Qual é a importância dos mitos partilhados cuja existência se dá na imaginação coletiva?

13,5 bilhões de anos — surgem matéria e energia.

4,5 bilhões de anos — formação do planeta Terra.

200 mil anos — surge o Homo sapiens na África Oriental.

70 mil — Revolução cognitiva. Surge a linguagem ficcional. Começo da história. Os sapiens se espalham a partir da África.

12 mil — Revolução agrícola. Domesticação de plantas e animais. Assentamentos permanentes.

500 — Revolução científica. A humanidade admite sua ignorância e começa a conquistar a América e os oceanos. O planeta inteiro se torna um só palco histórico. Ascensão do capitalismo.

200 — Revolução Industrial. Família e comunidade são substituídas por Estado e mercado. Extinção em massa de plantas e animais.

O presente — Os humanos transcendem os limites do planeta Terra. As armas nucleares ameaçam a sobrevivência da humanidade. Cada vez mais, os organismos são moldados por design inteligente e não por seleção natural.

O futuro — O design inteligente se torna o princípio básico da vida? O Homo sapiens é substituído por super-humanos?

Parte Um — A Revolução Cognitiva

1 — Um animal insignificante

Há cerca de 70 mil anos, os organismos pertencentes à espécie Homo sapiens começaram a formar estruturas ainda mais elaboradas chamadas culturas. O desenvolvimento subsequente dessas culturas humanas é denominado história.

Três importantes revoluções definiram o curso da história. A Revolução Cognitiva deu início à história, há cerca de 70 mil anos. A Revolução Agrícola a acelerou, por volta de 12 mil anos atrás. A Revolução Científica, que começou há apenas 500 anos, pode muito bem colocar um fim à história e dar início a algo completamente. Este livro conta como essas três revoluções afetaram os seres humanos e dos demais organismos.

O Homo sapiens também pertence a uma família. Esse fato banal costumava ser um dos segredos mais bem guardados da história. Durante muito tempo, o Homo sapiens preferiu conceber a si mesmo como separado dos animais, um órfão destituído de família, carente de primos ou irmãos e, o que é mais importante, sem pai nem mãe.

O verdadeiro significado da palavra humano é "animal pertencente ao gênero Homo", e antes havia várias outras espécies desse gênero além do Homo sapiens. Usará o termo "sapiens" para designar membros da espécie Homo sapiens, ao passo que reservará o termo "humano" para se referir a todos os membros do gênero Homo.

Os humanos surgiram na África Oriental há cerca de 2,5 milhões de anos. As regiões mais orientais da Ásia foram povoadas pelo Homo erectus, "Homem ereto", que sobreviveu na região por quase 1,5 bilhão de anos. Homo soloensis, Homo denisova. Há, também, o Homo rudolfensis ("homem do lago Rudolf"), o Homo ergaster ("homem trabalhador") e, finalmente, nossa própria espécie, que , sem modéstia alguma, denominamos Homo sapiens ("homem sábio").

É uma falácia comum conceber essas espécies como dispostas em uma linha reta de descendência.

Os humanos têm um cérebro extraordinariamente grande em comparação com o de outros animais. O fato é que um cérebro gigante é extremamente custoso para o corpo. Não é fácil de carregar, sobretudo quando envolvido por um crânio pesado.

Mas caminhar com a coluna ereta tem lá suas desvantagens. A humanidade pagou por sua visão elevada e suas mãos habilidosas com dores nas costas e rigidez no pescoço.

Um passo importante rumo ao topo foi a domesticação do fogo. Ao domesticar o fogo, os humanos ganharam controle de uma força obediente e potencialmente ilimitada.

Os cuidadores de nossos irmãos

Cientistas concordam que há 150 mil anos a África Oriental estava povoada por sapiens que se pareciam exatamente como nós. De uma perspectiva evolutiva, 70 mil anos é um intervalo relativamente curto.

Nos últimos 10 mil anos, o Homo sapiens esteve tão acostumado a ser a única espécie humana que é difícil para nós concebermos qualquer outra possibilidade. Quando Charles Darwin sugeriu que o Homo sapiens era apenas uma espécie animal, as pessoas ficaram furiosas.

Se a culpa é dos sapiens ou não, o fato é que, tão logo eles chegavam a um novo local, a população nativa era extinta. O Homo sapiens conquistou o mundo, acima de tudo, graças à sua linguagem única.

2 — A árvore do conhecimento

Todos os macacos mostram um ávido interesse por tais informações sociais, mas eles têm dificuldade para fofocar de fato.

As novas habilidades linguísticas que os sapiens modernos adquiriram há cerca de 70 milênios permitiram que fofocassem por horas a fio.

A teoria da fofoca pode ser uma piada, mas vários estudos a corroboram. Ainda hoje, a maior parte da comunicação humana — seja na forma de e-mails, telefonemas ou colunas de jornais — é fofoca. Os que fomentam os rumores são o quarto poder original, jornalistas que informam a sociedade sobre trapaceiros e aproveitadores e, desse modo, a protegem.

A maior capacidade, porém, é transmitir informações sobre coisas que não existem. Lendas, mitos, deuses e religiões aparecem pela primeira vez com a Revolução Cognitiva.

Nossos primos chimpanzés normalmente vivem em pequenos bandos de várias dezenas de indivíduos.

Após a Revolução Cognitiva, a fofoca ajudou o Homo sapiens a formar bandos maiores e mais estáveis. Pesquisas sociológicas demonstraram que o tamanho máximo "natural" de um grupo unido por fofoca é de cerca de 150 indivíduos. Negócios familiares de sucesso normalmente enfrentam uma crise quando crescem e contratam mais funcionários. Se não forem capazes de se reinventar, acabam falindo.

As igrejas se baseiam em mitos religiosos partilhados. Os Estados se baseiam em mitos nacionais partilhados. Sistemas judiciais se baseiam em mitos jurídicos partilhados.

A Peugeot é um produto de nossa imaginação coletiva. Os advogados chamam isso de "ficção jurídica". A Peugeot pertence a um gênero particular ficção jurídica chamado "empresas de responsabilidade limitada".

3 — Um dia na vida de Adão e Eva

Para entender nossa natureza, nossa história e nossa psicologia, devemos entrar na cabeça dos nossos ancestrais caçadores-coletores. O campo próspero da psicologia evolutiva afirma que muitas de nossas características psicológicas e sociais do presente foram moldadas durante essa longa era pré-agrícola.

Por que, por exemplo, as pessoas se regalam com alimentos altamente calóricos que tão pouco bem fazem a seus corpos? As sociedades afluentes de hoje estão tomadas por uma praga de obesidade, que está rapidamente se alastrando para países em desenvolvimento. Essa teoria do "gene guloso" é amplamente aceita.

Uma boa mãe trata de ter relações sexuais com vários homens diferentes, sobretudo enquanto está grávida, para que seu filho receba qualidades (e os cuidados paternos) não só do melhor caçador como também do melhor contador de histórias, do guerreiro mais e do amante mais atencioso.

A sociedade afluente original

O cachorro foi o primeiro animal domesticado pelo Homo sapiens, e isso ocorreu antes da Revolução Agrícola.

Membros de um mesmo bando se conheciam intimamente e eram cercados por parentes e amigos durante a vida inteira. A solidão e a privacidade eram raras.

Os sapiens não saíam apenas à procura de alimentos e materiais. Também saíam à procura de conhecimento.

A maioria dos acadêmicos concorda de que as crenças animistas eram comuns entre os antigos caçadores-coletores. O animismo (de "anima", alma ou espírito em latim) é a crença de que praticamente todo lugar, todo animal, toda planta e todo fenômeno natural tem consciência e sentimentos, e que pode comunicar diretamente com os humanos.

Temos noções muito vagas sobre as religiões dos antigos caçadores-coletores. Presumimos que eles foram animistas, mas isso não é muito informativo. Não sabemos para quais espíritos rezavam, que festivais celebravam ou a que tabus obedeciam.

Não se tem muitos dados a respeito

Se é difícil reconstruir o panorama geral da vida dos antigos caçadores-coletores, os eventos particulares são quase irrecuperáveis.

Essa cortina do silêncio encobre dezenas de milhares de anos de história.

Antes da Revolução cognitiva, os humanos de todas as espécies viviam exclusivamente no continente afro-asiático.

A barreira marítima impediu não só os humanos como também muitos outros animais afro-asiáticos de chegarem a esse "Mundo Exterior". Em consequência, os organismos de terras distantes como Austrália e Madagascar evoluíram em isolamento por milhões e milhões de anos, assumindo formas e características muito diferentes das de seus distantes parentes afro-asiáticos. Austrália foi colonizada cerca de 45 mil anos.

A jornada dos primeiros humanos à Austrália é um dos acontecimentos mais importantes da história, pelo menos tão importante quanto a viagem de Colombo à América ou a expedição da Apollo 11 à Lua.

A extinção da megafauna australiana foi provavelmente a primeira marca significativa que o Homo sapiens deixou em nosso planeta.

De todas as grandes criaturas do mundo, os únicos sobreviventes da inundação humana serão os próprios humanos e os animais domésticos que servem como escravos nas galés da Arca de Noé.

Parte Dois — A Revolução Agrícola

5 — A maior fraude da história

Durante 2,5 bilhões de anos, os humanos se alimentaram coletando plantas e caçando animais que viviam e procriavam em sua intervenção.

Tudo mudou há cerca de 10 mil anos, quando os sapiens começaram a dedicar quase todo seu tempo e esforço a manipular a vida de algumas espécies de plantas e animais. Trigo e bodes foram domesticados por volta de 9000 a.C.

O trigo faz isso manipulando o Homo sapiens a seu bel-prazer. Estudos de esqueletos antigos indicam que a transição para a agricultura causou uma série de males, como deslocamento de disco, artrite e hérnia.

A palavra "domesticar" vem do latim domus, que significa "casa". Quem é que estava vivendo em uma casa? Não o trigo. Os sapiens.

Uma dieta baseada em cereais é pobre em vitaminas e sais minerais, difícil de digerir e péssima para os dentes e as gengivas.

Em tal perspectiva, mil cópias é sempre melhor do que cem cópias. Essa é a essência da Revolução Agrícola: a capacidade de manter mais pessoas vivas em condições piores. A Revolução Agrícola foi uma armadilha.

Em períodos de fartura as pessoas tinham mais filhos e, em períodos de escassez, um pouco menos. As pessoas começaram a comer mais trigo e, sem querer, favoreçam seu crescimento e difusão.

Os primeiros agricultores também não perceberam que alimentar crianças com mais mingau e menos leite materno debilitaria seu sistema imunológico.

Antes, as pessoas só escreviam cartas quando tinham algo importante para relatar. Hoje, queremos a resposta instantaneamente. Isso tornou os nossos dias mais ansiosos e agitados.

Ninguém planejou a Revolução Agrícola. Ela se desenvolveu espontaneamente.

É difícil provar que os povos pré-letrados fossem motivados por fé, e não por necessidade econômica.

Apenas um sistema ideológico ou religioso sofisticado poderia sustentar tais esforços.

Os bandos nômades que caçavam ovelhas selvagens pouco a pouco alteraram a composição dos rebanhos capturados.

6 — Construindo pirâmides

A Revolução Agrícola foi um dos acontecimentos mais controversos da história. Uns acham que ela colocou a humanidade no progresso; outros, que levou à perdição.

A chegada do futuro. Os agricultores viajavam, em sua imaginação, anos e décadas no futuro.

Os excedentes de comida produzidos por camponeses, aliados à nova tecnologia de transportes, acabaram por permitir que cada vez mais pessoas se apinhassem primeiro em aldeias maiores, depois em vilarejos e enfim em cidades, todas as reunidas sob novos reinos e redes de comércio.

Em 1776 a.C., a Babilônia era a maior cidade do mundo. O Império Babilônico era provavelmente o maior do mundo, com mais de um milhão de súditos.

O Código de Hamurabi é ideal para entendermos o antigo ideal de ordem social dos mesopotâmios. A fórmula estabelecida: "Se tal coisa acontecer, tal é o julgamento".

Exemplo: Se um homem superior arrancar o olho de outro homem superior, deverá ter seu olho arrancado.

O Código de Hamurabi afirma que a ordem social babilônica tem origem em princípios universais e eternos de justiça ditados pelos deuses.

Os que realmente acreditam

É fácil aceitar o Código de Hamurabi como um mito, mas não queremos ouvir que os direitos humanos também são um mito. Voltaire afirmou a respeito de Deus: "Deus não existe, mas não conte isso ao meu servo, para que ele não me mate durante a noite". Hamurabi teria dito o mesmo sobre seu princípio de hierarquia, e Thomas Jefferson, sobre os direitos humanos.

Como você faz as pessoas acreditarem em uma ordem imaginada como o cristianismo, a democracia ou o capitalismo? Primeiro, você nunca admite que a ordem é imaginada. Você sempre insiste que a ordem que sustenta a sociedade é uma realidade objetiva criada pelos grandes deuses ou pelas leis da natureza.

a. A ordem imaginada está incrustada no mundo material. Os homens nobres na Europa medieval não acreditavam no individualismo. O valor de uma pessoa era determinado por seu lugar na hierarquia social e por aquilo que outras pessoas diziam a seu respeito. Ser alvo de zombarias era uma indignidade terrível.

b. A ordem imaginada define nossos desejos. Os desejos mais valorizados dos ocidentais de hoje são definidos por mitos românticos, nacionalistas, capitalistas e humanistas. A Coca-Cola Company, por exemplo, promoveu a Diet Coke pelo mundo sob o slogan "Diet Coke. Do what feels good" ("Coca-Cola Diet. Faça o que lhe faz bem"). As pessoas hoje gastam grandes somas de dinheiro com férias no exterior porque realmente acreditam nos mitos do consumismo romântico.

Como a elite do Egito antigo, a maioria das pessoas na maioria das culturas dedica a vida a construir pirâmides. Só os nomes e as formas mudam de uma cultura para outra. Poucas questionam os mitos que nos levam a desejar a pirâmide.

c. A ordem imaginada é intersubjetiva. Intersubjetivo é algo que existe na rede de comunicação ligando a consciência subjetiva de muitos indivíduos.

Não há como escapar à ordem imaginada. Quando derrubamos os muros da nossa prisão e corremos para a liberdade, estamos, na verdade, correndo para o pátio mais espaçoso de uma prisão maior.

7 — Sobrecarga da memória

A evolução não dotou os humanos com a capacidade de jogar futebol. E, no entanto, podem jogar com completos estranhos porque todos aprenderam um conjunto idêntico de ideias sobre futebol. Essas ideias são totalmente imaginárias, mas, se todos as conhecem, podemos jogar. Cada jogador pode armazená-las facilmente no cérebro e ainda ter espaço para canções, imagens e listas de compras.

Quanto ao cérebro: 1) tem capacidade limitada; 2)morrendo o ser humano, o cérebro morre com ele; 3) o cérebro humano foi adaptado para armazenar e processar apenas determinados tipos de informação.

8 — Não existe justiça na história

Apesar da proclamação da igualdade entre todos os homens, a ordem imaginada constituída pelos norte-americanos em 1776 também estabeleceu uma divisão. Criou uma hierarquia entre homens, que se beneficiavam dela, e mulheres, que ficavam desprovidas de autoridade.

A maioria das pessoas afirma que sua hierarquia social é natural e justa, enquanto as de outras sociedades são baseadas em critérios falsos e ridículos.

Todas as sociedades são baseadas em hierarquias imaginadas, mas não necessariamente nas mesmas hierarquias.

Parte Três — A Unificação da Humanidade

Depois da Revolução Agrícola, as sociedades humanas ficaram ainda maiores e mais complexas, enquanto os constructos* imaginados que sustentam a ordem social também se tornaram mais elaborados.

* Constructo. 1. Construção puramente mental, criada a partir de elementos mais simples, para ser parte de uma teoria. 2. Psic. objeto de percepção ou pensamento formado pela combinação de impressões passadas e presentes.

Cada cultura tem crenças, normas e valores característicos, mas estes estão em transformação constante.

Desde a Revolução Francesa, pessoas do mundo inteiro pouco a pouco passaram a ver a igualdade e a liberdade individual como valores fundamentais. Mas os dois valores são contraditórios. A igualdade só pode ser assegurada se forem diminuídas as liberdades daqueles que estão em melhores condições. Garantir que cada indivíduo seja livre para fazer o que desejar inevitavelmente compromete a igualdade.

O estágio mais importante do processo de unificação global ocorreu nos últimos séculos, quando os impérios cresceram e o comércio se intensificou. O Homo sapiens evoluiu para achar que as pessoas se dividiam entre "nós" e "eles". "Nós" era o grupo imediatamente à sua volta, independentemente de quem você fosse, e "eles" eram todos os outros.

Em 1519, Hernán Cortés e seus conquistadores invadiram o México, até então um mundo humano isolado. Tinham interesse no metal amarelo. Indagado por que os espanhóis tinham tanta paixão pelo ouro, Cortés respondeu: "Porque eu e meus companheiros sofremos de uma doença do coração que só pode ser curada com ouro".

Para entender as limitações do escambo, imagine que você tem um pomar nas montanhas que produz as maçãs mais doces e viçosas de toda a província. Você trabalha tanto no seu pomar que os seus sapatos se desgastam. Então prepara uma carroça puxada por um jumento e desce para a cidade-mercado à beira do rio. Acha o sapateiro o lhe oferece algumas maçãs. O sapateiro hesita. Quantas maçãs irá pedir, já que todos os dias outras pessoas lhe oferecem maçãs.

"Todo mundo trabalha conforme suas necessidades" se transformou, na prática, em "todo mundo trabalharia o mínimo possível e receberia o máximo conseguisse".

Dinheiro não se resume em moedas e cédulas. Dinheiro é qualquer coisa que as pessoas estejam dispostas a usar para representar sistematicamente o valor de outras coisas com o propósito de trocar bens e serviços.

Um sobrevivente de Auschwitz descreveu o uso de cigarros como unidade monetária no campo: "Tínhamos nossa própria moeda, cujo valor ninguém questionava: o cigarro. O preço de cada artigo era declarado em cigarros... Em tempos normais, ou seja, quando os candidatos às câmaras de gás chegavam em um ritmo regular, um pedaço de pão custava 12 cigarros; uma embalagem com 300 gramas de margarina, 30; um relógio, de 80 a 200; um litro de álcool, 400 cigarros!"

Hoje, moedas e cédulas são uma forma rara de dinheiro. A soma de todo o dinheiro do mundo é cerca de 60 trilhões de dólares, mas a soma de moedas e cédulas é de menos de 6 trilhões de dólares. Mais de 90% do dinheiro circula por meio de servidores de computador.

O dinheiro é, portanto, um meio universal de troca que permite que as pessoas convertam quase tudo em praticamente qualquer outra coisa. Para ser capaz de converter, armazenar e transportar riqueza de maneira fácil e barata, o dinheiro fez uma contribuição vital ao surgimento de redes comerciais complexas e mercados dinâmicos.

Como o dinheiro funciona?

O dinheiro não é uma realidade material — é um construto psicológico. As pessoas estão dispostas a fazer essas coisas quando confiam no produto da imaginação coletiva. A confiança é a matéria-prima com que todos os tipos de dinheiro são cunhados.

A confiança nas moedas de Roma era tão forte que, mesmo fora das fronteiras do império, as pessoas aceitavam de bom grado pagamento em denários. O nome "denário" se tornou uma denominação genérica para moedas. Califas muçulmanos adaptaram o nome ao árabe e criaram os "dinares". Dinar ainda é o nome oficial da moeda da Jordânia, do Iraque, da Sérvia, da Macedônia, da Tunísia e de vários outros países.

Esses princípios permitiram que milhões de estranhos cooperassem no comércio e na indústria de maneira eficaz.

O dinheiro é baseado em dois princípios universais: 1) convertibilidade universal: com o dinheiro como alquimista, é possível transformar terras em lealdade, justiça em saúde e violência em conhecimento; 2) confiança universal: com o dinheiro como intermediário, quaisquer duas pessoas podem cooperar em qualquer projeto.

Esses dois princípios permitiram que milhões de estranhos cooperassem no comércio e na indústria de maneira eficaz.

Os antigos romanos estavam acostumados a ser derrotados. Como os antigos governantes da maioria dos grandes impérios da história, eles podiam perder uma batalha após outra, mas ainda vencer a guerra. Um império incapaz de receber um golpe e continuar de pé não é um império de verdade.

Não é o nosso tipo de história. Gostamos de ver os menos favorecidos vencerem. Mas não há justiça na história.

Um império é uma ordem política com duas características: 1) para fazer jus a essa significação, é preciso dominar um número significativo de povos; 2) impérios são caracterizados por fronteiras flexíveis e um apetite potencialmente ilimitado.

Nos dias de hoje, "imperialista" só fica atrás de "fascista" no léxico de palavrões políticos. A crítica contemporânea: 1) Os impérios não funcionam; 2) Mesmo que seja possível, não deve ser feito, porque os impérios são máquinas do mal, destruidoras e exploradoras.

A verdade é que o império foi a forma mais comum de organização política do mundo nos últimos 2,5 mil anos.

Em muitos casos, a destruição de um império não significava a independência dos povos dominados.

É para o seu próprio bem.

O primeiro império sobre o qual temos informações definitivas foi o Império Acádio, de Sargão, o Grande (c. 2250 a.C.)

O primeiro imperador da China unificada, Qín Shi Huángdì, se vangloriava de que "em todas as seis direções [do universo], tudo pertence ao imperador... onde quer que exista uma pegada humana, há alguém que se tornou súdito [do imperador]... sua bondade chega até mesmo aos bois e cavalos. Não há ninguém que não se beneficie dela. Todos os homens estão em segurança sob o teto dele."

Quando eles se tornam nós.

Uma razão era tornar a vida mais fácil para eles mesmos. Uma segunda razão, igualmente importante, pela qual os impérios disseminavam ativamente uma cultura comum era obter legitimidade.

Mocinhos e bandidos na história

É tentador dividir a história entre mocinhos e bandidos, colocando todos os impérios do lado dos bandidos.

O império global que está sendo forjado diante de nossos olhos não é governado por nenhum Estado ou grupo étnico em particular.

Hoje a religião é, muitas vezes, considerada uma fonte de discriminação, desavença e desunião. Mas, na verdade, a religião foi o terceiro maior unificador da humanidade, junto com o dinheiro e os impérios.

A religião pode ser definida, portanto, como um sistema de normas e valores humanos que se baseia na crença em uma ordem sobre-humana.

As religiões mais conhecidas da história, como o islamismo e o budismo, são universais e missionárias. Em consequência as pessoas tendem a acreditar que todas as religiões são como elas.

Uma teoria bastante aceita sobre a origem dos deuses afirma que estes ganharam importância porque ofereciam uma solução para tal problema.

Os benefícios da idolatria

Dois mil anos de lavagem cerebral monoteísta fizeram com que a maioria dos ocidentais veja o politeísmo como uma idolatria ignorante e infantil. Esse é um estereótipo injusto. Para entender a lógica inerente ao politeísmo, é necessário compreender a ideia central por trás da crença em muitos deuses.

O politeísmo não necessariamente contesta a existência de um único poder ou lei que governa o universo inteiro. Na verdade, a maioria das religiões politeístas e mesmo animistas reconhecia tal poder supremo por trás dos diferentes deuses, demônios e rochas sagradas.

A ideia fundamental do politeísmo, que o distingue do monoteísmo, é que o poder supremo que governa o mundo é destituído de interesses e inclinações e, portanto, não está preocupado com os anseios, os cuidados e os desejos mundanos dos humanos.

A ideia do politeísmo leva a uma tolerância religiosa muito maior. Como os politeístas acreditam, por um lado, em um poder supremo e completamente desinteressado e, por outro lado, em muitos poderes parciais e tendenciosos, não há dificuldade para os devotos de um deus aceitarem a existência e a eficácia de outros deuses. O politeísmo é inerentemente tolerante e raramente persegue "hereges" e "infiéis".

Com o tempo alguns seguidores de divindades politeístas apegaram-se tanto a seu deus que acabaram por se afastar da ideia politeísta básica.

A primeira religião monoteísta de que temos notícia apareceu no Egito por volta de 1350 a.C., quando o faraó Aquenáton declarou que uma das deidades menores do panteão egípcio, o deus Aton, era, na verdade, o poder supremo governando o universo.

O grande avanço veio com o cristianismo. Essa fé começou como uma seita judaica esotérica que procurava convencer os judeus de que Jesus de Nazaré era seu tão esperado messias. Paulo de Tarso ponderou que, se o poder supremo do universo tem interesses e inclinações, e se Ele se deu ao trabalho de encarnar e morrer na cruz para a salvação da humanidade, então isso é algo que deve ser comunicado a todos, e não só aos judeus. Portanto, era necessário difundir a boa palavra — o evangelho — sobre Jesus para o mundo inteiro.

Os monoteístas são no geral muito mais fanáticos e missionários que os politeístas.

O comércio, os impérios e as religiões universais levaram quase todos os sapiens, de todos os continentes, ao mundo globalizado em que vivemos hoje.

1. A falácia da visão retrospectiva

Cada ponto da história é um cruzamento. Uma única estrada percorrida leva do passado ao presente, mas uma série de caminhos se bifurca em direção ao futuro.

Qual a diferença entre descrever "como" e explicar o "porquê"? Descrever "como" significa reconstruir a série de acontecimentos específicos que levaram de um ponto a outro. Explicar o "porquê" significa encontrar conexões causais que esclareçam a ocorrência dessa série específica de acontecimentos em detrimento de todas as outras.

Quando Constantino assumiu o trono, em 306, o cristianismo não passava de uma seita oriental esotérica. Se alguém sugerisse que ele viria a ser a religião oficial de Roma, seria expulso da sala às gargalhadas.

Parte Quatro — A Revolução Científica

14. A descoberta da ignorância

Se, por exemplo, um camponês espanhol tivesse adormecido no ano 1000 e despertado quinhentos anos depois, ao som dos marinheiros de Colombo a bordo das caravelas Niña, Pinta e Santa Maria, o mundo lhe pareceria bastante familiar. Mas se um dos marinheiros de Colombo tivesse caído em letargia similar e despertado ao toque de um iPhone do século XXI, ele se encontraria em um mundo estranho, para além de sua compreensão. "Estou no Céu?", ele poderia muito bem se perguntar, "Ou, talvez, no Inferno?"

Os últimos quinhentos anos testemunharam um crescimento fenomenal e sem precedentes no poderio humano. No ano 1500, havia cerca de 500 milhões de Homo Sapiens em todo o mundo. Hoje, há 7 bilhões.

Durante a maior parte da história, os humanos não sabiam nada sobre 99,99% dos organismos do planeta — em especial, os micro-organismos.

Ao longo dos últimos cinco séculos, os humanos passaram a acreditar que poderiam aumentar suas capacidades se investissem em pesquisa científica. Isso não era uma fé cega — foi, repetidas vezes, comprovado empiricamente. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, destinou, nas últimas décadas, bilhões de dólares para o estudo da física nuclear.

A ciência moderna difere de todas as tradições de conhecimento anteriores em três aspectos cruciais:

a. A disposição para admitir ignorância: a ciência moderna se baseia na sentença latina ignoramus — "nós não sabemos".

b. O lugar central da observação e da matemática: tendo admitido a ignorância, a ciência moderna almeja obter novos conhecimentos e o faz reunindo observações e então usando ferramentas matemáticas para relacionar essas observações em teorias abrangentes.

c. A aquisição de novas capacidades: a ciência moderna não se contenta em criar teorias. Usa essas teorias para adquirir novas capacidades e, em particular, para desenvolver novas tecnologias.

A Revolução Científica não foi uma revolução do conhecimento. Foi, acima de tudo, uma revolução da ignorância. A grande descoberta que deu início à Revolução Científica foi a descoberta de que os humanos não têm as respostas para suas perguntas mais importantes.

Nas antigas tradições de conhecimento, um indivíduo podia ignorar algo importante. Para obter o conhecimento necessário, tudo que ele precisava fazer era perguntar a alguém mais sábio.

A ciência moderna não tem dogma. Mas tem um conjunto de métodos de pesquisa em comum, todos baseados em coletar observações empíricas — aquelas que podemos observar com pelo menos um dos nossos sentidos — e reuni-las com a ajuda de ferramentas matemáticas.

Newton mostrou que o livro da natureza está escrito na linguagem da matemática.

Em 1744, dois clérigos presbiterianos na Escócia, Alexander Webster e Robert Wallace, decidiram criar um fundo de seguro de vida que pagaria pensões a viúvas e órfãos de clérigos falecidos. Contaram com um professor de matemática da Universidade de Edimburgo, Colin Maclaurin. Os três reuniram dados sobre a idade em que as pessoas morriam e usaram esses dados para calcular quantos pastores provavelmente morreriam em determinado ano.

Seu trabalho se baseou em vários avanços recentes no campo da estatística e da probabilidade. Um desses avanços foi a Lei dos Grandes Números de Jacob Bernoulli. Bernoulli havia codificado o princípio de que, embora fosse difícil prever com certeza um acontecimento específico, como a morte de uma pessoa em particular, era possível prever com grande precisão o resultado médio de muitos acontecimentos similares.

De acordo com seus cálculos, no ano 1765 o Fundo de Pensão para as Viúvas e os Filhos dos Pastores da Igreja da Escócia teria um capital totalizando 58.384 libras. Seus cálculos se mostraram incrivelmente precisos. Quando esse ano chegou, o capital do fundo era 58.347 libras.

Hoje, poucos estudam retórica; a lógica está restrita aos departamentos de filosofia, e a teologia, aos seminários. Mas cada vez mais estudantes são motivados — ou forçados — a estudar matemática.

Dos 7 bilhões de pessoas no mundo, quantas entendem realmente mecânica quântica, biologia celular ou macroeconomia? Em 1620, Francis Bacon publicou um manifesto científico intitulado Novum Organum [Novo Instrumento], no qual afirmou que "conhecimento é poder". Uma teoria que nos permite fazer novas coisas constitui conhecimento. Antes de 1500, ciência e tecnologia eram campos totalmente separados.

Até a Revolução Científica, a maioria das culturas humanas não acreditava em progresso. Elas pensavam que a Era de Ouro estava no passado e que o mundo estava estagnado, se não ruindo.

Muitos credos sustentavam que algum dia um messias apareceria e colocaria fim a todas as guerras, à fome e até mesmo à própria morte.

Um exemplo famoso é o relâmpago. Muitas culturas acreditavam que o relâmpago fosse o martelo de um deus furioso, usado para punir os pecadores.

A pobreza é outro exemplo. Muitas culturas viam a pobreza como parte inescapável deste mundo imperfeito.

A ciência é uma atividade muito cara. Um biólogo que procura entender o sistema imunológico humano necessita de laboratórios, tubos de ensaio, substâncias químicas e microscópios eletrônicos, sem falar de assistentes de laboratório, eletricistas, encanadores e faxineiros. Mas se o financiamento adequado não estivesse disponível, nenhum brilhantismo intelectual poderia compensar isso.

A maioria dos estudos científicos é financiada porque alguém acredita que eles podem ajudar a alcançar algum objetivo político, econômico ou religioso.

A ciência é incapaz de estabelecer as suas próprias prioridades. Também é incapaz de determinar o que fazer com suas descobertas. Em suma, a pesquisa científica só pode florescer se aliada a alguma religião ou ideologia.

15. O casamento entre ciência e império

Qual a distância entre o Sol e a Terra? Essa é uma pergunta que intrigou muitos astrônomos no início da era moderna, em particular depois que Copérnico afirmou que o Sol, e não a Terra, é o centro do universo.

A mentalidade da conquista

A ciência moderna floresceu graças aos impérios europeus.

O dinheiro tem sido essencial tanto para a construção de impérios quanto para promover a ciência. Mas o dinheiro é o objetivo final desses empreendimentos, ou apenas uma necessidade perigosa?

Em 1500, a produção global de bens e serviços era equivalente a cerca de 250 bilhões de dólares; hoje, gira em torno de 60 trilhões. O que permite que os bancos — e toda a economia — sobrevivam e floresçam é nossa confiança no futuro. Essa confiança é a única garantia para a maior parte do dinheiro do mundo.

Smith ensinou as pessoas a pensarem na economia como uma situação em que todos ganham, em que meus lucros são também seus lucros.

Tudo isso depende, entretanto, de os ricos usarem seus lucros para abrirem novas fábricas e contratarem novos empregados, em vez de desperdiçá-los em atividades não produtivas. Smith repetiu o mantra: "quando os lucros aumentam, o proprietário de terras ou o tecelão empregam mais assistentes".

O capitalismo distingue o "capital" da mera "riqueza". O capital consiste de dinheiro, bens e recursos que são investidos na produção. A riqueza, por outro lado, é enterrada debaixo do solo ou desperdiçada em atividades improdutivas.

O capitalismo começou como uma teoria sobre como a economia funciona. Era ao mesmo tempo descritivo e prescritivo — oferecia um relato de como o dinheiro funcionava e promovia a ideia de que reinvestir os lucros na produção leva a um rápido crescimento econômico.

Colombo à procura de um investidor

O capitalismo exerceu um papel decisivo não só na ascensão da ciência moderna como também no surgimento do imperialismo europeu.

Em 1484, Cristóvão Colombo abordou o rei de Portugal com a proposta de financiar uma frota que navegaria rumo ao Oeste a fim de encontrar uma nova rota de comércio para o leste da Ásia. O rei de Portugal recusou porque não havia garantia alguma de que o investimento daria retorno.

O capital e a política se influenciam mutuamente a tal ponto que a relação entre os dois é acaloradamente debatida por economistas, políticos e pelo público.

Há uma razão ainda mais fundamental pela qual é perigoso da rédea solta aos mercados. Adam Smith ensinou que o sapateiro usaria seu excedente para empregar mais assistentes. Isso implica que a ganância egoísta é benéfica a todos. E se o sapateiro ganancioso aumenta os lucros pagando menos aos empregados e aumentando a jornada de trabalho deles?

Essa é a pedra no sapato do capitalismo de livre mercado. Não há como garantir que os lucros sejam ganhos de forma justa, ou distribuídos de forma justa.

17. As engrenagens da indústria

A economia moderna cresce graças à nossa confiança no futuro e à disposição dos capitalistas para reinvestir seus lucros na produção. Mas isso não é suficiente. O crescimento econômico também requer energia e matérias-primas, e essas são finitas.

Aprender a utilizar e converter energia de maneira eficaz resolveu o outro problema que desacelera o crescimento econômico: a escassez de matérias-primas.

A economia capitalista moderna deve aumentar a produção constantemente se quiser sobreviver, como um tubarão que deve nadar para não morrer por asfixia. Mas só produzir não é o bastante. É preciso que alguém compre. Daí, surgiu um novo tipo de ética: o consumismo.

A obesidade é uma vitória dupla para o consumismo. Em vem de comer pouco, o que levará à contração econômica, as pessoas comem demais e então compram produtos para dieta — contribuindo duplamente para o crescimento econômico.

A ética capitalista e a consumista são dois lados da mesma moeda, uma combinação de dois mandamentos. O mandamento supremo dos ricos é "invista!". O mandamento supremo do resto de nós é "compre!".

18. Uma revolução permanente

A Revolução Industrial abriu novos caminhos para converter energia e produzir bens; como isso, em grande medida, liberou a humanidade de sua dependência do ecossistema à sua volta. Nosso planeta, um dia verde e azul, está se tornando um shopping center de plástico e concreto.

7 bilhões de pessoas pesam 300 milhões de toneladas.

Vacas, porcos, ovelhas e frangos pesam 700 milhões de toneladas.

O temor à degradação ecológica tem sua razão de ser. Esse processo não "destruição da natureza", mas transformação.

Embora esses sapiens tenham se tornado cada vez mais impermeáveis aos caprichos da natureza, estão cada vez mais sujeitos aos ditames dos governos e das indústrias modernas.

A Revolução Industrial transformou a grade horária e a linha de montagem em um modelo para quase todas as atividades humanas.

O colapso da família e da comunidade

Antes da Revolução Industrial, a vida cotidiana da maioria dos humanos seguia seu curso no interior destas três estruturas antigas: a família nuclear, a família estendida e a comunidade íntima local. Quando uma pessoa ficava doente, a família cuidava dela. Quando uma pessoa envelhecia, a família sustentava, e seus filhos eram seu fundo de pensão.

Tudo isso mudou radicalmente nos últimos dois séculos. A Revolução Industrial deu ao mercado novos poderes gigantescos, proveu o Estado de novos meios de comunicação e transporte e colocou à disposição do governo um exército de escriturários, professores, policiais e assistentes sociais.

O Estado também fica de olho nas relações familiares, sobretudo entre pais e filhos. Os pais são obrigados a mandar seus filhos para que sejam educados pelo Estado.

Hoje, os mercados e os Estados atendem a maior parte das necessidades materiais que um dia eram atendidas pelas comunidades. Os mercados e os Estados fazem isso promovendo "comunidades imaginadas" que contêm milhões de estranhos e que são adaptadas para as necessidades nacionais e comerciais. Os dois exemplos mais importantes para a ascensão de tais comunidades imaginadas são a nação e tribo de consumidores. A nação é a comunidade imaginada do Estado. A tribo de consumidores é a comunidade imaginada do mercado.

Nos últimos dois séculos, o ritmo das mudanças se tornou tão rápido que a ordem social adquiriu um caráter dinâmico e maleável. Agora existe em um estado de fluxo permanente.

Podemos nos relacionar mais facilmente com o sofrimento de indivíduos do que de populações inteiras. No entanto, para entender processo macro-históricos, precisamos examinar estatísticas de grandes grupos, e não histórias individuais. No ano 2000, guerras causaram a morte de 310 mil indivíduos, e crimes violentos mataram outros 520 mil. Cada uma das vítimas é um mundo destruído, uma família arruinada, amigos e parentes com cicatrizes para a vida toda. Mas, de uma perspectiva macro, essas 830 mil vítimas representam apenas 1,5% dos 56 milhões de pessoas que morreram em 2000. Naquele ano, 1,26 milhão de pessoas morreram em acidentes de carro (2,25% do total de mortes) e 815 mil pessoas cometeram suicídio (1,45%).

A diminuição da violência se deve, em grande parte, à ascensão do Estado. Em toda a história, a maior parte da violência resultava de rixas locais entre famílias e comunidades.

Pelo menos parte dos elogios geralmente feitos a Mahatma Gandhi por seu credo não violento se deve, na verdade, ao Império Britânico.

Os Estados independentes que vieram depois desses impérios tinham um nítido desinteresse por guerras. Com pouquíssimas exceções, desde 1945 eles já não invadem outros Estados para conquistá-los e anexá-los.

19. E eles viveram felizes para sempre

Os últimos 500 anos testemunharam uma série de revoluções de tirar o fôlego. A Terra foi unida em uma única esfera histórica e ecológica. A economia cresceu exponencialmente, e hoje a humanidade desfruta do tipo de riqueza que só existia nos contos de fada.

Os nacionalistas acreditam que a autodeterminação política é essencial para a nossa felicidade. Os comunistas postulam que todos seriam felizes sob a ditadura do proletariado. Os capitalistas sustentam que só o livre mercado pode garantir a maior felicidade possível para o maior número, criando crescimento econômico e abundância material e ensinando as pessoas a serem autossuficientes e empreendedoras.

Até agora, discutimos a felicidade como se esta fosse, em grande medida, produto de fatores materiais, como saúde, dieta e riqueza. A definição geralmente aceita de felicidade é "bem-estar subjetivo".

Outra descoberta interessante é que a doença diminui a felicidade no curto prazo, mas só é fonte de sofrimento no longo prazo se as condições de vida de uma pessoa se deteriorarem de forma constante ou se a doença envolver dor contínua e debilitante.

A importância das expectativas humanas tem implicações de longo alcance para entendermos a história da felicidade.

Mesmo que os outros rapazes na escola sejam feios, você não se compara com eles, e sim com os astros de cinema, atletas e supermodelos que vê diariamente na televisão, no Facebook e nos outdoors gigantes.

Os cientistas sociais distribuem questionários de bem-estar subjetivo e correlacionam os resultados com fatores socioeconômicos como riqueza e e liberdade política. Os biólogos usam os mesmos questionários, mas correlacionam as respostas fornecidas pelas pessoas com fatores bioquímicos e genéticos. Suas descobertas são chocantes.

As pessoas ficam felizes por um único motivo: sensações agradáveis em seu corpo.

O desconcertante mundo de Huxley é baseado no pressuposto biológico de que a felicidade é igual ao prazer. Ser feliz é nada mais, nada menos que experimentar sensações corporais agradáveis.

Se a felicidade se baseia em ter sensações agradáveis, para sermos mais felizes precisamos reformular nosso sistema bioquímico. Se a felicidade se baseia em sentir que a vida tem sentido, para sermos mais felizes precisamos nos iludir de maneira mais eficaz.

O liberalismo santifica as sensações subjetivas dos indivíduos. A economia liberal se baseia na ideia de que o cliente sempre tem razão.

Na entrada do templo de Apolo em Delfos, os peregrinos eram recebidos pela inscrição: "Conhece-te a ti mesmo!". A implicação era que o indivíduo médio ignora seu verdadeiro eu e, portanto, tende a ignorar a verdadeira felicidade. Freud provavelmente concordaria*.

* Paradoxalmente, enquanto os estudos psicológicos do bem-estar subjetivo se apoiam na capacidade de as pessoas diagnosticarem corretamente sua felicidade, a principal razão de ser da psicoterapia é que as pessoas não se conhecem realmente e às vezes precisam de ajuda profissional para se livrarem de comportamentos autodestrutivos.

Por conseguinte, a maioria das religiões e filosofias adotou uma abordagem muito diferente da do liberalismo para tentar compreender a felicidade.

As pessoas só se libertam do sofrimento não quando experimentam essa ou aquela sensação de prazer, e sim quando entendem a natureza transitória de todos os seus sentimentos e param de persegui-los. Esse é o objetivo das práticas de meditação budistas.

Para resumir, os questionários de bem-estar subjetivo identificam nosso bem-estar com nossas sensações subjetivas, e a busca de felicidade com a busca de certos estados emocionais. Por outro lado, para muitas filosofias e religiões tradicionais, como o budismo, o segredo da felicidade é conhecer a verdade sobre você mesmo — entender quem, ou o que, você é realmente.

20. O fim do Homo sapiens

Os sapiens estão sujeitos às mesmas forças físicas, reações químicas e processos de seleção natural que governam todos os seres vivos.

Mas no início do século XXI, isso já não é verdade: o Homo sapiens está transcendendo esses limites. Está começando a violar as leis da seleção natural, substituindo-as pelas leis do design inteligente.

O retorno dos neandertais

Mas os geneticistas não querem apenas transformar linhagens vivas. Eles almejam reviver criaturas extintas. E não só dinossauros, como em O parque dos dinossauros. Uma equipe de cientistas russos, japoneses e coreanos recentemente mapeou o genoma de antigos mamutes, encontrados congelados na Sibéria.

Há uma outra tecnologia que poderia mudar as leis da vida: a engenharia cyborg. Os cyborgs são seres que combinam partes orgânicas e inorgânicas, como humanos com mãos biônicas. De certo modo, praticamente todos nós somos biônicos hoje em dia, já que nossos sentidos e funções naturais são complementados por dispositivos como óculos, marca-passos, órteses e até mesmo computadores e telefones celulares (que aliviam o nosso cérebro de parte do ônus do processamento e armazenamento de dados).

A terceira forma de mudar as leis da vida é produzir seres completamente inorgânicos. Os exemplos mais óbvios são programas de computador e vírus de computador que podem sofrer evolução independente. Os programadores tentam achar uma maneira de evoluir totalmente independente de seu criador. Nesse caso, o programador seria um primum mobile, um primeiro motor, mas sua criação estaria livre para evoluir em direções que nem seu criador nem qualquer outro humano jamais poderiam ter imaginado. O vírus de computador é um protótipo.

Imagine outra possibilidade: suponha que você pudesse fazer um backup do seu cérebro para um HD portátil e então rodá-lo em seu notebook. Seu notebook seria capaz de pensar e sentir como um sapiens? Se sim, ele seria você ou outra pessoa?

Atualmente, apenas uma fração minúscula dessas novas oportunidades se concretizou. Mas o mundo de 2015 já é um mundo em que a cultura está se libertando das algemas da biologia.

Para mapear o primeiro genoma humano, foram necessários 15 anos e 3 bilhões de dólares. Hoje, podemos mapear o DNA de uma pessoa em poucas semanas e ao custo de algumas centenas de dólares.

A profecia de Frankenstein

Em 1818, Mary Shelley publicou Frankenstein, a história de um cientista que tenta criar um ser superior e, em vez disso, cria um monstro. Nos últimos dois séculos, essa história foi contada repetidas vezes em inúmeras variações, tornando-se o tema central de nossa nova mitologia científica. À primeira vista, a história de Frankenstein parece nos advertir de que, se tentarmos brincar de Deus e criar vida, seremos punidos severamente. Mas a história tem um significado mais profundo.

O mito de Frankenstein confronta o Homo sapiens com o fato de que os últimos dias estão se aproximando depressa.

Epílogo — O Animal que se Tornou um Deus

Há 70 mil anos, o Homos sapiens ainda era um animal insignificante cuidando da sua própria vida em algum canto da África. Nos milênios seguintes, ele se transformou no senhor de todo o planeta no terror do ecossistema. Hoje, está prestes a se tornar um deus, pronto para adquirir não só a juventude eterna como também as capacidades divinas de criação e destruição.

Existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?

HARARI, Yuval Noah. Sapiens — Uma Breve História da Humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 33. ed., Porto Alegre, RS: L&PM, 2018.

O que é uma realidade imaginada?

Uma rede de histórias pode ser traduzida no meio acadêmico como ficção, construção social ou realidade imaginada. Realidade imaginada não é o mesmo que mentira, ao contrário, esse conceito reflete-se em algo que todo mundo acredita e compartilha de forma insistente, exercendo extrema influência de abrangência global.

Qual a importância da revolução cognitiva?

A Revolução Cognitiva trouxe a capacidade do homem de criar e transmitir informações, além de consumir, armazenar e assimilar grande quantidade de conteúdo – principalmente sobre coisas que não necessariamente são verdadeiras ou reais.

Como Harari resume a relação entre biologia e história após a revolução cognitiva?

Desde a revolução cognitiva, há cerca de 70 mil anos, o homem declarou independente a história da biologia. Segundo Harari, então os sapiens começaram a viver em uma realidade dual. Por um lado, o mundo objetivo dos rios, das árvores e dos leões; por outro lado, a realidade imaginada de deuses, nações e corporações.

Quando aconteceu a revolução cognitiva?

A Revolução Cognitiva aconteceu há 70 mil anos e é um dos marcos da história da humanidade para Yuval Harari. Antes a espécie humana era apenas mais uma na Terra, tendo o mesmo impacto no ambiente do que gorilas, vagalumes ou águas-vivas. Nosso primeiro representante foi o Australopithecus, há 2,5 milhões de anos.