Sorell, qui, dans sa critique de mai, de la pièce de James Waring – Dances Before the Wall [1957-58], parle de “langage du mouvement” et de “partage d’expérience”. Le mouvement n’est pas un langage : c’est du mouvement. L’expérience que le danseur partage avec le public est l’expérience de la danse, et non de quelque chose d’autre qui se serait produit ailleurs et dans un autre temps… Il existe une sorte de danse dans laquelle ce qui compte, c’est ce que vous voyez, et non ce qu’elle est censée signifier. Dans d’autres arts, en peinture ou en musique, l’approche non-signifiante [non eloquent] est maintenant tout à fait respectée ; mais dans la danse, malgré Balanchine, le préjugé littéraire n’en finit pas de mourir. Il s’agit là, je l’imagine, d’un vestige du puritanisme : la danse pour elle-même est encore considérée comme frivole, voire indécente, et il faut donc en faire une forme d’art honnête en lui donnant du Sens. Parfois, les artistes ne veulent pas communiquer, ils veulent créer un monde… Dances Before the Wall est l’une des compositions de danse les plus belles, les plus excitantes, les plus civilisées et les plus enrichissantes que j’ai eu la chance de voir…x

Contre le dévoilement du sens caché, David Vaughan tourne en dérision la communication qui relève ici d’une injonction à faire parler la danse. Sans doute, son courrier appartient à un débat esthétique ; mais il attaque aussi le « puritanisme » visant à instruire le procès de l’approche non eloquent dans l’imaginaire de la « frivolité » et de « l’indécence ». Émerge ici un partage dans lequel « l’art honnête » est renvoyé du côté de la recherche intempestive (et majusculaire) de « Sens » dont les projections mettent la vision au placard. L’irruption de la peinture dans la polémique rend problématique l’ambivalence du formalisme. Dans la même période, l’attrait d’un art pour ses constituants peut à la fois passer pour une recherche d’absolu dans l’expressionisme abstrait et servir un amalgame où l’autoréflexivité chorégraphique abrite un narcissisme. Dans le Dance Observer, Jill Johnston, elle-même, problématise une méticulosité aliénante en usant de termes psycho-physiologiques : « Il y a, dans tout cela, à la fois de la vitalité et de la stérilité.  La main responsable est honnête, originale, et, parfois, un peu perverse dans sa précisionxi ». Critiquant une circularité inepte, Louis Horst traduira dans le corps du texte son angoisse de la répétition : « Peripateia [1960] qui a duré plus d’une heure, produisant de la monotonie, de la monotonie et encore de la monotoniexii » ; avant de déplorer l’absence « d’expérience communicable ». À l’issue des années 1950, le filet critique qui se forme autour des pièces de James Waring contracte des signifiants liés à « ce que l’on ne voit pas » ; « ce qui n’est pas dit » ; « ce qui se cache derrière » et/ou « ce qui n’est pas partagé ».

Il est frappant de lire que certains des clivages qu’Eve Kosofsky Sedgwick a recensés dans son Épistémologie du Placardxiii (notamment privé/public ; canonique/non canonique ; savoir/ignorance) se retrouvent au sein d’autres polarités constamment associées à ses chorégraphies (high/low ; geste/mouvement ; amateur/professionnel ; abstrait/signifiant ; avant-garde/tradition). Dans un rapport entre biographie artistique et personnelle (à rebours du motif du « placard imposé » aux artistes gays durant l’épisode de paranoïa homophobe de la peur violettexiv) Jonathan Katz confère au « silence queer de John Cage » une éthique de la coexistence : « l’agent de ‘réunion des choses que l’on pensait opposées’ c’était le silencexv ». À cet endroit d’un silence émancipateur, James Waring situe, lui aussi, l’importance d’un seuil de perception « en sourdine » : « Les gens pensent que les émotions relèvent de la violence. Ils regardent quelque chose et disent : ‘il n’y a pas d’émotion ici’. Mais les émotions sont toujours là ; seulement présentes à un degré plus bas auquel ils ne sont pas habitués (…) nul besoin de nommer un sentiment ou une émotion, aucun mot ne pourrait s’en charger. J’éprouve rarement un sentiment que je saurais nommerxvi ».

Sans équivoque, l’artiste expose les conséquences du processus dans l’économie de sa propre visibilité : « Je n’ai pas un style unique. Ce n’est pas mon problème d’avoir ou non style. Le style résulte d’un processus artistique, il n’est pas intéressant en lui-même. Ce qui l’est : c’est le processusxvii ». Dans une période marquée par d’intenses débats autour de la notion de copyright en chorégraphiexviii, ce refus d’une paternité stylistique motive les libres appropriations de mouvements issus de répertoires gestuels bigarrés (classiques, modernes et vernaculaires) auxquelles s’adonne le collagiste ; contestant ainsi leur mise en concurrence. Si le style est pensé comme la matrice d’intelligibilité d’une œuvre, on comprend dès lors la déroute d’un Clives Barnes lorsqu’il commente les combinaisons de Northern Lights (1966) : « c’était un travail bizarrement difficile, et me voilà en train de roder autour sans trouver de prises pour m’y accrocher (…) Avec nos belles distinctions, nous coulons, collants, dans une mer sémantiquexix ». Lucide sur le péril des taxonomies, ce sont bien leurs « belles distinctions » qui entrainent le critique dans les profondeurs de ces fonds sémantiques (immergé dans une substance collante qui n’est pas sans évoquer le collage). Dans l’un de ses textes, James Waring soulève un problème inattendu dans la réception de ses constructions : « mes combinaisons de types de mouvements disparates n’étaient pas comprises par la plupart des personnes (…) Ce qui n’était pas compris, c’est que je cherchais à faire des phrases à partir de ces combinaisons de mouvementsxx ». Selon lui, le problème (de ce que D. Vaughan qualifie de « méthodes-collage de fabrication du mouvementxxi ») réside moins dans la variété des matériaux mobilisés que dans le geste visant à les unir. Un antagonisme attribué aux juxtapositions du collage (les « côte à côte » et « face à face ») rendrait impossible la perception de mouvements disparates en phrase. Dans le vocabulaire de l’astrophysique, il nomme ensuite un « style de mouvement par accrétion » ; évoquant la formation d’étoiles, de planètes ou d’un volume en devenir composé d’objets divers. L’accrétion réunit plus qu’elle ne disjoint. Pour le dire avec Sally Banes (qui filerait ici l’analogie spatiale de la gravitation) : « cette mixture empêche les danses de tomber dans une catégoriexxii ».

Si l’artiste, le chorégraphe, le collagiste ont lié les premières réceptions de la danse expérimentale au problème des projections littéraires et/ou signifiantesxxiii : le clivage disparité/unité – critiqué dans ses chorégraphies (et certainement lié aux attentes dramaturgiques qu’elles déçoivent) – relèvent aussi de leur rapport au collage. Avant la popularisation du concept d’intermedia par Dick Higgins – qui s’affirme pourtant sceptique sur la capacité de la presse à rendre compte de tels phénomènesxxiv – les médias prennent acte d’une attitude à la croisée des médiums. Ils ne se contentent pas, comme Dance Magazine, de relever une « lubie » du champ chorégraphique (« ces danseurs qui peignent ») mais participent à mettre en scène des partages qui animent, et débordent, le rapport entre la danse et le collage. Si, entre les lignes de leurs colonnes, cet intermedia se laisse affecter par leurs projections, piéger dans leurs dualismes ; toutes n’y voient pas la déréalisation des relations scéniques. Dès 1958, Allen Ginsberg relate, à propos de Dances Before the Wall, : « l’impression qu’une toile de [Paul] Klee s’anime : des événements idiosyncrasiques en miniature juxtaposés et se déplaçant indépendamment les uns des autres et, en même temps, dans un seul espacexxv ». Il y va de l’importance à refuser l’opposition entre singularité et collectivité : « des choses se déroulent dans différentes directions simultanément. Heureux.xxvi».

i James Waring cité dans « Dancers who Paint, A Holiday Season Exhibition », Dance Magazine, vol. 30, n°12, décembre 1956, p. 25. [« This concert dancer and choreographer with a personal, unique quality, has, for about 15 years, “made pictures, mostly collages, because I like to.” Like most dancers he finds it relaxing »]
ii Gerard Forde, « Poet’s Vaudeville: The Collages of James Waring » (mis en ligne par G. Forde), publié à l’occasion de l’exposition « James Waring » du 11/09/2013 au 12/10/2013 à la Galerie 1900-2000, Paris [« Waring’s job in the mail room at the Time & Life Building at Rockefeller Plaza – an early morning shift that left him the remainder of the day to choreograph, rehearse and teach – supplied some of the materials for his artworks »]
iii « Dance Does Postal Service », Dance Magazine, op. cit., p. 40, 41 et 62.
iv James Waring, Sans Titre, 1963, Collage sur carton, 20 x 14 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
v Doris Hering, « Choreography by James Waring, Master Institute April 23 and 24, 1957 », Dance Magazine, vol. 31, n°6, juin 1957, p. 87. [« James Waring has evolved a unique choreographic style. It has the delicately fragmented quality of a collage. And each dancer seems enveloped in an invisible aura whose only other occupant is a far­away voice. The music, the other dancers, the audience, all are on the outside. This imagery is unusual, and it could be moving if Mr. Waring’s esthetic purpose were also apparent (…) As two silhouetted figures glided silently back and forth across the stage (…) we seemed to be witnessing a mysterious rite in some way connected with the birth of movement. But when the music began, the dancers went separate ways, and emotional sterility set in. (…) As though dancing in a soundproof chamber, a girl gyrated intensely while a boy stared out at the audience and puffed his cheeks (…) In Ornaments and in the repeat of Intrada, Mr. Waring reverted to his favorite set of clowns and painted ragamuffins trembling in isolation and finally brought together for a flashing instant »]
vi James Waring, « Merce Cunningham: Maker of Dances in a Style Eloquentely his Own », Village Voice, 2 janvier 1957, p. 6. [« If Mr. Cunningham’s dances have “stories”, they perhaps take place beyond the scenery out of view of the audience »]
vii James Waring, Sans Titre, 1962, Collage sur carton, 27,8 x 7,7 cm, Galerie 1900-2000, Paris.
viii Wayne Koestenbaum, Anatomie de la folle lyrique, trad. de l’anglais (États-Unis) par Laurent Bury, Paris, La Rue Musicale, 2019, p. 106.
ix Clive Barnes, « Dance: Classy Classicist », New York Times, 13 février 1968 [« inside this avant-garde choreographer, was, as I at times suspected, an unrepentant classicist struggling to get out»]
x David Vaughan, « Letters from our readers », Dance Magazine, vol. 32, n°6, juin 1958, p. 21.  [Too Literal Critic. The idea that the primary function of dance is to communicate is an invention, surely, of literal-minded critics like Mr. Sorell, who, in his May review of James Waring’s Dances Before the Wall, discusses “movement language” and “sharing experience.” Movement isn’t a language, it is movement. The experience the dancer shares with the audience is the experience of dancing—not something else that happened somewhere else, some other time…There is a kind of dancing in which what matters is what you see, not what it is supposed to mean. In other arts, in painting, in music, the non-eloquent approach is quite respectable by now; but in dancing, in spite of Balanchine, the literary prejudice dies hard. I suspect this is something left over from Puritanism — dancing for its own sake is still considered frivolous, if not indecent, so you must make an honest art form of it by giving it Meaning. Sometimes artists do not try to communicate, they simply create a world . . . Dances Before the Wall was one of the most beautiful, exciting, civilized and life-enhancing dance compositions I have ever been lucky enough to see . . .]
xi Jill Johnston, « James Waring and company. Henry St. Playhouse, December 7, 1958 », Dance Observer, janvier 1959, p. 10. [«There is vitality and sterility both in all this. And the hand behind it is honest and original, if occasionally a bit preciously perverse»]
xii Louis Horst, « James Waring and company. Fashion Institute of Technology, December 17, 1960 », Dance Observer, mars 1961, p. 42. [« Peripateia, that went on for over an hour, producing monotony, monotony and more monotony »]
xiii Eve Kosofsky Sedgwick, Épistémologie du placard (1990), trad. de l’anglais (États-Unis) par Maxime Cervulle, Paris, Éditions Amsterdam, 2008.
xiv Voir David K. Johnson, The Lavender Scare: The Cold War Persecution of Gays and Lesbians, Chicago: University of Chicago Press, 2006.
xv Jonathan D. Katz, « John Cage’s Queer Silence; or, How to Avoid Making Matters Worse », GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, vol. 5, n° 2), 1 avril 1999, p. 239. [« The agent of that “coming together of things which were opposed was silence. »]
xvi James Waring, cité à partir d’une transcription tirée de la lecture « 100 Questions about Dance » enregistrée à la Judson Church en février 1968, Pacifica Radio Archives, Los Angeles, Californie. [« People think of emotion as being violent emotion they look at something and they say “well there’s no emotion in it” it’s because there is emotion but its feeling on a lower level than they are accustom to (…) There is no need to name a feeling or an emotion because they may very well be no name for it, I hardly ever have a feeling I could name »]
xvii James Waring, « The Paradoxes of James Waring », Dance Magazine, vol. 42, n°11, novembre 1968, p. 64. [« I don’t have a single style. I don’t worry about having a style. Style is a result of the artistic process, and not interesting in itself. What is interesting is process. »]
xviii Anthea Kraut, Choreographing Copyright: Race, Gender, and Intellectual Property Rights in American Dance, New York: Oxford University Press, 2015.
xix Clive Barnes, « ‘Northern Lights’ Manhattan Festival Ballet Performs Unusual New Work by James Waring », New York Times, 10 janvier 1967 [« it was an oddly difficult work, and now I find myself prowling around it, trying to find a place to grasp (…) We sink stickily into a semantic sea with our fine distinctions »]
xx James Waring, « My Work », Ballet Review, vol. 5, n°4, 1975-1976, p. 111. [« My combining in my choreography of such disparate kinds of movement was not understood by most people (…) What was not understood was that I was working to combine these movements in terms of phrases: my movement style of accretion seemed arbitrary to critics and audiences. »]
xxi David Vaughan, « James Waring: A Rememberance », Performing Arts Journal, vol. 5, n°2, American Theatre: Fission/Fusion 1981, p. 108. [« His collage-like method of making dances »]
xxii Sally Banes, « James Waring Festival Judson Memorial Church, April 21-30 », Dance Magazine, vol. 52, n°8, aout 1978, p. 31. [« The mixture prevents the dances from falling into anyone category »]
xxiii James Waring, « 100 Questions about Dance », op.cit., [«critics began to look at every dance as if it was a play, or was literary, or was a story, or was a drama and criticized it on those grounds »]
xxiv Dick Higgins, « Intermedia », Something Else Newsletter, n°1, février 1966.
xxv Allen Ginsberg, « James Waring & Co », Village Voice, 17 décembre 1958, p. 7. [« At times impression of an animated Klee painting, miniature idiosyncratic events juxtaposed and moving independently of each other at the same time in one space »]
xxvi Ibid. [« Things going in different directions simultaneously. Happy. »]

Pedro Marum Insaciável Ressaca de Dançar

24 DE OUTUBRO DE 2020

Foi há 15 anos que organizei a minha primeira festa sem estar sob a alçada de adultos. Uma festa de Halloween com um monte de adolescentes de 16 e 17 anos com as hormonas aos saltos, do sul rural de Portugal, cuja noção de desobediência era fazer cosplay e comer cereais de pequeno-almoço com Malibu em vez de leite. Tinha na grande maioria amigas, e a minha melhor amiga/namorada faria o seu come-out como lésbica no ano seguinte. Para a festa, gravámos alguns CD com seleções ecléticas de eurodance, mellow-cheesy trance, UK trip hop, músicas de compilações que vinham com revistas de tuning que o meu pai comprava e algumas descobertas aleatórias no Soulseek. ATB, Faithless, Paul Oakenfold, Orbital. Independentemente do que se possa dizer do nosso gosto musical, havia sem dúvida uma batida. E nós estávamos sob o seu efeito. Longe de qualquer cultura club convidativa para pessoas queer, tínhamos de organizar as nossas próprias festas. Aqui não me refiro a queer como o gesto político de exploração da sexualidade e do género, mas sim à experiência de crescer com vergonha e a reprimir os próprios desejos sexuais e expressão de género. Nem sequer se falava sobre isso. A festa como pedra filosofal, a transformar a vergonha em comunhão e a pulsão de morte num desastre utópico, sedento de vida. Não me lembro de dançar, mas certamente que dançávamos. Era tímidx mas tinha sede de batidas. Mal sabia eu que festejar era um ensaio premonitório do que acabaria por se tornar um pilar fundamental na minha vida.  

14 DE NOVEMBRO DE 2020

Hey Steph, acabei de regressar de Portugal. Foi uma experiência agridoce mas importante. Desde a morte da minha amiga que sentia falta de estar com aquelas pessoas. Visitar as minhas origens lembra-me experiências infelizes, mas dá-me algum conforto. O sol e o ar seco do sul, sinto-os como revigorantes e melancólicos. No Algarve, fico com a sensação de estar a viajar no tempo, o que é libertador nos dias que correm. Lembro-me de que tudo se torna eventualmente parte do passado. Imagino que seja difícil estares longe de casa neste momento, mas, mesmo que estivesses aqui, terias de dançar sozinhx. As ruas estão desertas e o vírus causa um pânico que paira sobre nós. A previsão do futuro não me parece auspiciosa. Estamos cansadxs de navegar online num mar de desgraças, do trajeto rotineiro da cama para o trabalho, sem nunca sentirmos uma brisa. Como é que aqueles sem voz praticam atos de dissidência, se não nos é permitido dançar nas ruas?  

Acordo, faço exercício, estudo alemão online, oiço e toco música, assisto a uma palestra, vejo vídeos no Youtube, porno, leio um livro. Hoje voltei a não sair de casa. O tempo a morder a sua própria cauda. Quero intoxicar-me até ao nirvana. 

26 DE NOVEMBRO DE 2020

A música tem-me acompanhado ao longo da vida. A melhor companhia que poderia imaginar. Durante a minha adolescência, queer e solitária, comecei a ouvir música vorazmente. No caminho para a escola, durante os intervalos, no carro com os meus pais, enquanto dormia. Não necessariamente consciente da sua história, dos géneros ou biografias, tinha acesso a downloads ilimitados sem o risco de ser punidx pela lei ou pela minha consciência ética. Este consumo obsessivo manteve-me a cabeça e os ouvidos ocupados, numa altura em que sentia as minhas relações com outras pessoas e o mundo como insatisfatórias ou hostis. Fim da analepse. Isoladx no meu quarto sob uma pandemia mortal, privadx da abundância de corpos – clubs suados, novelos de carícias ou outros encontros carnais –, os kicks de baixa frequência e as notas agudas das minhas colunas são os principais elementos que me fazem suar e ofegar. A minha própria cúpula bacteriana. Oiço música para viagens erógenas quase solitárias, na companhia de brinquedos sexuais.  

15 DE DEZEMBRO DE 2020

É difícil escrever sobre o ano que passou. Foi-nos recordado de forma violenta e repetida que a vida é precária e que as nossas condições materiais podem mudar numa fração de segundos. A ilusão de uma vida confortável e alinhada com os astros, de um futuro previsível, foi tomada de assalto. Para algumas pessoas, a complexidade caótica dos acontecimentos resultantes do aparecimento de um novo vírus mortal só pode ser explicada com teorias de complexidade equivalente. No entanto, eventos de igual magnitude acontecem a todo o momento, mas imiscuem-se no tecido da realidade sem que a maioria de nós dê por isso. Mutações genéticas, blocos de matéria a viajar a altas velocidades pelo espaço, uma curva mal dada, a colisão com a pessoa errada. A vida está constantemente a recalibrar-se de catástrofes transformadoras e de possíveis mortes.   

Torna-se cada vez mais difícil escrever na sequência da morte de uma importante parte de mim. Sinto-me presx numa sucessão sem fim de luto mal ou não-remunerado. Palestras, palestras, grupos de leitura, ensaios, mixes. Nunca soube o que dizer quando me perguntam o que faço. Artista? DJ? Curadorx? Estudante? Entretanto, sinto que nos tornámos de repente historiadorxs. Recitando interminavelmente as nossas próprias mitologias.  

2 DE JANEIRO DE 2021 

Entre amigxs comentávamos como a pandemia provou de quão poucos bens precisamos realmente para viver. Precisamos de acesso a cuidados de saúde, Segurança Social, direito ao protesto e à reunião. Bens de luxo podem ser atirados pela janela, mas, tal como as personagens das ficções de Octavia Butler1 que atravessam calamidades apocalípticas, vital é estabelecer relações simbióticas de camaradagem, amizade e amor. O papel social das festas queer era, para muitxs, o de organizar encontros, convívio e ajuda mútua, dentro e para além da pista de dança. E agora, Octavia, o que nos resta? Temos de continuar a nossa dança, sem fim. 

12 DE JANEIRO DE 2021

No outro dia vi uma performance de rua em Kottbusser Tor, mesmo junto ao meu apartamento. Parecia uma personificação sinistra da barata humanoide kafkiana, umx  artista vestidx com sacos de lixo e antenas. Sob um céu cinzento, rastejava no topo da entrada do metro enquanto se ouvia o que soava ser Aphex Twin. Uma pequena multidão pasmava, incerta se entretida ou enojada com a figura. Depois de tantos meses sem ver qualquer performance no espaço público, a imagem permaneceu na minha mente como uma boa representação da atual hauntology de muitxs artistas queer. Criaturas pestilentas que habitam nas fendas desta cidade, fazendo raras aparições, lembrando a todxs que muitxs de nós que ainda aqui estamos, precariamente vivxs, resilientes que nem baratas, causando terror e inspiração. Somos evocações repulsivas de práticas asséticas, agora tidas como ainda mais perigosas, proibidas e desejadas. Em drag, pegajosxs, trashy, suadxs, mutantes anárquicxs, o terror das famílias, dxs piores inimigxs da polícia, sem saber onde começa ou acaba, manifestantes inventivxs, auto-organizadxs, fazendo raves das ruínas. Foi breve, mas aqueceu-me o coração. Não pretendo delirar com a nossa própria miséria poor-nográfica mas, ye, sinto falta das festividades imundas e de dissipar energia numa dança eterna. 

Mariana, sinto a tua falta.  

Bhenji Ra Fadiga da Imaginação

Fadiga da imaginação, um ponto de partida. 

House of Sle. Dezassete corpos na house, doze children, cinco grandchildren. Eu sou a mother. Sle significa Sisters Liberating Eachother (Manas a Libertarem-se Mutuamente). 

  1. O meu corpo está on. O meu corpo é mais um evento do que um lugar, não está pausado, está a ocorrer, ativo e em continuidade. Um acontecimento, apesar dos cancelamentos e adiamentos, reagendamentos que se repetem, este corpo está a acontecer, faça chuva ou sol ou pandemia, o corpo está on. O corpo comunica e responde, dirige e coleciona. O corpo está a fazer download e ao mesmo tempo está a chegar lá. Quando caí da minha prancha de surf esta manhã, o meu tornozelo levou com todo o meu peso e quando a dor tomou conta de mim, download feito: só são permitidas aterragens suaves. 
  1. Tenho estado a olhar para os dedos dos pés das minhas daughters a semana inteira, mas hoje, sábado, ela pede-me para não olhar para os seus pés como se eu não tivesse andado a fazê-lo. Verniz rosa nas unhas do pé, a agarrar-se à vida, a perguntar-se quanto tempo mais aguentará sem precisar de ser retocado. Na Austrália é verão e por isso os dedos dos pés andam à mostra. Setenta por cento das daughters na minha house pintam as unhas dos pés, todas, tirando a Taimania, pintam-nas de branco. Eu também pinto de branco. Branco é a escolha segura, a escolha quenga segura, bonita e que assenta ao género feminino. É a cor das gajas iguais a todas as outras. Que passam. Tenho uma flor dourada nos dedos dos pés, nos dedos grandes, os dedos-mãe. Eu sou a mother.
    Entre os dedos dos pés e os downloads que faço, ando a pensar sobre este conceito de fadiga da imaginação. Tenho vindo a experienciá-lo e agora, este ano, o ano em que se dá nomes às coisas, diagnostico-o. O meu corpo, em toda a sua glória de Virgem turbinada, bombeada para os deuses com experiência e hormonas, deve esperar que volta e meia lá rebente um fusível, o corpo em off, mas ainda assim, para mim, continua a haver um motivo enraizado que vai para lá da mecânica. A imaginação é espacial, é a ocorrência de matéria manifestada pelas ideias de uma outra pessoa. Adrienne Maree Brown fala sobre isto em Pleasure Activism1: “Sinto muitas vezes que estou presa dentro da imaginação de uma outra pessoa e que tenho de ativar a minha própria imaginação para me conseguir libertar.” Antes de se relacionar com a imaginação do corpo dominante, o perigo e os limites da imaginação branca.
    Quando oiço que as minhas sisters se estão a debater com o suicídio, ocorre-me frequentemente esta batalha da imaginação. Quando perco essas girls, penso muitas vezes que sofriam de fadiga da imaginação. Quando quis deixar este mundo, das duas vezes que o tentei fazer, tratou-se de uma incapacidade, de uma falta de visão, de ver o mundo, de imaginar um mundo onde pudesse continuar a existir apesar da visão dominante do meu corpo. E por isso, no que a isto diz respeito, a imaginação é uma corda de segurança, a criatividade é a prática e, apesar de ainda estar a tentar perceber o que se segue, a comunidade e a visão coletiva parecem ser o remédio. 
  1. Conheço bem todos os dedos dos pés das minhas 12 crias, até dos boys. Seria capaz de os identificar se fosse preciso. Não é que eu passe muito tempo a olhar para eles, mas reparo neles com mais frequência. Mais do que nas mãos, o que parece uma loucura porque as mãos são o instrumento da diáspora para mulheres como nós. Naaa, para mim são os dedos dos pés. Dizem-me mais, aliás dizem muito. Os dedos dos pés a contarem sempre a história que está por detrás, os dedos dos pés estão escondidos por trás de portas fechadas, mas quando os vemos sabemos exatamente o que está a acontecer. Os dedos da Kilia enrolam-se uns nos outros quando ela está a pensar. Os dedos da Jamaica batem no ar quando ela está contente e a Tashygna parece que os levanta quando se prepara para falar. A Devonne tem uns dedos suaves como as suas mãos e apesar de a Yovanna esconder os seus dedos dos pés, podemos todas imaginá-los como se os víssemos.
    Não é fácil imaginar, é preciso disciplina e prática. Consistência e energia. É fácil cair, desligar e desistir. Há o trabalho de parto e há o nascimento. A possibilidade de praticar a imaginação parece por vezes esmagadora. Quero uma performance feita em equipa, imaginar o mundo como house, visões coletivas que nos ajudem a atravessar períodos instáveis. Se o meu ciclo de vida pode ser imaginado, completado, tipo círculo completo, ser mother e envelhecer, por vocês, pelo outro corpo, então deixem-me entrar nessa visão. Se não consigo ver mais nada, deixem-me mergulhar nessa visão. Se não houver mais possibilidades, temos sempre a imaginação. O corpo está on, estendam o novo chão deste mundo, as girls têm de andar. Só são permitidas aterragens suaves. 

Este texto foi escrito nas terras roubadas do povo Djiringanj da Nação Yuin. A autora agradece a todos os anciãos do passado e do presente, assim como à resiliência constante dos cuidadores originais desta terra. Nunca se abdicou da soberania e a Austrália foi e sempre será terra aborígene. 

Traduzido do original inglês por J. M. Vieira Mendes.

Miguel Oliva Teles Daniel Pizamiglio Elegia Porvir

Em 2019 surge uma ameaça que põe em causa não só cada um de nós mas também aquilo que nos define e entremeia: a relação. Perante um vírus que se propaga usando como veículo os nossos afetos e o âmago do nosso viver em comunidade, controlá-lo – ou viver com ele – é refrear esses mesmos afetos, suprimir essa vivência comunitária, sanitizar a relação. Em tal estado de contingência, além dos entes queridos que partem, das desigualdades que se adensam e da maior precarização das vidas, há ainda uma outra perda: a forma como nos relacionávamos não é mais possível. A pandemia persiste. Mas já vai sendo feita a incómoda pergunta: mesmo que receda, não permanecerá algum deste pudor, algum deste recato, algum deste receio que assombra o nosso viver-junto? Há, por isso, uma perda. E um luto? 

“Se a tristeza admite companhia, revejam as vossas dores contemplando as minhas”i. É Margaret, rainha anciã em Ricardo III, que, sentando-se com as outras rainhas, o diz. Nesta tragédia, Ricardo, cego pelo poder da coroa, distribui morte, dor e traição por todos à sua volta. As dores e as perdas são múltiplas, a violência ininterrupta e o luto – como o que estas rainhas partilham – converte a dor em ira, revolta e vingança. Às feridas abertas reagem com dor, repulsa e agressão. Sentam-se juntas, mas o olhar está virado para dentro de cada uma. Há, tantas vezes, nas tragédias e no mundo, uma tentativa ensimesmada de fechar a ferida, de resgatar uma existência íntegra, impermeável, sustentável apenas por si.  

De facto, a dor e a perda realçam, de forma violenta e abrupta, a nossa vulnerabilidade. Talvez até seja por isso possível, como supõe Judith Butler, “apelar a um nós, porque todos temos alguma noção do que é ter perdido”ii. Mas, perante a perda – e não fazendo a dor útil –, não poderá a perceção desta vulnerabilidade aflorar afinal os laços que nos unem, a nossa interdependência fundamental, a nossa existência em relação? Perante a perda – e não fazendo a dor fútil – não poderá o luto ser uma resposta em que essa vulnerabilidade (diferentemente vivida e distribuída) seja protegida e cuidada? Fazer o luto seria assim ficar na ferida, “insistindo na linha que tem de ser caminhada entre cuidá-la e tentar diminuí-la”. “Procurando uma base para a comunidade nestas condições”ii. Talvez Creonte reconhecesse esta força política quando proibiu, às portas da sua cidade, certas cerimónias de luto. Talvez também por isso não o ouviu Antígona. 

Entre abril e junho de 2020, logo após o primeiro confinamento em Portugal, Daniel Pizamiglio iniciou uma série de encontros. Chamando amigxs, colegxs e conhecidxs, encontrou-se com cada pessoa (no total, vinte e nove) em vários lugares de Lisboa: um estúdio de dança, os jardins arejados da cidade, as suas casas, a calçada de uma rua pouco movimentada e o interior de um carro estacionado. Como espectadores: o rio, os pássaros, o mofo de uma parede ao canto, as crianças num parque. Os intervenientes: Daniel e xs outrxs, cada um abrindo a sua ferida, abrindo-se um ao outro, abrindo o encontroiii. Precisamente quando este era tanto uma ameaça como aquilo que estava ameaçado, o que se pretendia era resgatar os afetos constrangidos pelas medidas sanitárias. Olhando para trás, parecia haver neste convite algo como no de Margaret: ​vem, senta-te comigo, que a tristeza admite, sim, companhia. Uma dissidência como a de Antígona: ​não deixemos esta perda calada, que ela reverbera demasiado grave. E ainda uma outra insistência: no comum, no encontro e no cuidar de uma vulnerabilidade que se entende conjunta.

“Fazer o luto.” É assim que o dizemos, deixando explícito que é um processo. Mas há algo mais nesta formulação: o luto, como vivência de uma perda, não é só um ato, nem meramente um processo psíquico que acontece por si. É um fazimento, um acontecimento que se performa. Desde a Antiguidade até aos nossos dias, mostram-no as carpideiras, derramando todo o seu pathos em choro sobre o corpo do defunto. Pepe Espaliú, artista espanhol que viveu com VIH-SIDA – outra pandemia na qual as perdas são desiguais e na qual o preconceito e o nojo desumanizam tanto as vítimas como as dores dos que sobrevivem – realizou, em 1992, uma performance em que o próprio artista é levado pela rua, sentado nos braços unidos de amigos, conhecidos e demais pessoas. Pepe era assim carregado e cuidado – Car(ry)ing –, a sua perda ressignificada, politizada; os olhos postos na ferida, na sua vulnerabilidade e na de todos os que o carregavam. Um luto liberto do estigma, vivendo a dor de forma aberta e compartida. 

Também para Jacques Derrida o luto é algo que se performa e que nos orienta para o futuro. Segundo o filósofo, fazer o luto não é “trazer o passado à memória”, não é isolar o que perdemos numa cripta fechada, cristalizando o perdido num retrato ao qual voltamos numa rememoração nostálgica, passiva e solipsa. Ao invés, o luto é abrigar em nós, numa cripta de portas e janelas abertas, os traços ou os vestígios do que se perde. É ficarmos num diálogo contínuo com o que remanesce. Numa rememoração afirmativa e para fora, criativa, como um rastro-lastro que nos engaja não com o que passou, mas com o porvir. Ativar esta memória instiga-nos a agir, a falar o que perdemos. Ou a deixar que o que perdemos fale por siiv. Era desta forma que Derrida enlutava a perda de cada amigo, colega e mentor que partia, relendo publicamente os seus textos, retendo os traços das suas vidas e dos seus pensamentos, fazendo deles um novo pensamento-texto-leitura: uma performance-elegiav. 

Nessa série de encontros intitulada “POR FAVOR, OLHAR COMO SE FOSSE A PRIMEIRA E ÚLTIMA VEZ”, o Daniel propunha, como ponto de partida, pensar e ativar um olhar primeiro e último. Ficar nessa estranha contradição duma despedida que se espanta e duma curiosidade que já aceita um fim. O que é uma primeira vez? “Abrir espaço às (im)possibilidades de um outro”? Desconhecer? “Uma aproximação lenta e às escuras”? E a última? Um certo “sentido de agonia: a angústia de uma perda” […] [Apercebermo-nos] a cada momento do que não fica”?vi. A partir do pensamento e ativação deste olhar, seguia-se um exercício em que as mãos exploravam a insistência num toque que se tornara interdito. Em que as extremidades meditavam na tensão entre a distância necessária e uma proximidade que se busca. Em que a polpa dos dedos suportavam, juntas, um vazio.  

No final de cada encontro, o Daniel voltava a casa, sentava-se e contava-me. Como se haviam encontrado aquelas mãos, que tensões as mantinham e as afastavam. Depois, outras vezes só mais tarde, abria o caderno em que anotara impressões, frases, materiais, imagens e hipóteses rascunhadas. Os traços de um encontro. Juntos, agora, encaramos este pensamento-ativação e este esforço das mãos e do olhar como o trabalho da ferida, a performance do luto. Vemos procura e ressignificação, uma insistência no encontro, um sentar juntos. Como se tivessem sido feitas as perguntas: “O que perdemos?” “E o que resta?”. Ativar, ler e sustentar estes restos é continuar o luto. Assim, da memória da experiência, das imagens captadas em vídeovii e dos apontamentos no pequeno caderno surgem estes traços que levantamos juntos. São estas as nossas elegias viradas para o futuro: 

O OUTRO É GRAVIDADE A QUEM O CORPO ENTREGA O PESO 

(com Julián Pacomio) 

NÃO HÁ PROJETO SENÃO ESTE: SUPORTAR E DEIXAR ABERTO 

(com Alina Ruiz Folini) 

ATENÇÃO MELANCÓLICA: CONTEMPLAR SEM POSSUIR 

(com Tiago Mansilha) 

AS MÃOS COMO PEDRAS E ENTRE ELAS UM TORNADO 

(com Ana Rita Teodoro) 

TENTAR TRANSPORTAR O FOGO 

(com Acauã El_Bandida Sereya) 

NÃO VEJO DIFERENÇA ENTRE UM APERTO DE MÃO E UM POEMA 

(com Gisela Casimiro) 

RECUPERAR UM FIM É ABRIR O FUTURO 

(com Paolo Gorgoni) 

PALÍNDROMO: A POTÊNCIA INICIADORA DO FIM 

(Sílvia Pinto Coelho) 

O TOQUE NÃO DEPENDE DO TOQUE 

(com Gabriela Giffoni) 

O ESPANTO E O MEDO  

(com Telma João Santos)  

OS OLHOS DAS MÃOS VAGUEIAM ENTRE O DENTRO E O FORA  

(com Sónia Baptista)  

RECONHECER A ÚLTIMA VEZ LEVA À PRIMEIRA  

(com Matheus Martins)  

TATEANDO OS INTERVALOS DO NÃO-SABER  

(com Liliana Coutinho)  

NO ENCONTRO SURGE A TERCEIRA IMAGEM 

(com Joana Levi) 

A IDEIA DO FIM NUNCA É COMO NO FIM  

(com Jessica Guez) 

A ÚLTIMA VEZ NÃO COMO UM EVENTO, MAS COMO UM MISTÉRIO QUE DURA 

(com Leonardo Mouramateus) 

COMO SE DEIXA UMA LEVE AUSÊNCIA? 

(com António Alvarenga) 

COMO FABRICAR UM “JAMAIS VU”? 

(com Isis Andreatta) 

FAZER DA ÚLTIMA VEZ VERBO 

(com Rafaela Cardeal) 

RECONHECER A SOMBRA DA NOSSA PRESENÇA  

(com Carlos Manuel Oliveira)   

ACABAR COM A PRESSA E CONSTRUIR A ESCUTA 

(com Carolina Campos) 

ANSIAMOS QUE FIQUE ANSIAMOS QUE PASSE   

(com Mauro Soares)  

ENTRE O PRINCÍPIO E O FIM: A EXPERIÊNCIA DA FALÉSIA  

(com João Fiadeiro) 

NADA VENCE NADA  

(com André e. Teodósio) 

COMO DEMORAR NO QUE PASSA? 

(com Felipe Ribeiro) 

MEDITAR GASTANDO O GESTO 

(com João dos Santos Martins) 

COMO MATAR UM SISTEMA EM NÓS SEM QUE ISSO NOS MATE? 

(com Fernanda Eugénio) 

A TERNURA ÀS VEZES ULTRAPASSA O MEDO  

(com Duarte Bénard da Costa) 

ABRIR MÃO E ACOLHER 

(com Alexandre Pereira) 

i William Shakespeare, Richard III, ed. Rafael Buffel (New Haven: Yale University Press, 2008), tradução livre.
ii Judith Butler, “Violence, Mourning, Politics”, em Precarious Life (Londres e Nova Iorque: Verso, 2004), tradução livre.
iii Ver O encontro é uma ferida (excerto da conferência-performance Secalharidade de João Fiadeiro e Fernanda Eugénio), https://ladcor.files.wordpress.com/2013/06/o-encontro-c3a9-uma-ferida.pdf.
iv Ver Joan Kirkby, “Remembrance of the Future: Derrida on Mourning”, Social Semiotics, 16 (2006): 461-472.
v Ver Jacques Derrida. The Works of Mourning, ed. Pascale-Anne Brault e Michael Naas (Chicago: University of Chicago Press, 2003), livro que edita o conjunto destas elegias.
vi Excertos do convite enviado pelo Daniel a cada participante.
vii Estas imagens foram montadas num filme apresentado em live-streaming no evento Recolher Obrigatório, nos dias 18 e 19 de dezembro de 2020, organizado pelo Teatro do Bairro Alto (Lisboa).

Micael Ferreira A Primeira Fonética

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaabemaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaamasaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaagestoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaproduçãoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaadeaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaasentidoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaparaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaçõesaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaadoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaqueaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaavejoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaalimentaraaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaafomeaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaasocialaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaavenhamaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaa+aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaAlbertoaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaPimentaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaLuizaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaPachecoaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaAllenaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaGinsbergaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaabaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaquiaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaumaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaadançaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa

Quando saímos molhados de uma piscina é comum sentirmos frio?

Isso acontece porque a evaporação de um líquido faz baixar a temperatura, então é por esse motivo que sentimos frio quando estamos molhados. Esse fenômeno ocorre porque a camada fina de água que adere a nossa pele absorve uma quantidade significativa de calor fazendo a água evaporar e termos a sensação de frio.

Como se explica o fato de sentirmos frio ao sairmos de uma piscina com o corpo molhado principalmente em dias de vento *?

Sabemos que a evaporação de um líquido faz baixar a temperatura, por esse motivo é que sentimos frio quando estamos molhados. Tal fato ocorre porque a fina camada de água que adere a nossa pele absorve uma quantidade significativa de calor, por isso temos a sensação de frio.

Quando saímos do banho ou da piscina com o corpo ainda molhado temos a sensação de frio mesmo em dias de temperaturas mais elevadas?

A resposta rápida é evaporação. Quando você sai do banho, a água espalhada por seu corpo começa a evaporar, se transformando em gás – e para fazer isso, precisa de energia, ou seja, de calor. O processo de evaporação “suga” o calor das gotas que estão em seu corpo, e a água começa a perder temperatura – e você também.

Por que então sentimos frio ao sair do mar ou da piscina mesmo naqueles dias super quentes de Verão?

Em geral, a água do mar ou da piscina possui temperatura mais baixa do que a do ambiente. Quando a gente entra no mar, ocorre um fenômeno chamado equilíbrio térmico. O corpo e a água trocam calor até que as duas temperaturas se igualem. Ao atingir esse ponto, paramos de sentir frio.